Pandemia e a resiliência dos profissionais: aprendendo com a realidade brasileira

            A pandemia de COVID-19 gerou uma série de discussões sobre a importância dos profissionais que atuam na linha de frente de combate à doença. Profissionais que atuam diretamente com a população, em especial os que atuam na área da saúde, têm enfrentado aumento de horas de trabalho, falta de condições e equipamentos de proteção individual em muitos casos e um estresse relacionado à natureza da atuação profissional.

            Os profissionais que atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, em suas diferentes dimensões (e.g. psicóloga/os, médica/os, assistentes sociais), têm enfrentado dificuldades na realização do seu trabalho, porém essas informações são provenientes de relatos da mídia, em sua maioria. Ao mesmo tempo, discussões sobre como esses profissionais são resilientes (ou deveriam ser) são divulgadas com pouco critério sobre o que seria essa resiliência e como ela poderia ser fomentada.

            Pensando na situação dos profissionais de proteção às crianças durante a pandemia, realizamos uma pesquisa (Priolo-Filho, Goldfarb, Zibetti & Aznar-Blefari, 2020) a fim de identificar  quais comportamentos esses profissionais avaliam como importantes para conseguirem ser resilientes durante a pandemia, quais o seu trabalho possibilita que pratiquem, seja por fornecer condições, seja por fornecer tempo para essas tarefas. E, por fim, em quais comportamentos eles têm se engajado durante a pandemia.

Para isso utilizamos diferentes níveis de resiliência: individual, profissional e familiar. Essa visão da resiliência em diferentes níveis tem sido discutida como a mais adequada para uma visão completa e complexa dessa classe de comportamentos (para conhecer mais sobre esse tema ver Liu, Reed e Girard (2017) e Masten e Motti-Stefanidi (2020) e um outro post aqui no Comporte-se https://comportese.com/2020/01/resiliencia-nossa-de-cada-dia-de-palavra-da-moda-a-construto-complexo).Essa visão contempla a resiliência como um domínio multifatorial ligado a adaptações de comportamentos em situações aversivas. Dessa forma, diferentes fatores podem fazer parte da construção do que é chamado de resiliência, por exemplo, um indivíduo pode, neste modelo teórico, apresentar grande adaptação a situações aversivas profissionais, mas pouca adaptação para situações aversivas familiares. Dessa forma, avaliações sobre a resiliência devem considerar os diferentes contextos em que a adaptação pode acontecer considerando o ambiente e antecedentes.

Mais de 300 profissionais de 86 cidades brasileiras participaram da pesquisa que investigava quais comportamentos ou atividades os profissionais consideravam importantes para a resiliência, quais o trabalho permitia ou dava condições para que realizasse e quais de fato este profissional se engajou durante a pandemia. Foi realizada uma Path Analysis sobre os efeitos diretos e indiretos para a prática das atividades ou comportamentos resilientes com a emergência de três fatores: resiliência individual, laboral e familiar. Os resultados mostram que os profissionais que mais se engajaram em comportamentos resilientes eram aqueles que apontavam a importância daquele comportamento e a possibilidade e suporte que seu trabalho oferecia para a ocorrência do comportamento. Nos três níveis investigados (individual, familiar e profissional) essas relações se mostraram significativas. Ou seja, a compreensão de quem apresenta comportamentos resilientes independe da “força de vontade”, “desejo” ou expressões similares tão em voga sobre a temática. O que de fato impacta a expressão de comportamento resiliente é o histórico do indivíduo indicando a importância daquele comportamento em conjunto com condições ambientais que aumentem a probabilidade de sua ocorrência.

Esses resultados também apontam que o comportamento resiliente individual e familiar também são impactados pelas características de suporte e oportunidade de engajamento em comportamento resiliente que o trabalho fornece aos profissionais. Essa discussão é fundamental durante a pandemia, na qual muitos indivíduos estão com carga de trabalho aumentada e com acúmulo de atividades domésticas. O impacto da carga de trabalho impacta em atividades relativas à vida familiar e aspectos individuais, dessa forma, apesar dos fatores serem distintos, há uma relação entre eles, tal qual proposto por Liu et al. (2017). Compreender como fomentar a resiliência dos profissionais que enfrentam salários baixos, longas jornadas e carga de trabalho envolve modificar a organização dos serviços que estão subfinanciados e equipados. Contudo, é a maneira de garantir o engajamento desses profissionais nessas atividades, conforme demonstrado pelos resultados da pesquisa.

 A literatura sobre resiliência tem sido dominada por essa visão individualizante e culpabilizante dos indivíduos que não seriam resilientes ou não teriam a vontade de superar e se adaptar as adversidades (Masten & Cicchetti, 2016 para uma revisão sobre a temática) . Essa pesquisa realizada com profissionais brasileiros demonstra os aspectos teóricos apresentados por Liu e colaboradores (2017), que a construção da resiliência é através das relações entre sistemas distintos com caminhos distintos na sua ocorrência, mas que dependem especialmente das condições ambientais para a ocorrência do comportamento resiliente e, consequentemente, evitação de consequências aversivas ou promoção de consequências que aumentem o bem-estar e a saúde dos indivíduos.

            Para ler o estudo na íntegra acesse: https://doi.org/10.​1016/​j.​chiabu.​2020.​104701

Para saber mais

Liu, J. J., Reed, M., & Girard, T. A. (2017). Advancing resilience: An integrative, multi-system model of resilience. Personality and Individual Differences, 111, 111-118. http://dx.doi.org/10.1016/j.paid.2017.02.007

Masten, A. S., & Motti-Stefanidi, F. (2020). Multisystem resilience for children and youth in disaster: Reflections in the context of COVID-19. Adversity and Resilience Science, 1, 95-106. https://doi.org/10.1007/s42844-020-00010-w

Masten, A. & Cicchetti, D. (2016). Resilience in development: Progress and transformation. D. Cicchetti (Ed.), Developmental Psychopathology (3rd ed.). John Wiley & Sons, Inc., New Jersey (2016), pp. 1-63, 10.1002/9781119125556.devpsy406

Priolo Filho, S. R., Goldfarb, D., Zibetti, M. R., & Aznar-Blefari, C. (2020). Brazilian Child Protection Professionals’ Resilient Behavior during the COVID-19 Pandemic. Child Abuse & Neglect, 104701. https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2020.104701

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Escrito por Sidnei R. Priolo Filho

Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná em Curitiba.

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