Dilemas dialéticos como consequência dos ambientes invalidantes: Competência Aparente x Passividade Ativa

Caros leiores do Comporte-se, hoje discutiremos os comportamentos que envolvem “passividade ativa” e “competência aparente” na Terapia Comportamental Dialética (DBT) e a sua inter-relação com o modelo biossocial, compreendendo assim como eles podem ser desenvolvidos ao longo da infância. Esses conceitos são muito úteis, não só para entender o Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), mas também para compreender a nós mesmos, às crianças da nossa família ou próximas e assim contribuir ao exercício de funções de cuidado em geral que favoreçam a resolucão de problemas de vida. Após explicar os c7769037734_a715f4df10_zonceitos, discutirei como esses comportamentos se originam e se acentuam, usando alguns relatos da história de Amy Winehouse, apresentados por familiares e amigos no documentário Amy (2015, direção de Asif Kapadia) para ilustrar a discussão teórica.

Dilemas dialéticos?

No modelo standard da Terapia Comportamental Dialética temos álvos primários e secundários de tratamento. Nos álvos secundários estão comportamentos que caracterizam polos opostos de dilemas dialéticos. O paciente oscila entre um polo e outro sem conseguir um “meio termo” de equilíbrio. Trabalhamos os álvos secundários quando os álvos primários – comportamentos que trazem risco à vida, à terapia e à qualidade de vida – já foram alcançados e estabilizados, ou ao longo desse processo quando possível. Os álvos secundários são importantíssimos na DBT e há uma relação funcional entre esses padrões de comportamento e os álvos primários (Linehan, 2010).

No último artigo da coluna de DBT a Júlia Schäfer começou a abordar os alvos secundários e explicou o que são os dilemas dialéticos, então recomendo a leitura do texto anterior dessa coluna. Os textos estão organizados de modo a evoluir nos conceitos centrais da DBT com uma linguagem acessível e com exemplos, por isso é indicado acompanhar o sequencia dos assuntos.  Hoje, falaremos sobre “passividade ativa” x “competência aparente”, dilema dialético que interfere na resolução ativa de problemas (Linehan, 2010). Na sequência de textos, Diego Alano fala sobre outro dilema dialético, o “luto inibido” x “crises implacáveis”, finalizando assim a explicação dos dilemas dialéticos fundamentais na DBT.

Passividade ativa

Alguns exemplos gerais para entender o que é passividade ativa. Imaginemos uma sessão de terapia onde temos uma situação na qual o paciente espera que o terapeuta resolva seus problemas. Ou talvez, o paciente possa ter uma queixa de que os outros não estão assumindo um problema que diz respeito a ele e assim demande dessas outras pessoas alguma atitute. De um modo mais sutil, esses comportamentos podem aparecer nos relacionamentos, havendo uma atribuição de reposnsabilidade ao outro, somada à dependênc
ia emocional a esse parceiro. Nesses casos, temos comportamentos, ativos em alguma medida, de busca de solução, mas por uma via passiva, pois há um entendimento de que o outro deve fazer algo, pois a própria pessoa não se vê capaz de agir para solucionar os problemas. Às vezes, dependendo da pessoa ou da situação, podemos observar apenas passividade, um angustiante e total sentimento de impotência do paciente, que pode ou não eliciar a ajuda alheia. Marsha define a passividade ativa como “a tendência
a abordar os problemas de forma passiva e demonstrando impotência” (Linehan, 2010, p. 84).

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Competência aparente

A competência aparente é uma competência instável para resolver os problemas. Por isso, como terapeutas, corremos o risco de subestimar a capacidade do paciente para lidar e para resolver determinadas situações, colaborando com a passividade. Ou, por outro lado, há o risco de superestimar a capacidade do paciente e em seguida frustrar a nossa expectativa e motivação no tratamento, incorrendo possivelmente em invalidação do paciente (Linehan, 2010).

A avaliação distorcida, por familiares e terapeutas, sobre as reais competências dos pacientes em situações diversas tem algumas razões. Uma é que em meio a uma crise emocional a atuação do sistema cognitivo fica muito limitada, incidindo sobre o repertório comportamental. Além disso, Marsha aponta a supressão da expressão não verbal do paciente como um outro aspecto que contribui para erros ao presumirmos a condição emocional do paciente para agir de forma competente. Nesse caso, o paciente parece estar tolerando emocionalmente uma dificuldade, porque sua comunicação não verbal assim o indica, quando na verdade, não o está, e irá irromper em uma crise em breve (Linehan, 2010). Os pacientes aprenderam a “parecer competentes” como forma de adaptar-se com sua emoção intensa, acostumaram-se a esconder a emoção e a vulnerabilidade, assim observadores podem perceber pouco o início de uma ativação emocional (Koerner, 2011). E diante dessa falta de expressão e comunicação apropriada das vulnerabilidades, esses pacientes acabam ficando sem ajuda e desacreditados. A falha em apresentar uma esperada competência ainda pode levar a interpretações distorcidas sobre a intenção dos pacientes, comumente taxados de “manipuladores”.

Entendendo os comportametos de passividade ativa e competência aparente na teoria biossocial

Vamos agora pensar na relação desses comportamentos com a teoria biossocial. O ambiente e as nossas experiências têm um importante papel nos comportamentos de enfrentamento aos problemas, aqui polarizados na dialética “passividade ativa” x “comportamento aparente”. Convido o leitor a pensar então: desde pequenos, como aprendemos a ter competência para lidar com os nossos problemas?

Primeiro, de modo geral, aprendemos com nossos familiares a como lidar com nossas emoções, sejam elas mais ou menos intensas. Como já vimos, resolver problemas depende primeiro de regular minimamente a emoção para conseguir pensar em soluções e agir de acordo com nossos objetivos maiores. Segundo, aprendemos a ser mais perfeccionistas, críticos e julgadores ou a ter mais compaixão e empatia autodirigidos, para assim dar-nos o aval de tomar uma atitude com confiança e sem medo exagerado do resultado e das críticas. Terceiro, aprendemos a confiar em nós mesmos, nas nossas avaliações sobre as coisas que acontecem e na nossa habilidade de lidar com elas, ou, numa situação diametralmente contraria, aprendemos que não sabemos de nada, que o mundo é um caos e somos desqualificados para sair das confusões da vida. Podemos pensar que, “em alguma medida”, todos aprendemos a solucionar problemas e a acreditar em nós mesmos. Logo, alguma competência todos temos. Mas para muitas pessoas as competências para lidar com os problemas podem ser insuficientes e restritas (Linehan, 2010).

Proponho agora o exercício do raciocínio dialético sobre esses conceitos pensando em uma história real, conhecida de muitos e ao alcance de quem desejar saber mais. A talentosa e polêmica cantora e compositora Amy Winehouse faleceu aos 27 anos, em razão de um binge alcoólico e em decorrência de alguns anos de abuso de diversas substâncias psicoativas, concomitante a bulimia, que debilitaram seu organismo. Os pontos que veremos aqui, na verdade, caracterizam mais o potencial do ambiente invalidante para fomentar a passividade ativa e a competência aparente do que esses comportamentos em si. Destacando que nosso intuito é compreender o que ocorre nos ambientes invalidantes, essa transação entre a criança e o meio, sem julgar nenhum dos envolvidos. Tenhamos em mente uma premissa da DBT: as pessoas fazem o melhor que podem dentro das suas condições e limitações. Ainda que, sempre seja possível e necessário fazer melhor (Linehan, 2010).

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Quando Amy botava uma coisa na cabeça, ela botava isso na cabeça. Eu achava difícil me opor a ela. (…) Bem, eu apenas aceitei isso. Eu não era forte o suficiente para dizer ‘não’.” Relatou a mãe de Amy, Janis.

Quando Amy era bebê, seu pai, Mitch, iniciou um relacionamento extraconjugal e veio a separar-se quando a filha tinha 9 anos. Uma fala da cantora no documentário revela: “Meu pai nunca estava lá (…). Ele não estava lá para dizer ‘escute a sua mãe’”. Na avaliação de Mitch “Amy superou isso [separação] muito rápido”. Enquanto Blake, com quem ela relacionou-se por anos, afirmou que esse era o “trauma” de Amy.

“Um dia ela me disse o seguinte: ‘estou fazendo uma dieta ótima, mãe. Eu como o que eu quero e depois boto tudo pra fora.’(…) Eu achei que isso ia passar. Dai ela contou ao Mitch sobre isso e ele também meio que deixou isso de lado, não levando isso a sério.” Relatou Janis, sobre o início da bulimia, na adolescência de Amy.

Já aos 22 anos, impelida pelos seus empresários a tratar o uso abusivo de álcool, Amy afirmou que iria se seu pai entendesse que ela deveria ir. A resposta de Mitch foi deixar passar uma oportunidade de tratar com seriedade os problemas da filha: “eu disse ‘ela não precisa ir para a reabilitação, ela está bem’”.

“They tried to make me go to rehab

Amy WinehouseI said, no, no, no

Yes, I been black

But when I come back, you’ll know, know, know

I ain’t got the time

And if my daddy thinks I’m fine”

(Trecho de Rehab, 2006)

Podemos presumir nesses fragmentos a personalidade forte de Amy, desde pequena, e a inabilidade dos pais de lidarem com ela. Uma criança ou adolescente não está apto a saber o que é melhor para si, mesmo que seja “cabeça dura”, como Alex, irmão de Amy, caracterizou a irmã em uma entrevista veiculada no The Guardian, em 2013. “Temperamento forte”, como se fala popularmente, não é sinônimo de competência para se autogovernar. Mas, ao que tudo indica, ao longo da vida da Amy as coisas foram entendidas dessa forma e na liberdade ilimitada que acabou sendo-lhe concedida, ela foi deixada com sua competência presumida e aparente para lidar com as emoções, desafios e opressões de uma vida incomum, sem reais condições de conduzir-se bem.

Os pais da cantora parecem terem atribuído à filha competências que ela não tinha e assim seguiram uma conduta evasiva e negligente com Amy, como resposta ao temperamento forte dela, desde criança, e à seu sucesso artístico – que no entanto não era sinônimo de sucesso na condução da vida. Assim, Amy ficou à própria sorte, pelo menos em pontos específicos de sua vida, os quais foram decisivos: quando era uma criança fazendo birra e tendo que regular sua intensidade emocional sozinha; quando adolescente, enfrentando as inseguranças diante da própria imagem corporal e desenvolvendo bulimia; quando adulta jovem, para lidar com a dependência química e com a imensa e opressora transformação que a fama trouxe. Parece que a ajuda externa foi aquém do necessário para que ela aprendesse a lidar com as emoções, aprendesse a identificar seus problemas e reconhecê-los como importantes e dignos de atenção, para então saber quando buscar ajuda. Tragicamente essas habilidades não foram desenvolvidas a um nível suficiente de manutenção da saúde e da vida. Quando o ambiente atende as necessidades de uma pessoa precariamente ao longo do seu desenvolvimento, seja devido a uma inerente vulnerabilidade biológica ou a invalidação pervasiva, o indivíduo acaba aprendendo uma série de comportamentos problemáticos com o intuito de regular suas emoções (Koerner, 2011).

Nas palavras de Marsha, as consequências dos ambientes invalidantes:

  • “os problemas da criança emocionalmente vulnerável não são reconhecidos, existe pouco esforço para resolvê-los” (p. 59).
  • “A falta de aceitação e a simplificação excessiva dos problemas originais impedem o tipo de atenção, apoio e treinamento diligente […] necessários” (p. 59).
  • “O ambiente ensina a criança a oscilar entre a inibição emocional por um lado, e os estados emocionais extremos por outro” (p. 60) (Linehan, 2010).

Tais apontamentos poderiam ser para descrever a situação específica de Amy, mas são comuns a inúmeras outras pessoas que apresentam problemas devido à desregulação emocional. Marsha descreve o contingente que exacerba a desregulação emocional. O ambiente molda estados emocionais extremos quando invalida discretos (ou nem tanto) estados emocionais, afirma que não são importantes e que, portanto, deveriam ser suprimidos. Com frequência, só há algum reconhecimento das emoções vividas quando estas entram no extremo de uma crise. Assim temos tanto a inibição emocional quanto a explosão emocional reforçados. Esse mesmo funcionamento familiar contribui para fomentar a competência aparente. Ao ignorar ou diminuir problemas enfrentados pela criança os familiares não estão ajudando a criança a construir a sua autoeficácia e habilidades para lidar com os problemas.

Como terapeutas temos o desafio de não sermos invalidantes, como repetidamente o ambiente tendeu e tende a ser com esses pacientes. Nosso desafio é quebrar a cadeia de comportamentos do paciente que incitam tais comportamentos invalidantes alheios, ajuda-los a identificar suas emoções, a pedir ajuda de forma adequada e a enfrentar os problemas de forma competente. A formulação de caso detalhada e atenta são a base para o trabalho efetivo desses comportamentos. Não esmorecer em explicações que acabam na infrutífera “resistência” do paciente, mas compreender a sua dificuldade real, que precisa ser superada com treinamento de habilidades, estratégia e persistência. Enfim, reconhecer as capacidades do paciente sem superestimá-las ou subestimá-las. Esse é um dos tantos dilemas dialéticos com os quais nos deparamos no tratamento da desregulação emocional. Dilemas para pacientes e terapeutas. Cabe a nós, juntos, a missão de equilibrar aceitação e mudança ruma a uma vida valorosa.

 

Referências:

Koerner, K. (2011). Doing Dialectical Behavior Therapy: A Practical Guide (Guides to Individualized Evidence-Based Treatment). New York: The Guilford Press.

Linehan, M . M. (2010). Terapia cognitivo-comportamental para o transtorno da personalidade borderline. Porto Alegre: Artmed.

 

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