Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT): uma abordagem baseada em processos

 

Desde sua criação, na década de 50 do século passado, o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) já passou por várias modificações, sendo uma das principais a inclusão de uma maior quantidade de transtornos mentais. Tendo como referência sua última versão, o DSM-V (2014), é difícil alguém ficar de fora de alguma classificação.

Dentro da medicina, a organização das doenças em descrições de sintomas tem tido certa utilidade: a partir de um diagnóstico preciso, é possível indicar o tratamento mais adequado e fornecer o remédio que irá proporcionar a cura. Mas e se o sofrimento humano não for uma doença a ser curada?

Talvez a primeira e mais óbvia desvantagem de se apoiar nesses critérios diagnósticos no âmbito da Psicologia seja o estabelecimento de causas tautológicas. Uma pessoa diagnosticada com depressão, por exemplo, encontra na doença uma boa explicação para o que está experimentando. Por que você está triste e desanimado? Porque estou com depressão. Mas se a pergunta for invertida, voltamos ao ponto inicial: Como você sabe que está com depressão? Porque estou triste e desanimado. Isso vale para qualquer transtorno: Por que seu filho é tão agitado? Porque ele tem TDAH. E como você sabe que ele tem TDAH? Porque ele é muito agitado!
Em um modelo assim circular e mentalista, doenças mentais são percebidas como coisas, entidades que se apoderam do corpo e dominam os pensamentos e emoções. A partir dessa perspectiva, há pouco que se possa fazer a respeito. Explicações como essas, já dizia Skinner, afastam nosso olhar das contingências nas quais o sofrimento emerge, ou seja, deixamos de observar as condições que evocam e perpetuam o sofrimento. Perdemos de vista as relações estabelecidas entre aquele que sofre e o ambiente em que o sofrimento está sendo produzido.

As descrições topográficas de sintomas apresentadas em manuais diagnósticos não ajudam a compreender funcionalmente o que se observa e levam a um segundo problema: a patologização de experiências humanas. Ao apresentar emoções, sentimentos e pensamentos como sintomas de doenças mentais, é natural que se busque eliminá-los, mas o que tem sido amplamente demonstrado através de pesquisas é que uma das principais causas do nosso sofrimento é justamente a tentativa de controlar o que acontece sob nossas peles (Hayes et al., 1996). É o tal paradoxo do controle: quando tentamos controlar algo que acontece em nosso mundo interno, não apenas não conseguimos, mas intensificamos a experiência. E mesmo quando conseguimos algum tipo de controle, mesmo que temporário, isso não é garantia alguma de que teremos uma vida mais satisfatória.

Nos últimos tempos, a proposta das ciências comportamentais contextuais, nas quais a ACT se insere, tem sido construir uma “abordagem empírica, focada em princípios, que seja sensível a contextos e funções do fenômeno psicológico, não apenas sua forma, buscando a construção de repertórios amplos, flexíveis e eficazes, em vez de uma abordagem que busque eliminar problemas estreitamente definidos” (Hayes, 2004, p. 658).

Esse movimento tem seguido a tendência das abordagens transdiagnósticas, que focam mais nos processos psicológicos comuns observados nas síndromes clínicas do que em constelações de sintomas. Não é incomum observar pessoas com sintomas combinados de diferentes transtornos descritos no DSM. Por exemplo, há muitas pessoas com baixa autoestima, reações exageradas ao estresse, ansiedade social e dificuldade interpessoal que não se encaixam nos critérios que costumam envolver tais sintomas , como transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de personalidade borderline ou ansiedade social.

Alguns mecanismos comuns atravessam diferentes diagnósticos. Sensibilidade acentuada à ansiedade, intolerância à incerteza e tendência à ruminação podem estar presentes tanto em transtornos de ansiedade como em quadros depressivos. Dificuldade de autorregulação podem levar indivíduos a evitar experiências emocionais, tornando-os cada vez menos capazes de manejar as próprias emoções, mantendo a vulnerabilidade. E essa vulnerabilidade evoca cada vez mais esquiva, podendo se manifestar sob diferentes condições.

A Terapia de Aceitação e Compromisso tem se encaminhado para um modelo de tratamento baseado na aplicação coerente de processos baseados em evidências mutáveis, ligados a procedimentos baseados em evidências, que melhorem os problemas e promovam a prosperidade das pessoas. O objetivo é que esses processos sejam mediadores dos resultados do tratamento, fornecendo um feedback e um foco, não uma explicação causal (Hayes, 2017). Em outras palavras, processos que sirvam de parâmetro para avaliar a eficácia de procedimentos terapêuticos na construção de uma vida que se queira viver.

A variabilidade comportamental é fundamental para que possamos mudar a condição em que nos encontramos. Os maiores inimigos de uma variação e de uma retenção seletiva saudável são a esquiva e o seguimento excessivo de regras, isoladamente ou de forma combinada (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012). O papel do terapeuta, em uma perspectiva comportamental contextual, é alterar o contexto, muitas vezes simbolicamente, de modo que a variação, a seleção e a retenção de novas classes de comportamentos aconteçam (Villatte, Villatte & Hayes, 2016).

Fusão com os próprios pensamentos (que poderia se traduzir como o ficar sob controle rígido de relações verbais arbitrárias), esquiva de experiências emocionais (resistência e recusa diante de alguns respondentes), falta de contato com o momento presente (ruminando o passado ou planejando o futuro), apego excessivo a um conceito sobre si mesmo (em detrimento de uma percepção do caráter fluido e mutável de nosso existir), falta de clareza e de compromisso com os próprios valores (que podem se traduzir como inação, procrastinação ou impulsividade pela inabilidade em abrir mão de reforçadores imediatos em favor de consequências mais distantes e mais relevantes) são processos observáveis em diferentes classificações sindrômicas.

Quando trabalha aceitação e desfusão, o terapeuta ACT está criando mais abertura às diversas dimensões de nossa experiência privada, a fim de promover variação comportamental. As habilidades de atenção são desenvolvidas através de um maior contato com o momento presente, que se dá através de uma perspectiva diferente, ou seja, a partir de uma percepção de eu distinta da própria experiência. Esse processo aumenta a sensibilidade e a flexibilidade diante dos contextos, possibilitando que novos comportamentos possam ficar sob controle de outras fontes de estimulação. Por fim, o engajamento em ações comprometidas com os próprios valores aumenta a probabilidade de que a variação possa ser selecionada e mantida. Abertura, atenção e engajamento permitem mudanças comportamentais e a transformação de uma condição de sofrimento em uma vida com mais significado. Ainda há muito que se pesquisar, mas o que sabemos até agora já nos permite um movimento de um modelo classificador de doenças para um olhar mais contextual funcional sobre os processos subjacentes ao sofrimento humano.

 

Referências:

American Psychiatric Association. (2014) DSM-5: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed.

Hayes, S. C., Wilson, K. G., Gifford, E. V., Follette, V. M., & Strosahl, K. (1996). Experiential avoidance and behavioral disorders: A functional dimensional approach to diagnosis and treatment. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 64, 1152-1168. http://dx.doi.org/10.1037/0022-006X.64.6.1152

Hayes, S.C. (2004). Acceptance and commitmente therapy and the new behavior therapies: Mindfulness, acceptance and relationship. In S.C. Hayes, V.M. Follette & M.M. Linehan (eds.), Mindfulness and acceptance: Expanding the cognitive-behavioral tradicional (pp. 1-29). New York: Guilford Press.

Hayes, S.C., Strosahl, K.D. & Wilson, K.G. (2012). Acceptance and Commitment Therapy: The Process and Practice of Mindful Change. New York, NY: The Guilford Press.

Hayes, S.C. (2017). Evolution on Purpose: Why the Ultimate Success of CBS is Tied to Applied Evolution Science. Apresentação ACBS World Con.

Hayes, S.C. & Hofmann, S.G. (2017). The third wave of cognitive behavioral therapy and the rise of process-based care. World Psychiatry: Journal of the World Psychiatric Association (WPA), 16 (3).

Villatte, M., Villatte, J. L. & Hayes, S. (2016). Mastering the Clinical Conversation: Language as Intervention. NY: The Guilford Press.

Zettle, R.D., Hayes, S.C., Barnes-Holmes, D., Biglan, A. (eds.) (2016). The Wiley Handbook of Contextual Behavioral Science. West Sussex, UK: John Wiley & Sons, Ltd.

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Escrito por Mônica Valentim

Graduação em Psicologia pela UNESP Bauru (1996), mestrado em Psicologia Experimental - USP (2001) e doutorado pela Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP (2006). Participou de diversos treinamentos em Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), Teoria das Molduras Relacionais (RFT) e Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) no Brasil e no exterior com Steven Hayes, Kirk Strosahl, Kelly Wilson, Benjamin Schoendorff, Matthieu Villatte, Mavis Tsai, Robert Kohlenberg, entre outros.
Foi professora da Universidade do Sagrado Coração e UNESP, em Bauru (SP), e da Laureate/IBMR, no Rio de Janeiro (RJ). É supervisora clínica no Paradigma - São Paulo (SP).

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