Brasil Paralelo distorce e manipula em documentário sobre depressão

Texto escrito em parceria com Letícia Alminhana, PhD.

Cá estou, sentado no meu escritório, em um feriado de Páscoa, para finalmente fazer um comentário público sobre o documentário da Brasil Paralelo (BP) sobre depressão publicado no ano de 2022. O título da peça da BP é “A Fantástica Fábrica de Sanidade”, brincando com o homônimo famoso, sobre chocolates. Por que essa relação? Vai saber. Chocolate e Depressão até podem vir juntos, em momentos de grande tristeza, mas o assunto não é piada, certamente.

Depressão é uma das maiores causas de adoecimento no mundo. Portanto, é um assunto que merece muito cuidado, carinho e atenção. Se for falar de depressão, fale com propriedade. Se não, não fale.

Resolvi escrever também porque, mais uma vez, ao buscar ALGUMA crítica feita pela Psicologia brasileira ao documentário, não achei nada (alías, achei 1 psicanalista elogiando o documentário). E por que é importante estabelecer uma crítica, ainda que breve? Os caras têm quase 4 milhões de seguidores no YouTube, outros milhões em outras redes e uma massa enorme de “assinantes”.

Sem contar que no whatsapp e telegram eles angariam milharesss de brasileiros e brasileiras. A BP é tão grande como presença na internet que já chegou a investir mais em propaganda no google que a própria Metta (dona do whatsapp, do instagram, do facebook!). O alcance é enorme, e só cresceu diante da polarização política do país, com seus crescentes debates sobre cultura, sociedade e comportamento. Sim, a BP é formadora de opinião, e tem um nicho grande admiradores.

Para assistir ao documentário completo você precisa ser “assinante” do Brasil Paralelo. Fora isso, existem Teasers, Lives e “Cortes” sobre o assunto.

Ninguém produz nada em um vácuo de valores.

Esse post não é sobre política, mas tudo é político. Não existem ações que emergem de algum vácuo sideral de valores.

Uma das grandes inspirações para a criação da Brasil Paralelo, (BP) em 2016, foi a figura controversa de Olavo de Carvalho, falecido recentemente, e um dos impulsionadores do pensamento conservador no Brasil. E a influência de Olavo na BP, não é simplesmente uma “opinião da internet”, porque alguns dos próprios fundadores já declararam isso.

Todo canal ou plataforma acaba tendo alguma identidade política, mais ao centro, à esquerda ou à direta. No caso da BP é notória – e assumida – sua posição em um campo que circula da direita para a extrema-direita, tanto sobre economia quanto cultura e sociedade. E é fundamental que saibamos disso para avaliar o documentário, já que desde o texto até a produção é 100% da BP.

Um dos termos mais recorrente em posturas ditas conservadoras – perceba – será a utilização de composições como “resgatar valores”, “resgatar a família”, “resgatar Deus”, etc. Sempre em contraposição com o que irão chamar de “corrupção”, “alteração”, “violação” de valores, da família, dos papéis de gênero, da religião, etc etc etc.

Olavo de Carvalho puto contigo por você ler este texto criticando a Brasil Paralelo

A BP é conhecida por tentar processar até mesmo pessoas que escrevem verbetes sobre a empresa em locais abertos como a Wikipedia. E apesar de todo alinhamento com o pensamento direitoso, eles se declaram neutros e apartidários. Sério?

Eu estou tentando ser o mais descritivo possível, e simplificando as coisas, mas é FUNDAMENTAL que você saiba que os materiais da BP não emergem de um “sovaco cósmico neutro de valores”, mas de um bolsão de pensamento de direita. Se fosse de um bolsão de pensamento da esquerda, eu falaria igual (porque já estão achando que só estou falando sobre o documentário porque meu pensamento é mais à esquerda. E não é isso!).

Posto isso, vou tentar mostrar que o documentário não deve ser levado tão a sério quanto sua produção audio-visual quer te levar a crer. Fique comigo.

ATENÇÃO – SPOILERS AHEAD!

Um bebê ou uma fluoxetina?

Depois que eles lançaram o documentário ficou ainda mais fácil demonstrar que a pegada ideológica do material manda para as cucuias qualquer REAL intenção de fazer uma crítica séria aos modelos de tratamento de depressão. Depois do lançamento da peça, a BP criou “cortes” para enganchar as pessoas para o filme principal. Vou colocar o thumb aqui de um desses cortes. E será o suficiente para minha crítica central.

Guarde bem essa imagem. Você voltará nela.

A imagem acima, em minha opinião, basta, para resumir muitas críticas que eu gostaria de fazer. E são muitas. Mas é feriado de Páscoa, e quero descansar e abrir ovo de chocolate. Portanto, tentarei ser cirúrgico.

O documentário faz uso de um storytelling sobre a vida de um casal, e começa com a cena de uma jovem mulher cozinhando de pé e servindo a comida, enquanto ele está sentado na mesa. Ao longo do tempo, ela começa a ficar sem vontade de fazer as coisas e acaba entrando em depressão.

O casal, ou melhor, a mulher acaba entrando em crise (supostamente) pelo vazio da vida contemporânea – redes sociais, séries televisas, luxos materiais, uma vida automática, etc – que afasta o amor, a conexão e o propósito da existência. O mundo contemporâneo e suas mazelas acabam impedindo a alegria da família, a conexão com Deus e a perpetuação. É preciso retomar o combo básico das bases conservadoras e tradicionalistas. É o caminho a ser trilhado.

Aqui a depressão não chega (não?)

Um mix de boas informações com um pano de fundo de narrativa conservadora

Usando essa narrativa da crise do casal como pano de fundo, o documentário vai circulando entre uma salada colorida de debates que REALMENTE fazem sentido, e são sim importantes, como: 1 – a crítica ao DSM e seu modelo categórico de patologia mental; 2 – as limitações e interesse da Big Pharma na farmacologia para depressão. E fazem isso através de bons e maus momentos, inclusive entrevistando alguns gringos relevantes.

Mas, ao fim, nos brindam com a RECONCILIAÇÃO do casal através da gravidez da mulher, e resgate da família nuclear, como a real superação da depressão. Um homem branco de meia idade, estilo George Clooney, uma mulher branca, mais jovem, deprimida e desamparada, e o varão, ainda no ventre materno de sua “maria”. Nada mais cristalino para montar um quadro conservador.

Destaca-se que o personagem masculino aparece em uma jornada do herói, o homem de meia idade, salvador, estilo Tom Cruise em Missão Impossível, buscando todos os tratamentos disponíveis, desde medicamentos até Terapia Cognitivo-Comportamental. Aquele homem aguentando tudo por sua mulher e pela família.

Tudo para, ao fim, em toda a sua glória viril, tendo percorrido consultórios médicos e psicológicos, sendo “desenganado”, consiga levar – enfim – para a esposa “jovem, perdida, doente e frágil” , seu amor e seu cálice sagrado. É o resgate retumbante, a salvação da princesa pelo príncipe, a vitória da família, através do símbolo da enorme barriga grávida.

NA FORÇA DO AMOR DA FAMÍLIA, e de sua perpetuação através do varão ainda embrionado, a real cura para a depressão.

E mais uma vez conduzindo a mulher ao seu verdadeiro “papel na nossa sociedade”, qual seja: gestar e cuidar dos filhos. Ponto final. Atenção: se você for uma mulher que busca se desenvolver na carreira e não deseja ser mãe, aí está a ameaça – a depressão está a sua espreita!

Por isso existe o corte acima, representado pela imagem, e as diversas falas, que estão presentes desde a live de lançamento do documentário, passando pelo teaser e pelo trailer, até chegar ao filme final. A mensagem passa por “estamos doentes porque existe muito mimimi”, “as indústrias nos enganam, então precisamos ser fortes e desbravar nosso caminho” para chegar na barriga grávida e bradar: “fora da família não há salvação”; “a mulher que não tem filhos só pode ter algum problema”. O resto é perfumaria, engodo e perda de tempo. Estão te enganando. Engravide sua esposa, e supere a depressão.

Boas e más informações juntas: uma estratégia

A escolha da narrativa é muito inteligente, ao misturar debates importantes e interessantes, celebridade e pseudocelebridades, pesquisas sérias com pataquadas e opiniões vazias. Você fica naquela: isso parece interessante; quantas pessoas inteligentes; caramba! Não sabia disso; etc etc etc.

celebridades gringas utilizadas para gerar respeito e autoridade

Esse tipo de estratégia de informação confunde o telespectador menos cético, que acaba trazendo o foco para as informações que parecem mais qualificadas – e até complexas – que acaba deixando de lado o storytelling do casal. Quase vira mensagem subliminar. Em 2022 o próprio TSE excluiu alguns vídeos da BP por estarem utilizando “duas novas modalidades de desinformação”: a primeira delas exatamente “juntar a manipulação de premissas verdadeiras” com dados duvidosos.

Além do mais, quase nenhum dos profissionais brasileiros entrevistados pesquisa, de fato, o campo da depressão. Nem o filho do Lair Ribeiro, nem os outros caras carecas ou barbudos que aparecem, nem mesmo as senhoras distintas que por ora surgem. Por que não convidaram algum(a) pesquisador(a) da área para falar? Temos grandes pesquisadores(as) do tema no país. Grandes laboratórios em grandes universidades públicas e federais.

Usar médicos, coachs e psicólogos de internet com pesquisadores reais é parte da estratégia. Se forem gringos então, aí fica ainda mais especial – “Uau! Tem até uns professores americanos!”. Usar recursos audio-visuais com padrão Netflix também é para impressionar. A BP tem muito dinheiro, o que ajuda eles a terem esse padrão internacional de áudio-visual. É tudo muito bem pensado. Eles querem fazer você crer que aquilo tudo é muito – MUITO – verdade.

E lembrem-se, para não perdermos de vista a grandeza de Deus, e mantermos o pack do conservadorismo em alta, saibam que nenhum profissional de Psicologia ou Medicina (segundo o documentário) é capaz de cuidar de você como Santo Tomás de Aquino.

Você não precisa de Psicologia Baseada em Evidências para cuidar da sua depressão. Um dos cortes do documentário mostra que Santo Tomás de Aquino é o melhor caminho para aliviar sua tristeza

A conclusão

O documentário “A Fantástica Fábrica de Sanidade” da BP, apesar desse tom geral de ideologia conservadora, tem até alguns bons momentos que poderiam se desdobrar em debates mais ricos. Mas eles se desenvolvem parcialmente apenas, e com um único fim.

Ao fim sobra uma peça publicitária onde se sobressaem os valores conservadores, mas que – em seu recheio – tem informações que podem ser úteis e que valeriam ser exploradas melhor. Debates atuais em Psicologia e Psicofarmacologia – importantes – acabam sendo enviesados a favor de um discurso bem claro sobre a “ordem das coisas” na sociedade conservadora.

No entanto, como acaba por ser uma peça publicitária, há o risco de servir unicamente com o propósito perigoso de desinformar sobre a depressão, depositando a culpa e responsabilidade da pessoa sobre a própria depressão. Coisa do tipo: “você está deprimida porque não quer ser mãe”; “você está deprimido porque não quer se casar”; “sabe por que você está assim? Porque se afastou da família; “Você está de mimimi, tenha mais força de vontade, se agarre em Deus, que você melhorará”. E irão te dizer que viram isso tudo em um documentário “muito bom” na internet.

Você está em depressão porque não sabe o que quer
Assuma sua vida e saia da depressão

Quem sabe poderíamos ser mais francos e mudar o nome do documentário para: “a fantástica fábrica de conservadorismo”? Não é só a repetição de uma história misógina que segue por séculos enviando a mulher de volta para a cozinha e para o papel de “triste, louca ou má”. Junte a esta fórmula uma idéia de selfmade person, que resolve por si, religada a seu Deus, para enfim resgatar o Eldorado pessoal e social – destino último de todos nós. Lugar onde a depressão não habita. Esqueça o DSM, esqueça as pílulas, esqueça essas psicólogas mal preparadas. Se agarre em seu fogão, em seu Deus, em seu homem, e – não se esqueça – tenha um bebê.

essas mulheres não conhecem a depressão
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Escrito por Tiago Tatton

piadista inveterado, torcedor do Flamengo e pai da Clara Luz. Nas horas vagas é psicólogo, especialista e mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG), doutor em Psicologia (UFRGS/RS e King´s College Londres), pós-doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS/RS). Diretor Geral da Iniciativa Mindfulness. Em 2016 completou o Mindfulness Advanced Teacher Intensive pela Universidade da California em San Diego (USA).

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