Insegurança na atuação em Psicologia Clínica: Um problema a ser resolvido ou um mercado a ser explorado?

Você se sente insegura(o) em alguns momentos dos seus atendimentos clínicos? Tem dúvidas se está fazendo o melhor que poderia ser feito? Tem confiança de que conseguirá auxiliar na melhora da qualidade de vida das pessoas que estão investindo tempo e dinheiro no seu trabalho? Sente que poderia estar fazendo mais, mas que talvez não tenha as melhores ferramentas para isso? Sente que outras pessoas estão mais aptas do que você para esse trabalho? Quer catapultar a sua carreira para um novo nível? Quer ser reconhecida(o) como um(a) profissional de excelência na área? Quer ter a certeza que eu o seu trabalho faz a diferença na vida das pessoas?

Calma, respira, não tenho a intenção de te vender nenhum curso aqui. Esse também não é um texto sobre o famoso efeito Forrer¹, mesmo que as perguntas acima levem a uma boa demonstração do mesmo. O que de fato pretendo apresentar são algumas impressões e reflexões sobre o atual mercado de produtos (sobretudo digitais) para profissionais da Psicologia Clínica e sobre como a sensação de insegurança (percebida e produzida) tem servido como motor que traciona parte desse mercado. Ao final, comentarei ainda sobre a essa insegurança, o que ela pode representar e as diferentes formas de lidar com ela, tomando como base as premissas da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT).

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A cada segundo, milhões de pessoas fornecem uma quantidade massiva de dados para grandes empresas de tecnologia. Ao utilizarmos plataformas “gratuitas” como Google, Facebook, Youtube, Instagram, Twitter e TikTok, estamos inadvertidamente revelando parte de quem somos, do que gostamos e de nossos hábitos. Essas informações são continuamente utilizadas para alimentar algoritmos, filtrando os conteúdos apresentados de forma personalizada às nossas características. Além de manter nosso engajamento e uso dessas plataformas, a personalização também direciona o tipo de publicidade que nos é apresentada, sendo essa a principal fonte de lucro das redes sociais (Pariser, 2012; O’Neil, 2021).

Mais do que isso, a publicidade digital parece estar especialmente direcionada a explorar nossas vulnerabilidades. Partindo da premissa de que o “alívio da dor” e/ou a “solução para os problemas” são poderosos motivadores de curto prazo (O’Neil, 2021), a publicidade digital muitas vezes mira exatamente naquilo que é mais frágil e crítico. Em muitos casos, essas vulnerabilidades não são apenas acessadas, mas fabricadas. Podemos observar isso em larga escala nos padrões de beleza, estilo de vida saudável e produtividade, propagandeados como ideais, mas pouco aplicáveis às condições de vida da maioria das pessoas (Crary, 2016; Wolf, 2018). Algo semelhante pode ocorrer, em escala reduzida, no contexto de classes profissionais como a Psicologia Clínica.

Os “gatilhos” e táticas de vendas desempenham um papel crucial nesse processo (Cialdini, 2012). Conforme a Teoria das Molduras Relacionais (RFT) demonstra empiricamente, alterações no contexto verbal podem resultar em transformações nas funções dos estímulos. Isso implica que, dependendo da história prévia e da exposição, treino e coerência de certas relações em um contexto, os estímulos podem passar a operar de maneiras diferentes (Perez, et al., 2022). Por exemplo, após uma exposição frequente a um certo tipo de publicidade, a compra de um curso pode se tornar uma urgência, ao passo que o desconhecimento sobre um determinado tema pode se tornar algo extremamente aversivo.

Com isso, a capacidade de conversão (em vendas) da publicidade digital parece estar associada a uma série de fatores sobre forma como ela é pensada e executada. Por exemplo, com apresentações recorrentes, com “gatilhos de escassez”, com testemunhos de consumidores satisfeitos, com a criação de uma imagem de credibilidade/ excelência/ pioneirismo e, até mesmo, com comparações (diretas e indiretas) a produtos concorrentes. Também entram em jogo características das pessoas que são expostas a essas propagandas (aqui os algoritmos dão uma ajuda), por exemplo, profissionais recém formados ou em busca de melhores condições de trabalho podem estar mais propensos a clicar em anúncios que proponham “ensinar tudo aquilo que a graduação não ensinou” ou “finalmente alcançar o sucesso profissional na Psicologia”. E o que dizer, então, da publicidade que promete dar um fim à sua insegurança na clínica?

O outro lado do cuidado humano

A dedicação intensa de alguns profissionais de saúde em curar, apoiar e proteger as pessoas é amplamente reconhecida na literatura, embora, por vezes, seja influenciada por barreiras estruturais, como observado durante a pandemia de COVID-19 (Baljoon et al., 2018; Bridgeman et al., 2018; Soares et al., 2022). No caso dos profissionais da Psicologia Clínica, há uma responsabilidade considerável ligada ao contato constante com as experiências íntimas e o sofrimento subjetivo das pessoas. Não é incomum que sejam compartilhados em terapia aspectos de uma vida jamais revelados em nenhum outro contexto. Além disso, diversas nuances presentes nas atividades clínicas da Psicologia podem levar a algumas “armadilhas do cuidado”.

Como apontado por Dalgalarrongo (2023), seguir inflexivelmente um “anseio de salvar” pode minar a efetividade de uma intervenção terapêutica e, ao mesmo tempo, contribuir para a extrapolação dos limites pessoais dos profissionais que trabalham com a Psicologia Clínica. Por exemplo, imagine um profissional que adote o papel de “porto seguro/resolvedor de problemas”, oferecendo soluções imediatas e descontextualizadas para qualquer forma de sofrimento apresentada. Essa postura, ainda que bem intencionada, pode se mostrar um tipo de esquiva, que culmina na limitação da autonomia da pessoa em terapia e no aumento da autoexigência do terapeuta sobre oferecer “repostas ideais” às dificuldades apresentadas.

Certamente, o mesmo anseio (e a mesma esquiva) pode se mostrar à sombra da busca dedicada por uma formação, modelo ou método que elimine toda a insegurança na prática clínica. Afinal, quem que não gostaria de encontrar um modo infalível de fazer Psicoterapia? Um meio de ter certeza absoluta de que estamos fazendo o melhor que pode ser feito, de que nunca falharemos e de que nossa visão de mundo da conta de todas as queixas existentes. No meu ponto de vista, isso não é possível quando estamos falando de ciência psicológica. E, ainda que tenhamos excelentes formações, modelos e métodos, enquanto a insegurança for vista como apenas um problema a ser resolvido estaremos de alguma forma nos distanciando de parte crucial do que faz o nosso trabalho tão poderoso: nossa humanidade.

Insegurança: um lembrete de que somos humanos

Uma perspectiva informada pela ACT sobre a experiência de terapeutas em contato com o sofrimento pode ser vista nesse fragmento do livro Mindfulness for Two: “Como clínicos, devemos nos perguntar: estaria eu disposto a estar na presença do sofrimento se isso me permitisse estar na presença dos meus clientes? […] na medida em que somos intolerantes ao sofrimento, nos sentiremos compelidos, consciente ou inconscientemente, a nos afastarmos do sofrimento em nossos clientes e em nós mesmos. […] Quando nos afastamos do sofrimento, perdemos outras coisas, ricas e variadas, que estão inexoravelmente ligadas a ele. Valores e vulnerabilidades são derramados do mesmo recipiente.” (p. 8, Wilson, 2009). Partindo dessa base, podemos refletir sobre a insegurança vivenciada por todos nós em diversos momentos das nossas atuações na Psicologia Clínica. Se pudéssemos escutá-la profundamente, para além do seu conteúdo e do seu senso de urgência, o que ela nos informaria?

Não posso responder por todos, mas na minha autorreflexão encontro algumas respostas pessoais que podem ser parcialmente gerais. Vivemos um mundo complexo e entrelaçado, nada é preto no branco, as coisas mudam o tempo todo e sempre haverá alguém dizendo que estamos fazendo as coisas de uma maneira errada e que deveríamos fazer de uma outra forma. Assumir que, mesmo com todos os esforços, não temos garantias de sucesso pode ser terrivelmente assustador. Ao mesmo tempo, a humildade que emerge dessa condição é algo que nos permite genuinamente construir relações de intimidade com as outras pessoas. Assim, a insegurança não precisa ser vista apenas uma pedra no caminho, talvez ela seja também como um geodo preenchido por um material muito precioso.

Finalmente, gostaria de destacar que os pontos de vista aqui apresentados não constituem uma crítica à busca por uma formação profissional robusta, de boa qualidade e cientificamente amparada, algo que considero ser um compromisso ético dos profissionais da Psicologia. Porém, saliento a necessidade de atenção e sensibilidade às contingências (sobretudo verbais) que influenciam nessa busca. A necessidade de eliminar a insegurança a qualquer custo, somada à divulgação agressiva de produtos para esse fim, constituem um contexto propício para muitos dos problemas vivenciados por psicólogas(os) em relação às suas próprias atuações clínicas. Podemos nos perguntar: Qual tipo de relação com a insegurança gostaríamos de fomentar em nós mesmos e em nossos colegas de profissão (sobretudo os mais novos)? E que tipo de publicidade é coerente com os nossos Valores e com o amparo ao sofrimento humano?

¹Efeito Forrer ou Falácia da Validação Pessoal é um tipo de viés cognitivo que leva alguém a assimilar afirmações genéricas e vagas como sendo precisas e descritivas de suas experiências pessoais. Efeito muitas vezes associado à convicção que pessoas atribuem a práticas como astrologia e adivinhações (Howard & Howard, 2019).

Referências

Baljoon, R. A., Banjar, H. E., & Banakhar, M. A. (2018). Nurses’ work motivation and the factors affecting It: A scoping review. International Journal of Nursing & Clinical Practices, 5(1), 277.

Bridgeman, P. J., Bridgeman, M. B., & Barone, J. (2018). Burnout syndrome among healthcare professionals. The Bulletin of the American Society of Hospital Pharmacists, 75(3), 147-152.

Cialdini, R. B. (2012). As armas da persuasão. Rio de Janeiro: Sextante.

Crary, J. (2016). 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. Ubu Editora LTDA-ME.

Dalgalarrongo, G. J. M. (2023). Aprender a sofrer junto: perigos clínicos do anseio por salvar. In: Habilidades Terapêuticas na Prática da Psicoterapia. Santana do Parnaíba: Manole

Howard, J., & Howard, J. (2019). Forer Effect. Cognitive Errors and Diagnostic Mistakes: A Case-Based Guide to Critical Thinking in Medicine, 139-144.

Perez, W. F., Kovac, R., de Almeida, J. H., de Rose, J. C. (Org.). (2022). Teoria das Molduras Relacionais [RFT] Conceitos, pesquisa e aplicações. São Paulo: Instituto Par.

O’Neil, C. (2021). Algoritmos de destruição em massa. Editora Rua do Sabão.

Pariser, E. (2012). O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Editora Schwarcz-Companhia das Letras.

Soares, J. P., Oliveira, N. H. S. D., Mendes, T. D. M. C., Ribeiro, S. D. S., & Castro, J. L. D. (2022). Fatores associados ao burnout em profissionais de saúde durante a pandemia de Covid-19: revisão integrativa. Saúde em debate, 46, 385-398.

Wilson, K. G. (2009). Mindfulness for two: An acceptance and commitment therapy approach to mindfulness in psychotherapy. New Harbinger Publications.

Wolf, N. (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Editora Record.

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João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e das Ciências Comportamentais Contextuais no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

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