A violência entre parceiros íntimos está aumentando na pandemia?

            Diversas notícias relatando aumento da violência entre parceiros íntimos (VPI) durante a pandemia têm sido veiculadas pela imprensa. Apesar de serem dados preliminares que precisam de consolidação, pesquisadores da área têm indicado que é provável que essa violência de fato teve um aumento (Usher, Bhullar, Durkin, Gyamfi & Jackson, 2020). Nesse texto, irei explorar três possíveis razões para esse aumento.

            O primeiro seria que com maior tempo em casa e com poucas saídas à rua, os comportamentos de controle, como a supervisão dos contatos sociais da parceira ou do uso de redes sociais, se tornam mais frequentes e têm consequências reforçadoras imediatas. Controle coercitivo na VPI ocorre na forma de consequências para a vítima, mas também do seu potencial aversivo a partir da história do casal, com isso possui aspectos interrelacionados entre o evento atual da violência e a história prévia do relacionamento. Como apontam Hamberger, Larsen e Lehrner (2017) três aspectos do controle aversivo são importantes na VPI: 1) a intencionalidade do agressor no controle da vítima; 2) a percepção negativa da vítima sobre o controle e; 3) o controle relacionado com ameaças para a manutenção dos comportamentos da vítima. A presença constante do casal na residência pode facilitar o acesso do agressor à vítima e, consequentemente, gerar mais controle. Dessa forma, não somente há uma maior chance de violência física em situações em que o potencial agressor sinta que seu controle foi afetado, mas também um aumento de violência psicológica causada pelo controle coercitivo desse parceiro. O controle do parceiro pode envolver também uma ideia de “proteção” da parceira do contágio, isolando-a e a deixando sem contatos sociais através de estratégias de medo de contágio, por exemplo (Usher et al., 2020).

            A segunda hipótese seria um reforçamento negativo do comportamento agressivo a partir da diminuição das notificações ou possibilidade de notificação para a rede de proteção. Com a menor ida das pessoas aos locais de trabalho e menor contato com amigos e familiares, a possibilidade de notificação da violência por parte de outras pessoas poderia diminuir. De acordo com Usher et al. (2020), a possibilidade de notificação ficaria mais evidente para vizinhos. Campbell (2020) afirma que os vizinhos podem ser membros protetores de famílias em situação de violência ao reportar suspeitas de violência para os equipamentos da rede. Esse autor utiliza a terminologia mais atual da área, ao falar em famílias em situação de violência. Com isso, a ideia é apontar o impacto global da violência, mesmo entre aqueles que não sofrem/praticam diretamente.  Essa diminuição da possibilidade de notificação pode estar relacionada com um aumento dos casos de violência, com a retirada das possíveis punições pelo comportamento agressivo.

A terceira possibilidade é uma menor capacidade de adaptação dos indivíduos agressivos frente as mudanças ambientais causadas pela pandemia. A pandemia causou mudanças abruptas nas relações sociais e laborais na nossa sociedade que geram muito estresse e necessidade de maior adaptação comportamental frente a essas condições. Modelos que avaliam estresse e adaptação têm sido utilizados para tentar compreender como os indivíduos têm se adaptado frente as mudanças postas pela quarentena (Carvalho, Moreira, Oliveira, Landim, & Neto, 2020). Pesquisas sobre a VPI durante a pandemia poderiam focar nesse aspecto e verificar se o repertório de famílias em situação de violência apresenta diferenças em relação aquelas sem violência. Outra possibilidade seria estabelecer práticas que consigam promover a resiliência, isto é, a adaptação das pessoas durante a quarentena através de novas habilidades comportamentais (Rosenberg, 2020). Novamente, esse seria um tema que precisaríamos de dados de pesquisa para confirmar se é possível a promoção de novas estratégias de adaptação que estejam relacionadas com uma diminuição da violência entre parceiros íntimos.

            A pandemia afetou as relações familiares de maneira abrupta. A quarentena e o isolamento social modificaram as dinâmicas familiares e os comportamentos dos indivíduos devido ao estresse da pandemia, em conjunto com os problemas sociais enfrentados no Brasil. Pesquisas nacionais devem investigar como os comportamentos dos agressores e vítimas foram afetados pela pandemia para intensificar possiblidades de intervenção tendo em vista a prevenção da violência durante e após a pandemia. Neste momento, a ausência de dados confiáveis para uma Psicologia baseada em evidência é o maior obstáculo dos profissionais.

Para saber mais:

Campbell, A. M. (2020). An increasing risk of family violence during the Covid-19 pandemic: Strengthening community collaborations to save lives. Forensic Science International: Reports, e100089.

Carvalho, P. M., Moreira, M. M., Oliveira, M. N. A., Landim, J. M. M., & Neto, M. L. R. (2020). The psychiatric impact of the novel coronavirus outbreak. Psychiatry research, 286, e112902.

Hamberger, L. K., Larsen, S. E., & Lehrner, A. (2017). Coercive control in intimate partner violence. Aggression and Violent Behavior, 37, 1-11.

Rosenberg, A. R. (2020). Cultivating deliberate resilience during the Coronavirus Disease 2019 pandemic. JAMA pediatrics.

Usher, K., Bhullar, N., Durkin, J., Gyamfi, N., & Jackson, D. (2020). Family violence and COVID‐19: Increased vulnerability and reduced options for support. International journal of mental health nursing. https://doi.org/10.1111/inm.12735

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Escrito por Sidnei R. Priolo Filho

Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná em Curitiba.

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