Pandemia e vida cotidiana: um olhar clínico analítico-comportamental

Estamos vivendo em meio a pandemia de COVID-19, contexto que tem influenciado muitos outros com que interagimos e em que convivemos. Nas profissões e na rotina de casa, nos relacionamentos e sobre nossos desejos, necessidades, consumo e prioridades, a pandemia está exercendo uma função determinante. E para tentar compreendê-la na prática, retomo brevemente alguns fundamentos da Análise do Comportamento.

Os níveis filo e ontogenético
Somos seres formados a partir do repertório da espécie, respondendo ao meio tanto com a sensibilidade inata a estímulos que evocam reflexos e padrões fixos de ação (Baum, 2006), como com a sensibilidade aprendida por contato com o ambiente que evoca e reforça comportamentos, direta e também indiretamente – via verbal, com palavras e símbolos treinados em relações arbitrárias e convencionadas com outros eventos (i.e., em relações de coordenação, oposição, distinção, comparação, hierarquia, causalidade, em relações espaciais, temporais e dêiticas), capazes de controlar nossos repertórios (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001).

O nível cultural
Com a evolução do comportamento verbal, tornou-se possível o desenvolvimento cultural, contexto em que as atividades humanas cotidianas passaram a incluir reforçadores condicionados muito distintos dos disponíveis no ambiente natural não social, sendo a principal fonte mediada verbalmente. Tais estímulos comumente se referem a aparência física, valor material e prestígio social. Nesse sentido, roupas, por exemplo, que essencialmente protegem o corpo, também conferem um tipo especial de status, a depender de tecidos, modelagens e, claro, marcas. Ocorre que o mundo abstrato constituído pela linguagem sustenta uma relação de substituibilidade com o mundo ‘literal’ a que está arbitrariamente relacionado (Sidman, 1994), de modo que nos comportamos diante de um – no exemplo, a roupa que dá conforto, abrigo térmico, proteção contra ferimentos – como se fosse o outro – o próprio status.

Os três níveis de seleção em nossas vidas cotidianas
Se a cultura e os grupos sociais estabelecem contingências que influenciam o contato dos indivíduos com determinados aspectos de seu meio, externo e interno, as relações a que respondemos ao buscarmos pelos reforçadores sociais próximos, mais frequentes e imediatamente de maior magnitude, podem se tornar bastante incongruentes com a obtenção de reforçadores naturais e intrínsecos, de menor magnitude em curto prazo. Isso porque o valor que as coisas têm pode ser substituído pelo valor que as palavras mantêm… Quer ver? Imagine que você decida comprar um carro e, além de escolher a marca e o modelo, esteja selecionando quais opcionais acrescentar. Dentre as diversas opções, tem a óbvia e, portanto, praticamente obrigatória escolha de colocar rodas de liga leve, um item que, mesmo não alterando significativamente o funcionamento do veículo, tem uma aparência primorosa! Todos querem um carro com rodas de liga leve, mas… exatamente por quê? Um motor com nova tecnologia é melhor porque aumenta a performance do carro, sensores e luzes são melhores porque oferecem segurança, uma tela multimídia é melhor por permitir o uso de GPS e outros aplicativos úteis… E roda de liga leve é melhor pelo design, produto de comportamentos verbais e sociais que instalam uma cultura. O que, no entanto, não seria um dilema particularmente importante se não ilustrasse uma questão mais abrangente e profunda: as relações que estabelecemos entre estímulos, especificamente aquelas que não apresentam coerência funcional no mundo ‘real’, mas que mantêm a congruência sobretudo no mundo social – convencionado e arbitrário. A nossa capacidade de relacionar eventos a partir de propriedades não formais (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), como roda de liga leve e primor, é responsável amplamente pela complexidade das experiências humanas, em que redes de significado interagem e se transformam.

Aí a pandemia…
… estabeleceu uma relação de hierarquia com nossas vidas cotidianas, que agora pertence a esse peculiar momento histórico. Ao comprar um carro e, no limite, ao defrontar-se com uma pandemia, a fragilidade das prioridades estabelecidas pela sociedade é exposta. O tecido social, sustentado principalmente pela linguagem, está se descosturando e, nesse cenário, é possível que estejamos mais sensíveis ao que somos: humanos, vulneráveis, mortais; do que a como somos: bem-sucedidos, célebres, bonitos. Avaliações, julgamentos, opiniões e toda espécie de verbalização que antecipa nosso acesso à satisfação estão sendo confrontadas com uma rara proximidade temporal entre nos comportarmos, mudarmos o ambiente imediato e sermos tão logo também transformados pelo meio. Não poderia ser mais perceptível como agora as consequências dos nossos comportamentos, como usar máscaras e higienizar-se regularmente e produzir, com isso, um significativo impacto na saúde, individual e coletiva. Em contextos de crise, consequências reforçadoras intrínsecas, generalizadas e normalmente de longo prazo se tornam mais contíguas, alterando repertórios e, portanto, vidas!
Por mais que ainda tenhamos valores associados às qualidades sociais, que permanecem condicionados na nossa história, reforçadores como poder, bens e aparência física não parecem ser mais atraentes durante uma pandemia que, nas palavras de Baum (2006): saúde e sobrevivência, obtenção de recursos para a vida e conservação de relacionamentos com familiares e amigos. O potencial individual, antes aparentemente ilimitado, foi demarcado, e a sensação de imortalidade, impulsionada pela valorização da juventude, não ficou imune às sobrepujantes necessidades do orgânico, que envelhece e adoece. Reorganizar prioridades tem colocado a vida, literalmente, em primazia.
Um tipo de vírus tem forçado a respondermos de maneira diferente aos três níveis de seleção e, ainda que seja provável que antigos padrões de comportamento recorram no convívio habitual em sociedade, as mudanças catalisadas pela pandemia tem potencial para transformar a própria cultura e integrar de maneira mais dialética o entrelaçamento filo-ontogenético-cultural, por meio fundamentalmente do efeito fortalecedor das contingências de reforçamento, pois, como Skinner (1987)…

Acredito que as práticas culturais emergiram principalmente devido ao efeito agradável do reforçamento, e que grande parte do efeito fortalecedor das consequências do comportamento se perdeu. A evolução de práticas culturais falhou. É semelhante ao que aconteceu no campo da saúde. A espécie evoluiu num ambiente com certa temperatura e umidade médias, uma certa pureza da água, certos tipos de alimento e predadores, incluindo vírus e bactérias. As práticas culturais mudaram amplamente isso tudo e, como a seleção natural foi lenta demais para acompanhar o ritmo, somos acometidos por muitas doenças das quais a espécie anteriormente estava livre. O mundo no qual vivemos é, em grande parte, uma criação das pessoas – principalmente no Ocidente, mas, num sentido importante, não é bem feito.
Um novo mundo ‘bem feito’ precisaria também ser criado pelas pessoas…

Então, a questão: será que a pandemia está nos confrontando com essa verdade pragmática? Certamente voltarei a esse texto em outro momento com alguma resposta.

Baum, W. M. (2006). Compreender o Behaviorismo: comportamento, cultura e evolução (2a ed., M. T. Silva, M. A. Matos, G. Y. Tomanari & E. Z. Tourinho, Trads.) Porto Alegre: Artmed.
Hayes, S. C.; Brownstein, A. J.; Zettle, R. D.; Rosenfarb, I. & Korn, Z. (1986). Rule governed behavior and sensitivity to changing consequences of responding. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 45, 237-256.
Hayes, S. C., Barnes-Holmes, D., & Roche, B. (2001). Relational Frame Theory: A Post-Skinnerian account of human language and cognition. New York: Plenum.
Hayes, S. C. (Ed.). (2007). ACT in Action DVD series. Oakland, CA: New Harbinger.
Sidman, M. (1994). Equivalence Relations and Behavior: A Research Story. Boston: Authors Cooperative.
Skinner, B. F. (1985). Cognitive science and behaviorism. British Journal of Psychology, 76, 291-301.
Skinner, B. F. (1987). O que há de errado com a vida cotidiana no mundo ocidental? Trad. Renata Cristina Gomes, disponível em http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/skinner/oque_ha_de_errado_com_o_mundo_ocidental3a.pdf

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Escrito por Francine Fernandes

Formada em Psicologia pela UFSCar e especialista em Clínica Analítico-Comportamental. Atua como psicoterapeuta e supervisora clínica, com formação em Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR) e ênfase em Psicoterapia Analítico-Comportamental (FAP).

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