YOU: Netflix e Análise Funcional da personalidade psicopata

A série You (Você), produzida pela Netflix, conta a história de Joe, um homem que vive se apaixonando perdidamente e se engaja em comportamentos socialmente desviantes, como mentir, manipular, perseguir e matar outras pessoas – tudo por amor, justifica o personagem. Joe cumpre com três dos critérios mínimos para o diagnóstico do transtorno de personalidade Antissocial, a famigerada Psicopatia: (i) desajuste a normas sociais, (ii) tendência à desonestidade e mentira e (iii) ausência de remorso, com indiferença ou racionalização em relação a danos alheios. 

Embora se trate de um caso fictício, a história de Joe ilustra muito bem um padrão de comportamento estável, produzido por um histórico de aprendizado coerente. Para a análise do comportamento, a personalidade consiste em um sistema de respostas que ocorrem de forma consistente sob determinados contextos. Os comportamentos envolvidos nos diversos “transtornos de personalidade” listados no DSM-V, portanto, são repertórios aprendidos. Compreender o comportamento psicopata – assim como qualquer outra personalidade – envolve a compreensão das variáveis responsáveis por sua instalação e manutenção. Nesse sentido, o presente artigo se propõe a realizar uma análise funcional do repertório de Joe, esclarecendo (i) os contextos controladores do seu padrão antissocial, (ii) as consequências ambientais mantenedoras e (iii) o histórico responsável pela seleção das primeiras instâncias desse repertório. 

Instalação do comportamento antissocial, racionalização e ausência de culpa

A culpa não se trata de um sentimento que naturalmente provém de ações condenadas pela sociedade; trata-se de um comportamento aprendido, resultante de um histórico de punição. Através do condicionamento respondente, estímulos – públicos e privados – que acompanham o responder consistentemente punido adquirem função aversiva condicionada; com isso, o comportamento punido torna-se fonte de aversividades condicionadas, responsáveis pela eliciação de respostas emocionais comumente descritas como culpa ou remorso (Skinner, 1953). Uma pessoa não deixa de sentir culpa porque possui dentro de si uma personalidade psicopata, mas sim porque não foi exposta a um histórico de punição capaz de conferir função aversiva à certos comportamentos. Joe não sente culpa ou remorso por suas ações pois seus comportamentos antissociais não foram frequentemente punidos ao longo de sua vida, muito pelo contrário: a série nos mostra claramente como o comportamento de matar foi instalado no repertório de Joe ao produzir reforçadores desde sua emissão inicial. 

Em um flashback, vemos Joe ainda criança em contato com estimulação altamente aversiva: pelas frestas do armário, presencia sua mãe apanhando do namorado (como muitas outras vezes). A estimulação aversiva se intensifica de tal maneira que o contracontrole é enfim evocado – Joe pega a arma escondida na parede e com um tiro elimina o agente punidor. Antes disso, Joe presenciou muitas outras agressões, mas não havia nenhum estímulo discriminativo disponível para uma resposta de contracontrole. Além do reforçamento negativo pela eliminação do agente punidor, essa primeira instância do comportamento matar foi positivamente reforçada pela mãe de Joe. O mesmo ocorre no segundo assassinato: após matar Elijah, Joe corre desesperado para pedir ajuda ao dono da loja onde trabalha, mas Mr. Mooney não lhe pune; ao invés disso, lhe acolhe e ajuda a se livrar das evidências. 

Até aqui, vimos que Joe não foi exposto a contingências punitivas na medida suficiente para que a função aversiva fosse adquirida pelo comportamento de matar. Contudo, particularmente entre seres humanos, além dos processos respondentes e operantes, estímulos podem ter suas funções comportamentais modificadas através de processos verbais, e a série também nos mostra o histórico que determinou em Joe um repertório verbal que reduz as aversividades de seus comportamentos antissociais. 

Responder verbalmente diz respeito ao comportamento de relacionar estímulos arbitrariamente sob controle contextual (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001). Uma característica relevante do comportamento verbal é o fenômeno denominado transformação de função: as funções comportamentais de eventos ambientais são modificadas de acordo com a natureza das relações estabelecidas. Por exemplo, uma criança é atacada por um cachorro e, via condicionamento respondente, o animal se torna aversivo. Em seguida, a criança recebe a seguinte regra “O Tio Felipe É um cão”. Mesmo sem nunca ter nenhum contato com o tio Felipe, a criança passa a ter medo e fugir da presença do parente. Isso ocorreu porque a dica contextual “É”  controlou uma resposta relacional de coordenação entre “tio” e “cachorro”; com isso, a função comportamental originalmente presente no estímulo “cachorro” foi transferida para o evento “tio”.  O tio se tornou aversivo sem que a criança passasse por qualquer punição em sua presença. A função aversiva não foi adquirida através do processo de condicionamento respondente, mas sim através do processo verbal de transformação de função de estímulos(Hayes et al., 2001)

Cada indivíduo emite respostas relacionais de acordo com os padrões arbitrários transmitidos por sua comunidade verbal. Pensar, raciocinar e resolver problemas envolve a emissão de complexas respostas relacionais entre estímulos, através das quais as funções comportamentais de eventos públicos e privados são transformadas. Nesse sentido, a maneira como um indivíduo raciocina – isto é, responde a estímulos relacionalmente – sempre reflete o seu histórico de aprendizado. Se olharmos para o histórico de Joe, podemos identificar a passagem de várias regras que estabeleceram contextos nos quais “matar” está relacionado de tal forma com outros eventos que suas funções aversivas são abrandadas e as evocativas potencializadas

Após o primeiro assassinato, sua mãe lhe diz “Você quis me proteger”, “Foi um mal necessário”, “você é um bom menino”. A partir dessa exposição, podem ter sido instaladas e derivadas, no repertório de Joe, as seguintes redes relacionais, contendo molduras de coordenação, condicionais, causais e dêiticas: “SE matar PARA proteger, ENTÃO eu SOU um bom menino”. Ao participar de tal forma dessas relações, o evento “matar” tem suas funções comportamentais transformadas, reduzindo suas aversividades. Da mesma forma, “Matar x PARA proteger É necessário” pode levar à aquisição, por certas pessoas/eventos, da função discriminativa para o comportamento antissocial. Mr. Mooney também contribui com a ampliação dessas redes. Ao pedir ajuda após matar Elijah, Joe apresentava fortes respostas emocionais. O velho então lhe diz “Algumas pessoas merecem morrer” e “Se não contar para ninguém, está tudo bem”. Novamente, as seguintes redes podem ter sido derivadas: “SE matar, E ninguém saber, ENTÃO tudo bem”, e “SE x merece, ENTÃO matar ”. Se em sua adolescência Joe passou por aprendizados que conferiram função aversiva à “matar”, Mr. Mooney contribui com sua modificação. Dessa forma, qualquer pessoa coordenada com a palavra “merece” adquire função aversiva e Joe se engaja em comportamentos antissociais. Na série, observamos esses padrões relacionais se repetirem tanto antes quanto depois de certos contextos em que ocorrem as mortes – quando Joe racionaliza e se justifica afirmando que X ou Y são pessoas perigosas para a amada e, portanto, mereceram a morte, logo, não há porque sentir culpa. Em outros contextos, esse padrão não se repete. Na segunda temporada, Joe acredita que matou sua vizinha Delillah enquanto estava drogado, e sente-se imensamente culpado por isso. Nesse caso, Delillah não estava coordenada com “merecer morrer”; com isso, “matar” tornou-se altamente aversivo e Joe experimentou o sentimento de culpa. 

O repertório verbal de Joe, portanto, foi construído de tal forma que em certos contextos são derivadas relações em que (a) matar têm suas funções aversivas reduzidas e (b) certas eventos/pessoas adquirem função aversiva e evocativa para o comportamento antissocial. O critério do transtorno antissocial “Ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou racionalização em relação a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas” diz respeito justamente a esse padrão de responder verbal: ao racionalizar, o indivíduo se engaja em respostas relacionais que diminuem a função aversiva do comportamento antissocial, de tal forma que a sua emissão não é acompanhada de respostas emocionais descritas como “culpa”. 

Consequências reforçadoras para o comportamento antissocial

Se o comportamento de matar foi negativamente reforçado, é altamente provável que volte a ocorrer diante contextos aversivos. Nas situações em que as mortes ocorreram, observamos que Joe sempre se encontrava diante aversividades ou o risco de punições futuras: Peach adquiriu função altamente aversiva – não apenas tentava afastar Beck de Joe, mas nas circunstâncias de sua morte representava um perigo iminente para o personagem, visto que atirava em sua direção. Nessa ocasião, ao matar Peach Joe produziu a evitação da (possível) própria morte e da perda de seu agente reforçador, Beck. Por mais que a amasse, em seus últimos momentos Beck se tornou um estímulo aversivo para Joe: ela descobriu toda a verdade sobre o personagem e havia fugido do cativeiro; a sua liberdade era pré-condição para a prisão do nosso anti-herói. Nesse contexto, o comportamento de matar foi altamente eficaz em evitar o contato com punições futuras. Na segunda temporada, Joe vê sua vida em risco ao ser perseguido por Jaspers, o qual chega a até decepar seu dedo. A única resposta de esquiva não-antissocial possível para Joe era pagar 50 mil dólares, mas não existia estímulos discriminativos que viabilizassem essa resposta. Em um confronto com o Jaspers, Joe até apresentou tentativas menos desviantes de fuga: ele explicou à Jaspers que não era a pessoa que realmente procurada, mas essa resposta não foi suficiente para eliminar as agressões administradas. Diante a permanência da estimulação aversiva, a variação comportamental levou novamente à ocorrência da classe matar. Mentir e manipular – outros padrões antissociais – também apresentam tal função, visto que evitam punições e eventualmente também produzem reforçadores positivos, como os comportamentos de enviar mensagens pelo celular da vítima e trocar de nome.

Considerando todas essas situações, fica claro que o comportamento antissocial de matar é negativamente reforçado pela eliminação ou evitação de punições públicas. Joe não mata simplesmente por prazer; a classe de respostas matar sempre é evocada por estímulos aversivos. Por outro lado, houveram assassinatos em que matar foi evocado por funções aversivas verbalmente adquiridas pelas vítimas, e não por realmente sinalizarem a ocorrência de uma punição concreta, como foi o caso de Elijah(com quem Candance traiu Joe), que verbalizou ofensas contra Candance, e Benji (amante de Beck), que igualmente ofendeu a pessoa amada e revelou ter cometido um assassinato. Em ambos os casos, Joe pode ter emitido respostas relacionais que relacionaram as vítimas à “merecer morrer”, (SE ofende/matou, ENTÃO merece morrer) conferindo-lhes funções aversivas e evocativas para o comportamento antissocial. 

Conclusão

Joe não é um monstro. Como todas as pessoas, ele apresenta um conjunto de comportamentos que foram selecionados por consequências ambientais ao longo de sua vida. Matar, mentir, manipular – o comportamento antissocial não é a expressão de uma estrutura de personalidade interna, mas sim o produto de contingências sociais que fortalecem esse repertório. As causas da personalidade continuam no ambiente – e é esse ambiente que pode ser chamado de monstruoso.

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Escrito por Matheus H S Mello

Graduado em Psicologia pela UNIP (2019) e Mestrando em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela PUCSP. Atua como psicoterapeuta.

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