Exemplos de comportamentos que interferem na terapia na série Crazy Ex Girlfriend: “Transtorno de Personalidade Borderline é meu diagnóstico?”

Avisos: Este texto contém spoilers da série Crazy Ex-Girlfriend.
Para aqueles que não conhecem, Crazy Ex-Girlfriend é uma comédia musical exibida pelo canal americano CW e idealizada pelas comediantes Rachel Bloom e Aline Brosh McKenna. Para os brasileiros, as duas primeiras temporadas da série estão disponíveis no Netflix, e a polêmica e sensível terceira temporada está em exibição nos EUA. Atualmente, a série vem explorando as questões psicológicas da personagem principal, que foi diagnosticada com Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) e inicia o processo de terapia. Esta coluna vai abordar os comportamentos que interferem na terapia vistos no caso dessa personagem.

Crazy Ex-Girlfriend é produzida pelo CW e está disponível na NETFLIX.

O resumo da série é que Rebecca Nora Bunch (Rachel Bloom) é uma advogada Nova Iorquina bem-sucedida que decide largar o emprego e se mudar para a pequena cidade de West Covina, Califórnia, em busca de um amor da adolescência que por “coincidência” vive lá. Desde o início, a série aborda questões de saúde mental com humor e muita franqueza.

A música da abertura da primeira temporada resume bem as motivações da protagonista. Negando que tenha se mudado de cidade por causa de Josh, o ex-namorado de um breve verão em uma colônia de férias, Rebecca cria ativamente situações para encontra-lo, aproximar-se dele, da sua namorada, amigos e família, sempre alegando ser por “coincidência”. O primeiro episódio mostra que Rebecca costumava tomar uma medicação psiquiátrica, e dá-se a entender que ela tinha episódios de ansiedade e depressão. Ao mudar-se para West Covina, ela joga toda a medicação fora, pois o que “precisa para ser feliz” (sic) está na cidade. A série aborda o quanto a personagem coloca a responsabilidade de seu bem-estar psicológico nos acontecimentos externos relativos a Josh.

Apesar de não possuir uma alta audiência, Crazy Ex-Girlfriend é uma série elogiada pela crítica, e encontra uma voz ainda mais importante ao abordar de forma responsável o tratamento do sofrimento da personagem no sexto episódio da terceira temporada (Episódio Josh is irrelevant – Josh é irrelevante). Após vários desentendimentos com amigos, com a família invalidante e o término com Josh, Rebecca decide impulsivamente tentar suicídio tomando um frasco inteiro de medicações com vinho durante um vôo. Optando em seguida por chamar a aeromoça e pedir ajuda, ela é internada em um hospital em West Covina, ponto da história em que Rebecca receberá seu diagnóstico de TPB e iniciará seu tratamento.

Após a crise, Rebecca fica relutante em continuar o tratamento, pois já tentou vários outros que, em sua opinião, não tiveram efeito. Então, recebe a notícia de que será conversado com ela a respeito de um outro diagnóstico, o que a enche de esperanças. Na música “A Diagnosis (Um Diagnóstico)”, ela fala sobre como sempre soube que algo estava errado, que nunca havia sido compreendida por outros profissionais e que “armada” de seu diagnóstico poderá descobrir quem deve ser e todas suas preocupações acabarão.

Na música, Rebecca pula diretamente para um polo de esperança de maneira 8 ou 80; o diagnóstico pode ser uma solução fácil para todos os problemas enfrentados até ali: “Chega de pílulas ruins / Manias ou truques / Quem disse que não há uma solução fácil / Com um diagnóstico”

Porém, também fala sobre o senso de pertencimento e compreensão, e o fim da angústia de não saber o que realmente estava ocorrendo com ela: “Não me diga, “Não, irmã, Você não se encaixa” / Doutor prescreva a minha tribo /…/ Diga que todo esse tempo /Eu pertencia com as outras pessoas / Que compartilham meu diagnóstico/ …/ Não são perfeitos / Mas, pelo menos sabem quem eles são”

Entretanto, o polo de esperança acaba rapidamente. Rebecca se apresenta na terapia motivada e agitada, e recebe o diagnóstico de TPB do médico Dr. Shin. Ele orienta que ela terá mais informações em um encontro em grupo que ocorrerá após a consulta, e pede para que Rebecca não pesquise sobre o TPB na internet antes disso, pedido ao qual Rebecca responde prontamente que irá seguir.

O primeiro comportamento que interfere na terapia é que Rebecca vai ao banheiro da clínica e pesquisa sobre o diagnóstico. Na cena, nota-se que a personagem tem uma mistura de ansiedade e raiva do médico, por não ter respondido suas perguntas e ter pedido para que ela não buscasse informações. As informações que Rebecca encontra assustam: “Um dos diagnósticos mais estigmatizados…”; “Geralmente o tratamento dura toda a vida…”; “Transtornos de Personalidade são os mais difíceis de tratar…”; “O tratamento é lento e geralmente difícil…”; “10% das pessoas com TPB eventualmente se suicidam…”.

Todas as informações que Rebecca encontrou a deixam mais assustada e com medo, além de triste e para baixo. Isso a leva ao segundo comportamento que interfere na terapia, e que está diretamente conectado às emoções que a personagem apresenta no momento: ela não vai à reunião de orientação em grupo. Ela diz às suas amigas que estava triste demais para ir.

Revoltada com o diagnóstico, Rebecca realiza o terceiro comportamento que interfere na terapia: ela invade o consultório de sua antiga terapeuta (Dra. Akopian) durante uma sessão com um outro paciente e diz que é “uma emergência” (sic). Antes da invasão, ela fala para a amiga Paula que “Se ela (Dra. Akopian) soubesse como odiei esse diagnóstico, e como me deixou chateada, ela odiaria saber disso. Dra. Akopian só quer que eu seja feliz, e isso não parece felicidade.”, então juntas elas decidem ir imediatamente ao consultório pedir uma segunda opinião sobre o diagnóstico de Rebecca.

Receber um diagnóstico pode ser um momento delicado da terapia de um paciente, especialmente quando sabemos que existe a tendência de oscilar entre polos de idealização e desvalorização, e engajar-se em comportamentos dependentes do humor, como é o caso da personagem Rebecca. No tratamento de pacientes com TPB, é ideal que se converse cuidadosamente sobre o conceito de comportamentos que podem interferir na terapia. É necessário que o profissional também esteja sensível às vulnerabilidades do paciente e à ansiedade que envolve iniciar um processo terapêutico e receber um diagnóstico. Estas situações podem facilmente virar do polo da esperança renovada para uma situação assustadora que pode deixar o paciente se sentindo invalidado.

Na sua busca na internet, Rebecca encontra muitos mitos e informações desatualizadas sobre o TPB. Todas as informações que Rebecca encontrou a levam a desistir de comparecer a terapia, e ela não pôde obter informações confiáveis sobre qual é realmente o prognóstico do transtorno. Analisando os mitos, percebemos que muitas informações não levam em consideração os avanços recentes na área do tratamento do TPB.

Em um estudo que analisou as percepções e reações de trabalhadores da saúde mental através de uma revisão da literatura, foi apontado que a maioria dos profissionais sentia emoções negativas a respeito dos pacientes com TPB, tais como desconforto, ansiedade, frustração e apatia. Em geral os profissionais também se sentiam menos efetivos no tratamento destes indivíduos (Sansone & Sansone, 2013). Isso acontece porque os profissionais de saúde também estão sujeitos a reações naturais e humanas a comportamentos imprevisíveis, e marcadas flutuações emocionais com acentuada raiva. No documentário Back from the Edge (outro material essencial para entender o TPB), Marsha Linehan, pesquisadora responsável pelo desenvolvimento da Terapia Comportamental Dialética (Dialectical Behavior Therapy – DBT) fala que: “Você não pode ter relações interpessoais se você não é estável emocionalmente; é extremamente difícil conviver com alguém que te odeia um dia, gosta de você no outro e pode amá-lo no terceiro”

Obviamente, o paciente não é o único responsável e não está fazendo isso porque é uma pessoa ruim, mas sim porque esse é o jeito que ele aprendeu a agir. Existe uma interação transacional com o profissional de saúde, e cada um carrega sua responsabilidade. Enquanto o paciente está tentando ao máximo lidar com as flutuações emocionais, isso pode esgotar profissionais sem um treinamento adequado, deixando os pacientes ainda mais vulneráveis e esgotando mais o profissional, e assim por diante. Por isso, o profissional deve ter treinamento, apoio e cuidar seus limites pessoais para não chegar ao esgotamento (Linehan, 2009).

O estigma pode ser um obstáculo importante no tratamento do TPB, levando ao distanciamento emocional do profissional e a baixa tolerância aos comportamentos do paciente, o que, por sua vez, pode gerar uma resposta do paciente de maior desregulação emocional (Aviram, Brodsky, & Stanley, 2006). Entretanto, a boa notícia é que estudos indicam que intervenções voltadas para o treinamento profissional podem ajudar a combater o preconceito e aumentar a motivação dos profissionais (Knaak, Szeto, Fitch, Modgill, & Patten, 2015; Shanks, Pfohl, Blum, & Black, 2011). Especialmente, o estudo de Knaak et al. (2015) mostra que um workshop de três horas abordando o TPB e fundamentos da DBT teve um impacto positivo e significativo sobre as atitudes e intenções de profissionais de saúde mental. Pesquisadores identificaram alguns elementos que podem ser importantes em programas voltados para a diminuição do estigma em profissionais, dando destaque ao foco na possibilidade de recuperação, combate de mitos e treino de habilidades do que fazer /dizer (Knaak, Modgill, & Patten, 2014).

O foco na possibilidade de recuperação é um aspecto chave e relativamente recente no TPB. Historicamente conhecido como um transtorno duradouro e incapacitante, as últimas duas décadas de pesquisa mostram que isso não é necessariamente verdadeiro. Indivíduos com TPB apresentam uma redução de sintomas com o passar dos anos, e tem uma boa resposta ao tratamento e alta taxa de remissão, em especial se iniciado o tratamento precocemente (Biskin, 2015).

A DBT é uma abordagem que foi desenvolvida originalmente para o tratamento de comportamentos suicidas e condutas auto lesivas sem intencionalidade suicida, e ampliou-se para o tratamento do TPB. Atualmente, é o tratamento com maior suporte empírico para TPB, sendo considerado o padrão-ouro para o paciente com esse diagnóstico (May, Richard, & Barth, 2016). A DBT já foi abordada em profundidade em outras colunas do Comporte-se. O fato é que existe um tratamento com base científica para o transtorno, e que também possui evidências para ideação e comportamentos suicidas, além de outras patologias envolvendo severa desregulação emocional (Linehan & Wilks, 2015). Ou seja, é uma condição tratável, que pode ter bom prognóstico, especialmente se com o tratamento adequado e com suporte científico (Biskin, 2015).

Entretanto, às vezes existe o mito de que a terapia serve para trazer somente felicidade, e que se está causando desconforto e sendo difícil, então não é a terapia ou diagnóstico certo, como é exemplificado na série. A antiga terapeuta de Rebecca vai abordar todos os critérios com a personagem, e enquanto ela faz isso, passam cenas de cada uma das coisas que exemplificam porque ela pertence e se identifica com o diagnóstico. No final, Rebecca diz que se identifica com todos os nove critérios. Sugiro fortemente essa cena para psicoeducação sobre o TPB ou para pessoas que desejam saber mais sobre o transtorno. No Portal Comporte-se, já foi abordada a neurobiologia do TPB e o TPB sobre a ótica analítico-comportamental.

A série não pode citar diretamente a DBT pois é uma abordagem patenteada, mas faz várias referências que poderiam pertencer a essa terapia específica. Rebecca frequenta um grupo com outros pacientes; o grupo possui livros com tarefas; e finalmente, ela também faz acompanhamento com um terapeuta individual, que enfatiza que a psicoterapia é a base do tratamento de sua condição, e não as medicações. Para checar essa informação vale ver as referências sobre a efetividade do tratamento do TPB como May, Richard e Barth (2016).

Eu poderia ainda escrever muito mais, mas espero que os fragmentos contidos nesse texto tenham deixado um desejo de se aprofundar mais na série. Obviamente, alguns exemplos são exagerados pois a série é uma comédia, mas são baseados em situações que vemos na vida de maneiras mais ou menos leves. O fato é que algumas condutas de Rebecca podem gerar identificação (“investigar” as redes sociais de alguém; “aparecer” onde a pessoa está, etc) mas os comportamentos de Rebecca escalaram para coisas mais sérias durante o seriado, finalmente envolvendo até comportamentos que põe em risco sua vida e de outras pessoas. Se você é um profissional da saúde mental, espero que encontre aqui exemplos que ajudem a psicoeducar seus clientes, ou mesmo a lidar com estigmas sobre o TPB que as vezes carregamos. E se você é alguém que se identificou com esse texto e com o TPB, não se assuste. Existe um tratamento, e apesar das situações abordadas aqui fazerem parte de uma comédia, essa condição traz muito sofrimento e não é cômico passar por isso. Existem pessoas que podem ajudá-lo e acompanha-lo a entender mais o que se passa com você, e ajuda-lo a sofrer menos. Isso pode doer às vezes, mas vale a pena construir uma vida que você ama e quer viver, e você pode fazer isso.

Referências:
Aviram, R.B., Brodsky, B.S., & Stanley, B. (2006). Borderline personality disorder, stigma, and treatment implications. Harv Rev Psychiatry, Sep-Oct;14(5):249-56. Review. PubMed PMID: 16990170.
Biskin, R. S. (2015). The Lifetime Course of Borderline Personality Disorder. Canadian Journal of Psychiatry. Revue Canadienne de Psychiatrie, 60(7), 303–308.
Linehan, M.M. (2009). Terapia cognitivo-comportamental para transtorno da personalidade Borderline: guia do terapeuta. Porto Alegre: Artmed.
Linehan, M. M., & Wilks, C. R. (2015). The course and evolution of dialectical behavior therapy. American journal of psychotherapy, 69(2), 97-110.
Knaak, S., Modgill, G., & Patten, S. B. (2014). Key Ingredients of Anti-Stigma Programs for Health Care Providers: A Data Synthesis of Evaluative Studies. Canadian Journal of Psychiatry. Revue Canadienne de Psychiatrie, 59(10 Suppl 1), S19–S26.
Knaak, S., Szeto, A. C., Fitch, K., Modgill, G., & Patten, S. (2015). Stigma towards borderline personality disorder: effectiveness and generalizability of an anti-stigma program for healthcare providers using a pre-post randomized design. Borderline Personality Disorder and Emotion Dysregulation, 2, 9. http://doi.org/10.1186/s40479-015-0030-0
May, J.M.,Richardi, T.M., & Barth, K.S.(2016) Dialectical behavior therapy as treatment for borderline personality disorder. Mental Health Clinician: March 2016, Vol. 6, No. 2, pp. 62-67. https://doi.org/10.9740/mhc.2016.03.62
Sansone, R. A., & Sansone, L. A. (2013). Responses of Mental Health Clinicians to Patients with Borderline Personality Disorder. Innovations in Clinical Neuroscience, 10(5-6), 39–43.
Shanks, C., Pfohl, B., Blum, N., & Black, D.W. (2011). Can negative attitudes toward patients with borderline personality disorder be changed? The effect of attending a STEPPS workshop. J Pers Disord, Dec;25(6):806-12. doi: 10.1521/pedi.2011.25.6.806. PubMed PMID: 22217226.

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Escrito por Ana Cancian

Professora, supervisora e psicóloga clínica. Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS (bolsista CAPES). Formação Avançada em Terapias Comportamentais Contextuais pelo Intcc. Profissional treinada pelo Dialectical Behavior Therapy Intensive Training pelo Behavioral Tech/ Linehan Institute/ Intcc. Desenvolveu seu mestrado adaptando uma intervenção de Treinamento de Habilidades da Terapia Comportamental Dialética para obesos com dificuldades na regulação emocional. Integrante do Grupo de Avaliação e Atendimento em Psicologia Cognitivo Comportamental GAAPCC/PUCRS. Professora na Wainer Psicologia Cognitiva, Instituto IWP e Intcc.

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