A prevenção do Coronavírus e o Paradoxo da Esquiva

A humanidade está vivendo, neste momento, uma situação completamente nova: a pandemia do novo Coronavírus, que se disseminou rapidamente em todos os continentes, provocando a doença Covid-19. Esta doença tem se manifestado de formas muito diferentes em cada indivíduo, desde quadros totalmente assintomáticos até quadros de síndrome respiratória severa que, em muitos casos, evolui para o óbito.

Uma vez que ainda não há medicamentos eficazes e seguros ou vacina que combatam essa doença, as medidas adotadas para reduzir o impacto da pandemia e a desaceleração da proliferação do vírus, envolveram a quarentena da população geral, incluindo o isolamento de casos suspeitos, fechamento de escolas e universidades e distanciamento social de idosos e outros grupos de risco. (Schmidt, 2020).

É evidente que a pandemia impôs mudanças substanciais na rotina das pessoas, desde medidas de distanciamento social na tentativa de mitigar e desacelerar a proliferação do vírus, até mudanças nos hábitos de higiene pessoal.

Segundo West, Michie, Rubin, et al. (2020), pelo comportamento humano ser o principal responsável pela transmissão da Covid-19, a mudança de comportamento é crucial para impedir a transmissão na ausência de intervenções farmacêuticas.

Nós, como analistas do comportamento, temos o papel de nos manifestarmos também em relação a essa questão, afinal, lidamos com mudança de comportamento e é exatamente isso que se espera da população como um todo, uma mudança radical no comportamento relacionado à higiene, auto-cuidado, etiqueta respiratória, proteção de si mesmo e dos outros.

Acreditamos que a ciência deve sempre estar no centro das decisões e, neste caso, a Ciência do Comportamento pode contribuir muito para a tomada de decisões relacionadas a mudanças comportamentais (individuais e sociais) para o controle de problemas enfretados pela humanidade, como a transmissão do COVID-19.

Tendo em vista que o coronavírus entra em nosso corpo pelos olhos, nariz ou boca, e que nossas mãos estão sempre em condição de potencial contaminação por tocarem em outras pessoas e superfícies que podem estar contaminadas, West, Michie, Rubin, et al. (2020) conduziram um estudo sobre uma estratégia de prevenção que envolve uma mudança de comportamento: evitar tocar a Zona T – olhos, nariz e boca.

Esta estratégia de prevenção visa evitar o contato com o estímulo aversivo (coronavírus). Em Análise do Comportamento esta resposta recebe o nome de ESQUIVA e é mantida por Reforçamento Negativo, ou seja, a resposta tem como consequência a evitação de um estímulo aversivo. Esta evitação aumenta a probabilidade de ocorrência futura dessa classe de respostas. Assim, não tocar na Zona T evita o contato do organismo com o coronavírus e, por isso, essa resposta é reforçada negativamente e aumenta em probabilidade de ocorrência e frequência futuras.

No processo de ESQUIVA a resposta EVITA um estímulo aversivo, ou seja, o estímulo aversivo não está presente quando a resposta reforçada ocorre. Então, a consequência de uma resposta de esquiva efetiva é que NADA acontece, isto é, o evento aversivo é esquivado com sucesso. Segundo Sidman (1989/1995, p. 136): “(…) esquiva impede que um evento indesejado aconteça, em primeiro lugar. Esquiva bem sucedida mantém afastados os choques, tornando a fuga desnecessária.”.

Entretanto, a literatura em Análise do Comportamento tem estudado o fenômeno denominado PARADOXO DA ESQUIVA, ou seja, uma esquiva bem sucedida afasta totalmente a presença do estímulo aversivo e, com isso, a ameaça deixa de existir, o que pode enfraquecer o comportamento de esquiva (que deixa de ter uma razão para acontecer) e, com isso, o comportamento de exposição ao estímulo aversivo reaparece. Sidman (1989, pgs.157 e 158) afirmou que “é necessária a punição para conseguir que comecemos a nos esquivar, e mais tarde, é necessário um lapso ocasional, com uma retomada da punição, para manter a esquiva funcionando. (…) Com a esquiva, o sucesso origina o fracasso: o comportamento enfraquece e parará a não ser que outro choque o traga de volta… Se a única razão para um aluno estudar for impedir reprovação, um fracasso eventual, ou quase fracasso, será necessário para mantê-lo estudando.”

Trazendo este fenômeno para a atual situação de prevenção ao coronavírus, vemos que, com o tempo e a aplicação sistemática das estratégias de prevenção disseminadas pelos órgãos de saúde, tal como o comportamento de não tocar na Zona T, vamos nos sentindo protegidos, porque realmente não ficamos doentes e nem ninguém ao nosso redor fica doente e, com isso, nos afastamos da presença do estímulo aversivo. Assim, aos poucos, vamos abandonando as estratégias de prevenção, que perdem a importância. Quando isso acontece aumenta a chance de a pessoa se contaminar e, havendo contaminação, toda a estratégia de esquiva é retomada por ela e pelas pessoas com quem convive, porque o estímulo aversivo torna-se novamente presente.

Assim, nós, Analistas do Comportamento, nos juntamos aos demais profissionais da saúde enfatizando a importância de manter, mesmo com a passagem do tempo e com o afastamento da ameaça, os comportamentos que evitam a contaminação (Ministério da Saúde, 2020), tais como:

  1. Lavar com frequência as mãos até a altura dos punhos, com água e sabão ou, então, higienizar com álcool em gel 70%.
  2. Ao tossir ou espirrar, cobrir nariz e boca com lenço ou com a parte interna do cotovelo. Não tocar olhos, nariz, boca ou a máscara de proteção com as mãos não higienizadas. Se tocar olhos, nariz, boca ou a máscara, higienize sempre as mãos como já indicado.
  3. Mantenha distância mínima de 1 (um) metro entre pessoas em lugares públicos e de convívio social. Evite abraços, beijos e apertos de mãos.
  4. Higienizar com frequência o celular, brinquedos das crianças e outros objetos que são utilizados com frequência ou possa ter o uso compartilhado.
  5. Não compartilhar objetos de uso pessoal como talheres, toalhas, pratos e copos.
  6. Manter os ambientes limpos e bem ventilados.
  7. Evitar circulação desnecessária nas ruas, estádios, teatros, shoppings, shows, cinemas e igrejas.
  8. Se estiver doente, evitar contato próximo com outras pessoas, principalmente idosos e doentes crônicos
  9. Dormir bem e ter uma alimentação saudável.
  10. Recomenda-se a utilização de máscaras em todos os ambientes, que funcionará como barreira física, em especial contra a saída de gotículas potencialmente contaminadas.

O uso de máscara tem sido fortemente recomendado como uma forma de evitar a disseminação de gotículas que por ventura possam estar contaminadas pelo vírus da Covid-19. Porém, como agir, para que a população diagnosticada com TEA (Transtornos do Espectro do Autismo) consiga utilizar a máscara e se torne um hábito de rotina o uso desse acessório?

As máscaras podem ser personalizadas com personagens de interesses da criança ou, ainda, estilizadas, a fim de aumentar a motivação para seu uso. Quanto ao manuseio desse acessório e cumprimento dos demais hábitos de higiene, esse indivíduo pode ser preparado através de história social, que contenha todas as etapas e estratégias para manter a pessoa evitando, ou seja, se esquivando com sucesso do contato com o vírus.

A história social é uma das estratégias que podemos usar para auxiliar essa população, seja porque elucida as contingências, seja porque servirá como ajuda visual para o cumprimento de cada etapa necessária e indicada como prevenção. O reforçamento arbitrário, tal como o uso da economia de fichas, também poderá ser associado e contingente ao cumprimento desses hábitos.

Com os procedimentos baseados na ciência da análise do comportamento é possível desenvolvermos e aprimorarmos os hábitos de higiene tão necessários nesse momento, principalmente no que se refere a regra de ouro que é não tocar na Zona T (olhos, nariz e boca).

Referências bibliográficas:

Coronavírus. Ministério da Saúde. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca>. Acesso em: 13 de Agosto de 2020.

Schmidt, B., Crepaldi, M. A., Bolze, S. D. A., Neiva-Silva, L., & Demenech, L. M. (2020). Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estudos de Psicologia (Campinas)37.

Sidman, M. (1995). Coerção e suas implicações. (M. A. Anderry, & M. T. Sério, Trad.). Campinas: Editoral Psy II. (Trabalho original publicado em 1989).

West, R., Michie, S., Rubin, G. J., & Amlôt, R. (2020). Applying principles of behavior change to reduce SARS-CoV-2 transmission. Nature Human Behaviour, 1-9.

Mini-currículos dos autores:

Claudia Romano PacíficoPossui graduação em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003) e mestrado (2005) e doutorado (2014) em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é diretora – Gradual-Grupo de Intervenção Comportamental, atuando principalmente nos seguintes temas: análise do comportamento, inclusão do autista na escola, autismo, educação especial e atendimento clínico de crianças.

Leila BagaioloPossui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000), mestrado em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003) e doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (2009). Atualmente é diretora, enquadramento funcional: psicologa – GRADUAL-GRUPO DE INTERVENÇÃO COMPORTAMENTAL, supervisão análise do comportamento da Universidade Federal de São Paulo e colaboração como analista do comportamento da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Processos de Aprendizagem, Memória e Motivação, atuando principalmente nos seguintes temas: análise do comportamento, autismo, leitura, educação especial e matching to sample. 

Juliana Godoi – Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006), Mestrado em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009). Atualmente é Psicóloga da Equipe de Viagem da Gradual – Grupo de Intervenção Comportamental.

Thaís Priore Romano – Psicóloga graduada pela Universidade Metodista de Piracicaba e pós-graduada em Terapia Comportamental pela USP. Mestranda em Análise do Comportamento Aplicada no Centro Paradigma. Atualmente é supervisora da equipe transdisciplinar no Grupo Gradual SP.

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Escrito por Grupo Gradual

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