Amor que nunca morre: sobrevivência e luto por suicídio

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[Alerta: este texto possui conteúdo sobre temas perturbadores. Caso você não se sinta emocionalmente bem para lê-lo, recomendamos que o faça quando se sentir melhor].

No parágrafo de abertura da “Primeira carta para além dos muros”, Caio Fernando Abreu descreve sua angústia e sofrimento após diagnóstico do vírus HIV. É uma descrição que, de tão sensível, retrata a universalidade da dor em meio ao peso de acontecimentos da vida.

“Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer.”

A impotência advinda de situações alheias à nossa vontade nos remete a uma sensação profunda de distanciamento daquilo que um dia nos pareceu fazer tanto sentido. Ver a realidade com a qual somos confrontados exige, muitas vezes, coragem e sabedoria.

A exposição à morte por suicídio é bem conhecida por deixar efeitos em quem fica. Muito se fala sobre o risco de comportamentos suicidas nos familiares ou pessoas do círculo de intimidade de quem se matou. No entanto, em um contexto individual e social, uma vasta gama de pessoas são expostas. Todos que tiveram suas vidas marcadas pelo suicídio de alguém, são considerados sobreviventes. Você não precisa ser membro da família para sentir o forte impacto de uma morte por suicídio.

Ainda que façamos conjecturas sobre as variáveis que estão presentes no sofrimento de alguém que se mata, muitas vezes os enlutados não possuem informações suficientes para assegurarem uma resposta. Suicídio envolve a combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, o que o torna um fenômeno comportamental de extrema complexidade.

Segundo a Organização das Nações Unidas (2019), a cada ano pelo menos 800 mil pessoas morrem por suicídio – uma a cada 40 segundos. Aperfeiçoar os cuidados daqueles cujo sofrimento é experienciado como intolerável é uma relevante pauta de discussão para o campo da saúde mental e das políticas públicas. Além disso, falar em luto por suicídio envolve pensar nos fatores psicológicos e sociais daqueles que foram expostos, daí a importância de pensarmos a respeito de novos arranjos de contingências em nossos ambientes atuais.

A literatura mostra um aumento no risco de suicídio e quadros de depressão naqueles que foram expostos a uma morte autoinfligida (quanto maior o nível de proximidade ou identificação com o falecido, maior o risco) (Maple, Cerel, Sanford, Pearce, & Jordan, 2017). Faz-se necessário, então, teorizar acerca dos cuidados preventivos a serem ofertados em um tratamento de posvenção (nome dado ao cuidado específico com esse público).

O enlutamento causado por um suicídio é qualitativamente diferente de outras mortes repentinas. É um processo frequentemente chocante, doloroso e inesperado. A resposta de autoagressão, o método utilizado, o endereçamento a alguém e todas as dúvidas relativas ao motivo pelo qual o suicídio ocorreu são elementos que podem complexificar o luto.

De acordo com o DSM-5, da American Psychiatric Association (2013), a exposição a mortes traumáticas pode resultar em Transtorno do Luto Complexo Persistente (preocupação constante com a perda), bem como em Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), havendo em ambos (com algumas variações) a ocorrência de pensamentos intrusivos, evitação de experiências emocionais relacionadas ao trauma, revivências etc.

Entretanto, para além da compreensão de categorias diagnósticas, cada pessoa experimentará o processo de luto à sua maneira e dentro do seu próprio tempo. Afinal, cada organismo possui uma história específica de interação dentro de três níveis de seleção (biologia, história de vida e cultura), sendo exposto a inúmeras combinações contextuais (Skinner, 2003). Isso resulta em um alto grau de variações individuais.

Nesse sentido, o luto é uma dor emocional experienciada muitas vezes como esmagadora, que pode vir acompanhada do aumento de reações de raiva, culpa e medo. Na perspectiva da Terapia Comportamental Dialética (DBT), é uma situação de crise que pode levar a uma busca por resoluções rápidas para o sofrimento. Uma delas pode ser a necessidade de encontrar justificativas para tal ato. Muitas pessoas seguem, durante anos, acompanhadas pelo sentimento de culpa oriundo da impossibilidade de obter respostas para as dúvidas que lhes assolam (Fukumitsu, 2019).

Outro processo vivenciado por pessoas enlutadas por suicídio diz respeito a ocorrência de acusações e críticas acerca do ocorrido. É comum familiares e amigos serem acusados de negligência. A longo prazo, isso pode desembocar em sentimentos de isolamento e desesperança por parte dos sobreviventes.  A ausência de redes de apoio acaba dificultando a variabilidade comportamental em direção a novas fontes reforçadoras e de acolhimento do sofrimento.

O luto por suicídio comumente remete os sobreviventes a sentimentos particulares, como vergonha (ao ter que falar sobre a perda), o que pode estar relacionado ao tabu e ao preconceito em torno do tema bem como o receio de se sentir acusado e julgado (Fukumitsu, 2019).

Aceitar a decisão da vítima de se matar, desapegar-se das crenças (comportamento moral ou religioso) e interpretações julgadoras, podem se apresentar como os maiores desafios dos enlutados.

Alguns comentários indevidos devem ser evitados, como “faltava jesus nessa família”, “ele não queria melhorar”, “como os pais e os amigos não perceberam isso antes?”, “o bom é que agora isso não será mais um problema para você”. A diversidade de sentimentos e pensamentos do enlutado requer mais aceitação e acolhimento na linguagem, que pode ser tanto verbal quanto corporal.

Antes de iniciar uma conversa com uma pessoa em sofrimento intenso, é importante mantermos uma postura aberta, respeitosa e que demonstre interesse em compreender e aceitar a dor do outro (Linehan, 2016).

Alguns pontos podem ser relevantes, como:

– Ouvir de maneira empática e sem tentar dar respostas e soluções para eliminar aquela dor;

– Reconhecer e validar sentimentos, emoções, crenças e dificuldades (ex.: “diante de tudo que aconteceu, faz muito sentido que você esteja se sentindo assim”);

– Tentar promover esperança em relação a impermanência dos nossos estados emocionais (ex.: “pode parecer impossível agora, mas gostaria muito que você soubesse que toda essa tempestade emocional vai passar e você vai sobreviver a ela”);

– Acolher o silêncio e a ausência de respostas.

Tentar lidar com os sentimentos de pessoas em grande sofrimento (e que ainda não possuem repertório de enfrentamento) sem alterar as contingências aversivas é algo infrutífero (Sidman, 1995). Desse modo, entender as variáveis que influenciam os comportamentos de esquiva verbal em pessoas enlutadas por suicídio pode ser de grande relevância para ajudá-las a modificar sua experiência.

Ouvir a dor de alguém envolve não só aspectos técnicos, mas também o contato com toda a nossa história, com os autores que lemos ao longo da vida, com as perguntas que já fizemos ao universo e de todos os nossos choros que ninguém ouviu. Se o profundo sofrimento do outro nos ameaça, antes de proferir acusações, pensemos: “o que eu não estou conseguindo enxergar em mim e nessa outra pessoa?”.

Todos nós somos obras em constante construção. Pessoas que tiveram suas vidas marcadas pelo suicídio se veem obrigadas a se reinventar de maneira abrupta. Sejamos empáticos com elas.

Referências

Abreu, C. F. (2016). Cartas: Caio Fernando Abreu. e-galáxia.

American Psychiatry Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental disorders – DSM-5. 5th.ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013.

Cerel, J., Brown, M. M., Maple, M., Singleton, M., van de Venne, J., Moore, M., & Flaherty, C. (2018). How Many People Are Exposed to Suicide? Not Six. Suicide and Life-Threatening Behavior. doi:10.1111/sltb.12450 

Fukumitsu, K. O. (2019). Sobreviventes enlutados por suicídio: Cuidados e intervenções. Summus Editorial.

Groot, M. H. de, Keijser, J. de, & Neeleman, J. (2006). Grief Shortly After Suicide And Natural Death: A Comparative Study Among Spouses and First-Degree Relatives. Suicide and Life-Threatening Behavior, 36(4), 418–431.

Linehan, M. (2009). Terapia comportamental dialética para transtorno de personalidade Borderline. Manual clínico dos transtornos psicológicos: tratamento passo a passo. Porto Alegre: Artmed.

Linehan, M. (2016). Terapia Cognitivo-Comportamental para Transtorno da Personalidade Borderline: Tratamentos que Funcionam: Guia do Terapeuta. Artmed Editora.

Maple, M., Cerel, J., Sanford, R., Pearce, T., & Jordan, J. (2017). Is exposure to suicide beyond kin associated with risk for suicidal behavior? A systematic review of the evidence. Suicide and Life‐Threatening Behavior47(4), 461-474.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “OMS: Em todo o mundo, 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano”. 2019. Disponível em: http://nacoesunidas.org/no-dia-mundial-da-saude-mental-onu-pede-mais-esforcos-de-prevencao-ao-suicidio/. Acesso em 15 de abril de 2020.

Poletti, R.. & Dobbs, B. (2008). Aceitar o que existe. Petrópoles: Editora Vozes.

MURRAY, S. (1995). Coerção e suas implicações.

Skinner, B. F. (2003). Ciência e comportamento humano (Vol. 10). São Paulo: Martins Fontes.

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Escrito por Clara Carvalho

Psicóloga Clínica.
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Saúde Mental (uniruy). Certificação em Terapia Comportamental Dialética (DBT) pelo The Linehan Institute/Behavioral Tech e em Terapia Comportamental Dialética Radicalmente Aberta (Radically Open) e Treinamento de Habilidades da DBT (Vincular).

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