Consciência, Coragem, Amor e Análise Funcional – O quarteto inseparável da FAP

O modelo ACL e as 5 regras da FAP tem sido apresentados detalhadamente em diversos textos desta coluna, mais especificamente neste artigo. Da mesma forma, os conceitos de CRBs 1 e 2, Ts 1 e 2 também tem sido definidos e ilustrados em vários textos, como por exemplo neste . No presente artigo, parte-se do princípio de que o leitor já está familiarizado com esses conceitos. O diferencial deste artigo, tendo em vista a diversidade do material já disponível, será discutir a complementariedade e demonstrar o entrelaçamento entre os quatro pilares destacados no título quando se trata da prática da FAP. Para isso, serão apresentadas diferentes versões de uma interação fictícia entre um cliente e uma psicoterapeuta e analises das mesmas tendo como base o seguinte parágrafo do livro FAP Made Simple(Holman, Kanter, Tsai, & Kohlenberg, 2017, capítulo 4):

Consciência sem coragem pode resultar em saber que está preso (a determinado repertório problemático ou improdutivo**) mas sentir como se não fosse capaz de fazer qualquer coisa diferente, e consciência sem a habilidade de mostrar e receber amor pode ser vivido como uma sensação de vazio ou perda. Coragem na ausência de consciência pode resultar em correr riscos que variam entre ser impensados a perigosos e coragem sem amor pode resultar em reações imprudentes que tem dolorosas consequências para o outro. Finalmente, amor sem coragem ou consciência pode se transformar em um tipo de generosidade ou cuidado impotente no qual a pessoa nunca arrisca nada muito ousado ou disruptivo, ou perde oportunidade de se conectar acuradamente com a experiência da outra pessoa*.

A esse trecho, pode-se ainda adicionar a consideração de que os repertórios de consciência, coragem e amor do ou da psicoterapeuta, quando desconectados de uma análise funcional sólida e coerente de cada caso, pode resultar em um processo psicoterapêutico ineficaz, que patina, não avança em direção aos objetivos nem promove quaisquer mudanças terapêuticas.

O modelo ACL é uma ferramenta útil para analisar tanto o comportamento do ou da psicoterapeuta quanto da ou do cliente, porém, o presente artigo tratará apenas do comportamento do ou da psicoterapeuta como uma forma de dar modelo para a conduta clínica do profissional interessado em FAP.

CASO CLÍNICO FICTÍCIO:

Marculino, 23 anos, buscou terapia alegando que sua vida amorosa não vai tão bem quanto ele gostaria. Ele se descreve como um fracasso total na paquera, feio, desajeitado, desinteressante para as pessoas, e ainda teme que seu desempenho sexual não seja satisfatório para as meninas. O cliente tem uma família grande e é muito próximo de alguns primos e primas. Especialmente elas, são muito amorosas e carinhosas com Marculino, sempre o consolando quando ele desabafa sobre suas insatisfações consigo mesmo. Ele se sente incapaz de mudar e seus desabafos refletem isso, passando uma sensação a todos, inclusive para ele mesmo, de que seria impossível achar uma saída para seus conflitos. Sempre depois dos encontros com as primas, apesar de se sentir amado por elas, sente vergonha de suas lamentações e passa um tempo evitando encontrá-las.

Ângela é a psicoterapeuta de Marculino. Ela é apaixonada por seu trabalho. Em sua vida pessoal, sempre foi muito elogiada por ser uma pessoa solícita, acolhedora e carinhosa. Diz, brincando, que sempre foi uma “defensora dos fracos e oprimidos”. Ela se sente muitíssimo envolvida no caso de Marculino e tem dado seu melhor nas sessões com ele. Ela sente aperto no coração quando ele fala de si mesmo de forma depreciativa e sua vontade, lá no fundo, é salvá-lo dele mesmo e fazer passar sua dor.

Objetivos terapêuticos: Marculino deve aprender a ser mais consciente sobre seu impacto no outro; assumir responsabilidade e postura ativa diante do que não tem dado certo em sua vida e desenvolver repertório mais eficiente para se aproximar e manter as pessoas por perto, estreitando laços interpessoais.

Em uma sessão, acontece o seguinte diálogo:

A: Iai, Marculino, como você está?

M1: Estou bem. Tirando o fato de que aconteceu de novo de sair com minhas primas e elas terem que ficar ouvindo minhas lamentações. Me sinto péssimo. Sou um peso para elas.

A: Poxa, Marculino! Vejo que está sendo muito difícil para você lidar com essa sensação… Parece que você se sente envergonhado… Gostaria que se sentisse à vontade aqui para compartilhar esses sentimentos comigo.

M2: Me sinto realmente envergonhado e não respondi nada no grupo do whatsapp essa manhã… Sou um péssimo primo.

Assumindo essa conduta, Ângela foi extremamente amorosa com Marculino. Em termos comportamentais, pode-se dizer que ela respondeu de maneira reforçadora (já que a resposta aumentou de frequência – M2) ao relato do cliente. Apesar disso, se essa interação for olhada com mais cautela e levando em conta a história tanto do cliente quanto da psicoterapeuta, pode-se notar que há alguns problemas.

Se Ângela tivesse seguido acuradamente a Regra 1 da FAP, ela teria notado a ocorrência de um CRB1 na sessão. A forma depreciativa e de vitimização como Marculino relata a situação com as primas é muito similar à própria situação que viveu com elas. A reação de Ângela, por sua vez, também foi muito similar a das primas, que é justamente o que tem mantido o padrão que gera sofrimento em Marculino. Pode-se dizer que Ângela foi amorosa, mas não consciente da análise funcional dos comportamentos do cliente. Infelizmente, há pouquíssimas chances que esse tipo de conduta gere mudanças significativas no repertório de Marculino e, pelo contrário, estaria fortalecendo a resposta problemática em mais um contexto da vida dele, a psicoterapia. Ângela respondeu ao CRB1 do cliente com um T1, ou seja, um comportamento contraproducente para o caso.

Ângela teria mais chances de ser bem-sucedida em sua intervenção caso tivesse seguido a regra 1 e também a regra 2 da FAP nesse momento da sessão. A regra 2 recomenda que, a partir da consciência sobre os CRBs e de oportunidades de intervenção (regra 1), o ou a psicoterapeuta evoque comportamento de melhora do cliente, ou seja, crie condições para a emissão de CRB2.  Sob controle disso, Ângela poderia agir assim:

M: Estou bem. Tirando o fato de que aconteceu de novo de sair com minhas primas e elas terem que ficar ouvindo minhas lamentações. Me sinto péssimo. Sou um peso para elas.

A: Poxa, Marculino! Quando você fala assim eu acabo sentido que nunca iremos para frente! Percebe como o que está fazendo agora é a mesma coisa que você fez com elas? Você continua repetindo o mesmo erro!

Apesar de ter uma topografia evocativa, já que é um mando por um comportamento disruptivo do padrão problemático, essa intervenção também poderia não ter nenhum efeito terapêutico. Ângela estaria, assim, sendo consciente da ocorrência do CRB1 e corajosa, mas não consciente num nível mais amplo e nem amorosa. Agindo de forma desconectada de noções gerais de aprendizagem, as chances de sucesso são baixas. Ângela parece não ter considerado que 1. se as contingências que operam no cotidiano de Marculino só o ensinaram a agir assim, é esse o único repertório que ele tem até o momento; 2. punição não amplia repertório; 3. Marculino tende a esquivar quando se sente inadequado nas situações, e ouvir isso de sua psicoterapeuta poderia até mesmo gerar o abandono do processo. Essa intervenção provavelmente teria enorme efeito punitivo para Marculino.

Ângela também não conseguiu ser amorosa. Ela parece não ter considerado os respondentes aversivos que poderiam ser gerados no cliente, nem teve o cuidado de passar segurança e disponibilidade a ele. A relação entre consciência e amor é próxima. Quanto mais o ou a psicoterapeuta estiver conectado ou conectada com a sua própria história, com a história da ou do cliente e com o que acontece no momento da sessão, maiores as chances de entender o que o cliente precisa, de identificar qual seria a melhor forma de intervir, ou seja, a que teria maior probabilidade de ser aceita pelo cliente e quais são as dificuldades e capacidades do próprio ou própria psicoterapeuta que poderiam ser usadas neste momento.

Ainda que Ângela agisse de forma consciente, sabendo exatamente de tudo que lhe faltou saber no exemplo anterior, mas se esquivasse da oportunidade de evocar CRB2, ou seja, deixasse de agir com coragem, mais uma vez os objetivos da psicoterapia não seriam alcançados. Sua forma de esquivar poderia ser manter-se numa postura passiva durante os únicos 50 minutos de oportunidades que ela tem com Marculino durante toda a semana. Sem o seguimento da Regra 2 (evocar), o ou a psicoterapeuta fica sem, ou com pouquíssimas oportunidades de se comportar sob controle da Regra 3 (responder adequadamente), que por sua vez é o principal mecanismo de mudança da FAP.

Pode-se dizer ainda que saber fazer análises funcionais brilhantes, mas não ter repertórios interpessoais de consciência, coragem e amor bem treinados, poderia não ser o bastante para uma intervenção eficiente. Em diversos estudos tem sido demonstrada a relevância da qualidade da relação terapêutica e das habilidades interpessoais dos e das psicoterapeutas na predição de resultados clínicos. A capacidade técnica do uso da análise funcional não é, por si só, suficiente para a condução ideal dos casos.

Diante de tantas considerações, como então Ângela poderia intervir nessa situação? Como agir ao mesmo tempo com excelência técnica em análise funcional, consciência, coragem e amor? Há diversas topografias possíveis e a função sempre será o essencial. Será apresentado a seguir um exemplo de como essa interação poderia acontecer, mas as possibilidades são infinitas e variam de caso para caso, de momento para momento e de psicoterapeuta para psicoterapeuta.

M1: Estou bem. Tirando o fato de que aconteceu de novo de sair com minhas primas e elas terem que ficar ouvindo minhas lamentações. Me sinto péssimo. Sou um peso para elas.

  • CRB1 – autodepreciação e vitimização concorrendo com postura ativa e de responsabilização diante de seus impasses interpessoais.

A1: Marculino, você me permite apontar algo que notei agora para você? (Ele consente). Vejo que a situação mexeu com você e está lidando com sentimentos difíceis agora, mas não pude deixar de notar também a semelhança entre a forma como você fala de você com elas e a forma como falou de você agora comigo. Você nota isso também?

  • Notando o CRB1 e uma oportunidade de intervenção, a psicoterapeuta convida o cliente a se observar. Regras 1 e 2 foram seguidas.

M2: Agora que você falou, parece que é mesmo. Eu falo como se eu fosse um lixo, né? Mas é assim que eu me sinto…

  • CRB2 – Apesar de ainda ter elementos de 1, é uma aproximação do objetivo terapêutico de maior consciência de seus comportamentos. Em termos comportamentais, é um início de resposta de autoconhecimento, ou seja, descrição de seus próprios comportamentos.

A2: Entendo… Mas fico pensando… Se a gente continuar levando a conversa para esse rumo, ficaremos no mesmo ciclo. Você vai sair daqui e logo também se sentirá mal de ter agido assim comigo. No fundo, não estaríamos avançando, sabe? Sinto que esse caminho não nos ajudaria a entender melhor o que aconteceu ontem e nem a encontrar uma saída diferente… Acho que nosso maior desafio agora é quebrar esse ciclo, e estou aqui com você para que a gente faça isso juntos!

  • Regra 3 e 2 foram seguidas.

M3: Ok. Realmente, eu faço isso de novo e de novo e isso me maltrata. Mas ao mesmo tempo é o que já estou acostumado a fazer. É ruim para mim, mas ao mesmo tempo é mais fácil… Nem sei se faz sentido isso, estou falando uma loucura…

  • CRB2 – descrição cada vez mais acurada de seus próprios comportamentos. Ao final do relato, foi emitido CRB1 na forma de depreciação da própria fala.

A3: Acho que entendi sim… Você reconhece isso como parte do problema, mas ao mesmo tempo é mais fácil do que fazer o que você ainda não sabe… Dá medo mesmo tentar algo novo, mas podemos tentar… Consegue imaginar como seria então me contar o que aconteceu ontem sem se colocar como um lixo?

  • Psicoterapeuta extingue o pequeno CRB1 emitido no final da fala do cliente, ou seja, não responde a ele e sim à parte da fala que representa CRB2. Regras 3 e 2 foram seguidas.

M4: Talvez, se eu não só dissesse que eu fui um lixo, teria que dizer que eu estava me sentindo deslocado lá. Minhas primas estavam falando das pessoas com quem elas estavam saindo e eu não estou saindo com ninguém. Me senti deixado de lado e quando comecei a falar mal de mim mesmo elas acabaram olhando mais para mim…

  • CRB2 – descrição cada vez mais acurada de seus próprios comportamentos, apesar do desconforto que provavelmente uma descrição tão vulnerável como essa gera em seu corpo. Postura de responsabilização sobre suas ações no mundo.

A4: Sei que também está sendo difícil olhar para isso assim, mas sabe… Faz todo sentido para mim… Parece que meio que dá um sentido ao que você faz, apesar dos efeitos colaterais que isso tem… Foi a forma que você encontrou de entrar no assunto, de participar e se sentir mais parte do grupo… É isso?

  • Regra 3 foi seguida.

M5: É… Queria ter outra forma de conseguir isso que não fosse me colocando para baixo…

  • CRB2 – cliente orienta sua fala para a resolução de seu problema ao invés da antiga postura fatalista de depreciação.

A5: Isso que você falou me deixa animada! Sabendo o que você precisa agora assim, mais claramente, me faz ter vontade de pensar em como poderíamos fazer isso aqui, parece bem mais possível a gente ir em frente! Como é para você pensar assim?

  • Psicoterapeuta, descrevendo o efeito de evocar disponibilidade para o envolvimento e colaboração que o novo comportamento do cliente teve nela, aponta uma nova forma de se aproximar das pessoas que não o faz sentir envergonhado e sim empoderado diante de seu problema. Ela também procura checar com o cliente o efeito da intervenção. Regras 3, 4 e 5 foram seguidas.

M6: Parece que ficou menos impossível mesmo… Acho que também fico um pouco mais animado…

  • CRB2 – cliente orienta sua fala para a resolução de seu problema ao invés da antiga postura fatalista de depreciação.

Claro que em interações reais a desenvolvimento do diálogo pode ser mais complicado e talvez seja mais difícil chegar a esse ponto. Talvez o caminho seja mais longo. Nesse exemplo, o cliente já tinha repertório de descrever situações com uma lógica funcional (como em M3 e M4) e talvez em outros casos essa modelagem ainda deveria ser feita durante essa sessão, ou nessa e nas próximas. Nessa interação, a Regra 5 foi seguida quando foram feitas interpretações funcionais numa linguagem compreensível para o cliente (como em A2, A4 e A5). O ideal, para o aproveitamento total da função dessa regra, seria que fosse passado também um dever de casa ao final da sessão orientando o cliente a treinar os comportamentos de melhora emitidos na sessão em situações de sua vida cotidiana.

Ressalvas à parte, o importante é que é possível notar elementos de consciência, coragem, amor e clareza da análise funcional em todas as respostas contingentes da psicoterapeuta. Essa seria uma situação ideal e nem sempre o ou a psicoterapeuta atingirá esse 100%. Fica, então, o modelo de uma situação ideal e quanto mais disso puder ser feito, melhor.  

*Tradução da autora

**Especificação da autora

REFERÊNCIAS

Holman, G., Kanter, J., Tsai, M., & Kohlenberg, R. (2017). Social Connection and the Therapeutic Relationship as Contexts for Change. In. G. Holmam, J. Kanter, M. Tsai, R. Kohlenberg. (Eds.), Functional Analytic Psychotherapy Made Simple: A Practical Guide to Therapeutic Relationships. (pp. 13-26). Oakland, New Harbinger Publications.


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Escrito por jessicagomes

Psicóloga graduada pelo UniCEUB. Pós-graduada em Análise Comportamental Clinica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Formação em FAP e ACT pelo Instituto Continuum. Coordenadora da coluna de FAP do Comporte-se. Atua como psicóloga clínica em Brasília sob a perspectiva da Psicoterapia Analítico Funcional. Atendimento individual a adultos.

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