Precisamos falar de TEPT: Cuidando de trauma e o desafio da covid-19

O transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, é uma condição que traz grande sofrimento à pessoa, com prejuízos significativos em várias áreas da sua vida. São comuns, por exemplo, uma deterioração dos relacionamentos interpessoais ou mesmo o isolamento social do indivíduo. Outra consequência possível é a piora da saúde física, muitas vezes acompanhada do abuso de drogas ou álcool, assim como a aquisição de comportamentos de risco. Uma coisa é certa: sempre acontece uma redução da qualidade de vida dessa pessoa.

Os sintomas e critérios diagnósticos do TEPT mais amplamente aceitos são aqueles descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria (APA), ou na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11), elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Simplificando, o principal critério definidor do transtorno é que tenha havido a exposição a um ou mais eventos traumáticos. Por isso, no linguajar técnico, costuma-se dizer que é a única condição psicológica com um marcador etiológico bem definido.

Esses eventos traumáticos incluem a experiência, o testemunho ou mesmo a tomada de conhecimento de uma ameaça grave à vida ou à integridade física, a si ou a alguém próximo, violência sexual e ainda a exposição recorrente e direta a tais eventos. Além disso, a configuração do TEPT também requer que ocorra a combinação de um conjunto de sintomas. Dentre eles estão pensamentos ou pesadelos intrusivos que provocam a experiência de revivência do trauma; a evitação de qualquer coisa que possa lembrar o evento; sentimentos negativos de culpa sobre si e em relação ao mundo exterior; ou ainda um estado de alerta constante e intenso, que ocasiona insônia, ansiedade, sobressalto, falta de concentração e irritação excessiva. Existem escalas e questionários específicos para ajudar no diagnóstico.

No Brasil, o estudo mais completo a calcular a incidência do TEPT na nossa população foi realizado nas metrópoles de São Paulo e do Rio de Janeiro. Um dos seus achados foi que, ao longo da vida, 86% dos paulistanos e 88,7% dos cariocas são expostos a algum evento potencialmente traumático, e chama a atenção que a maioria dessas pessoas —quatro quintos no Rio e três quartos em São Paulo— é exposta a múltiplos eventos traumáticos. São números altos, por si mesmos e quando comparados aos de outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, as estimativas variam de 55% a 90% de exposição a eventos potencialmente traumáticos ao longo da vida.

Nem toda exposição a eventos potencialmente traumáticos resulta em um diagnóstico de TEPT. Segundo o estudo anteriormente citado, em São Paulo a prevalência do transtorno ao longo da vida é de 10,2% para a população em geral e de 14,7% entre as mulheres. No Rio de Janeiro os percentuais foram um pouco menores, de 8,7% e 11,1%, respectivamente. Para se ter uma ideia do que isso significa, caso a prevalência em nível nacional se aproxime dos números do Rio, estamos falando em um contingente de mais de 18 milhões de pessoas passando por essa agrura em algum momento de suas vidas, ou 12 milhões de mulheres.

Lamentavelmente, é provável que a pandemia da covid-19 agrave ainda mais esse quadro. Isso tende a ocorrer em razão da quarentena e das medidas de distanciamento social, das sequelas suportadas por sobreviventes e familiares de vítimas, sem falar dos membros das equipes médicas e de outras profissões essenciais diretamente expostos a situações potencialmente traumáticas. E como se não bastasse, há fortes indícios de que a violência doméstica e os abusos sexuais, problemas crônicos no país, podem aumentar ao longo do período de confinamento, penalizando desproporcionalmente as mulheres e as crianças, e deixando cicatrizes emocionais duradouras.

As terapias baseadas na análise do comportamento podem contribuir para amenizar o sofrimento de quem apresenta sintomas de TEPT ou de trauma em geral. Para esse fim, a Terapia de Exposição Prolongada (EP) é reconhecida como uma das que apresenta evidências mais robustas de eficácia. Apesar disso, essa opção ainda é encarada com uma dose de resistência por parte dos psicólogos, que muitas vezes preferem caminhos alternativos, mesmo quando têm alguma familiaridade com ela. É comum a crença, infundada, de que essa terapia não é adequada frente a casos mais complexos, em que se apresentam condições de comorbidade, ou mesmo que ela impõe sofrimento desnecessário aos clientes. De todo modo, taxas relativamente altas de abandono do tratamento sugerem que muitos clientes têm dificuldade para entrar em contato com memórias dolorosas durante esse processo terapêutico, ainda que devidamente instruídos sobre a razão da exposição. Além do mais, como acontece em qualquer tratamento psicológico, nem todas as pessoas respondem plenamente a esse tipo de intervenção.

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) é uma prática baseada em evidências que tem despertado crescente interesse no cuidado do TEPT, seja como tratamento independente ou em combinação com a EP. Adiante serão apresentadas algumas linhas gerais dessa interação, que além de poder aumentar o nível de resposta da Terapia de Exposição Prolongada, propicia uma intervenção mais plena de significado, elevando assim o grau de aderência dos clientes. Aliás, é interessante notar que essa é uma via de mão dupla, uma vez que já surgem na literatura evidências preliminares de que a EP ajuda a reduzir a esquiva experiencial, um dos alvos terapêuticos da ACT. Antes de mais nada, porém, é importante enfatizar que a junção entre ACT e EP não é fruto de um ecletismo teoricamente incongruente. A ACT é em essência uma terapia de exposição, e tem uma compreensão conceitual coerente a respeito desse tipo de terapia.

Na ACT, a exposição é definida como uma apresentação organizada de estímulos que anteriormente restringiam o repertório comportamental do indivíduo, em um contexto projetado para garantir a expansão desse repertório. Uma diferença crucial em relação à visão clássica de exposição é que a ACT não tem como objetivo reduzir a ansiedade. Na verdade, não há uma preocupação principal com sintomas de um modo geral, pois o foco das intervenções recai sobre certos processos psicológicos de mudança inerentes ao modelo, os quais por sua vez dão a ele uma propriedade transdiagnóstica. Ou seja, propõe-se a ser útil para vítimas de trauma, com ou sem diagnóstico formal de TEPT.

Isso significa promover um novo aprendizado ou, na linguagem da Teoria das Molduras Relacionais (RFT), um dos pilares da ACT, derivar novas relações entre estímulos em um contexto verbal através do qual se experimentam os pensamentos e sentimentos. Coerentemente, o conteúdo, a forma e a frequência desses comportamentos encobertos perdem importância frente à sua função. Na prática, os objetivos primários são diminuir a esquiva experiencial e aumentar a flexibilidade psicológica da pessoa. Por meio sobretudo de metáforas e exercícios experienciais, ganha-se acesso aos processos de aceitação, atenção ao momento presente, eu como contexto, desfusão cognitiva, definição de valores e ação comprometida. Este não é o lugar para uma descrição pormenorizada do modelo ou das técnicas disponíveis, mas vale a pena uma breve incursão sobre seus aspectos essenciais, com o olhar voltado para o tratamento do TEPT.

A atenção ao momento presente é um processo que de certa forma permeia e dá suporte a todos os outros processos da ACT, uma vez que a presença integral do cliente no momento da sessão, em interação com o terapeuta, é pré-condição para a eficácia do tratamento. Uma pessoa com TEPT tende a se apoiar em comportamentos de fuga e de esquiva que acabam por prejudicar sua capacidade de discriminar e permanecer em contato com pensamentos, emoções e sensações. O trabalho terapêutico busca colocá-lo em contato com a experiência imediata, o agora, e afastá-lo tanto de um passado quanto de um futuro conceitualizados. Portanto, diz respeito ao desenvolvimento da habilidade de alocar a atenção intencional e flexivelmente no ambiente, encoberto ou externo, por meio, por exemplo, do mindfulness.

O processo de aceitação diz respeito à disposição (willingness) para abraçar, e não meramente tolerar, experiências privadas negativas. Em outras palavras, ajuda-se o cliente a desenvolver uma disposição para viver as experiências de forma aberta, sem tentar fugir ou esquivar-se. Ao mesmo tempo, é importante que ele perceba a insuficiência e os altos custos dos esforços para controlar os estímulos aversivos encobertos, como as lembranças traumáticas e as sensações de medo e ansiedade que as acompanham. Como é fácil perceber, este processo vai exatamente na direção contrária do que uma pessoa com sintomas de trauma costuma fazer, sem nenhum sucesso duradouro.

Uma vítima de trauma tipicamente apresenta sentimentos e pensamentos de culpa vinculados ao desenvolvimento de um autoconceito que tende a tornar o senso de si equivalente às suas experiências. O trabalho em torno do processo do eu como contexto, ou eu observador, visa aprimorar a tomada de perspectiva da pessoa, tornando-a capaz de estar atenta a essas experiências sem que o conteúdo delas defina o conceito que tem de si mesma. Assim, por exemplo, ser uma pessoa que tem alguns medos, tanto quanto alguns sonhos, mas não uma pessoa medrosa.

Através do processo de desfusão cognitiva pretende-se que pensamentos, sentimentos e outros eventos encobertos sejam encarados a partir de uma perspectiva distanciada, retirando-lhes o caráter literal que caracteriza um estado de fusão cognitiva. Vale dizer, tais eventos serão percebidos como produtos passageiros da linguagem. Eles podem ou não ser úteis e são experiências que vêm e no momento seguinte irão embora. O objetivo da desfusão cognitiva é afrouxar o apego rígido a regras verbais, previsões ou auto-avaliações, mesmo quando elas não trazem benefício algum. Para quem sofre com o TEPT, essa pode ser a diferença entre viver uma vida governada por pensamentos e medos como “nunca estarei em segurança” ou “é tudo culpa minha”, e na qual interações sociais “não valem a pena”, ou outra em que haja maior flexibilidade psicológica e comportamental.

No contexto da ACT, os valores são definidos como padrões de atividade contínuos, livremente escolhidos e verbalmente construídos, que são intrinsecamente reforçadores. Já a ação comprometida nada mais é do que comportar-se de maneira coerente com esses valores. Portanto, identificar valores significa ensinar o cliente a estabelecer relações verbais que aumentam o valor reforçador das consequências produzidas por comportamentos consistentes com esses valores. Em relação à terapia do trauma, isso é especialmente relevante pois possibilita o engajamento em atividades significativas a longo prazo, ao mesmo tempo em que se experimentam ansiedade, angústia ou sensações físicas desagradáveis, entre outros. Além disso, a ação orientada por valores facilita o próprio trabalho de exposição, propiciando um senso de propósito para superar as dificuldades imediatas.

É importante ressaltar que as memórias traumáticas não podem ser apagadas. Diversos estudos mostram que mesmo quando tais lembranças diminuem de intensidade ou deixam de causar sofrimento psicológico, por exemplo após uma EP, elas podem reemergir, acompanhadas do medo e da ansiedade vivenciados anteriormente ao tratamento. Na ACT, jamais se busca suprimir ou resistir a pensamentos e sentimentos, mas sim estabelecer novas relações verbais e significados na presença dessas experiências negativas.

Para terminar este artigo, uma metáfora, aprendida com Russ Harris, ilustra como o cliente passa a se relacionar com as experiências do trauma, ao beneficiar-se do tratamento da ACT: — Pense sobre o que mais apavora você em filmes de terror. Seriam fantasmas, forças do mal, psicopatas sanguinários? Agora, imagine-se vendo um filme assim apavorante em uma tela bem grande, em uma noite de tempestade, completamente só, numa casa vazia no meio do nada. Assustador? Esse é o trauma, o lugar que ocupa da sua atenção, os medos que evoca. Pois bem, ao invés disso, imagine que esse mesmo filme está agora sendo exibido na tela do seu celular, que está em cima da mesa da sala, durante uma tarde ensolarada, em que você está com amigos e família, conversando e comendo alguma coisa, ouvindo música, quem sabe com as crianças assistindo a um desenho na TV. O filme de terror ainda está ali, por perto, mas já não parece tão ameaçador, não é mesmo?

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Escrito por Michelli Cameoka

Psicóloga comportamental. Mestranda em Psicologia Clínica na UnB. Graduada pelo UniCEUB. Formação em análise comportamental clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Especializada em Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), Teoria das Molduras Relacionais (RFT) aplicada à clínica e em sua integração às terapias de exposição voltadas ao TOC, ao TEPT e aos transtornos de ansiedade em geral. Concluiu o ACT BootCamp®️ na Filadélfia (EUA), com Steven Hayes, Kelly Wilson e Robyn Walser, bem como o treinamento intensivo de Exposição e Prevenção de Resposta (EPR) do Centro para o Tratamento e Estudo da Ansiedade, da Universidade da Pensilvânia, fundado por Edna Foa. É membro da Association for Contextual Behavior Science (ACBS). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1155921146785360. e-mail: micameoka@gmail.com

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