Adoráveis mulheres: as molduras relacionais na complexidade do ser

ATENÇÃO: Esse texto contém spoilers.

Adoráveis Mulheres (Little Women), de Louisa May Alcott é um livro considerado um clássico da literatura norte-americana. Foi publicado em 1868 e serviu de inspiração futura para diversas autoras por discutir o papel feminino e a realização da mulher em diversas esferas de suas vidas. Após algumas adaptações para a televisão, foi lançado um novo filme em 2019. Dirigido por Greta Gerwig, o filme atualiza as discussões feministas já propostas pelo livro e traz quatro personagens complexas que levantam muitas possibilidades para discussões psicológicas.

Hoje, porém, focaremos na personagem protagonista, Jo March, a segunda mais velha de quatro irmãs. Jo é espirituosa, independente e tem grande gosto e talento para escrever. É a irmã que deseja viver experiências diferentes, conhecer o mundo e ser dona de si, o que a leva inclusive a ser vista como “a que não deu certo” por uma tia mais conservadora. Contra as expectativas dessa mesma tia, Jo se aproxima de Laurie, seu vizinho, e desenvolve uma relação de amizade com ele que resulta em um pedido de casamento rejeitado. Apesar de nutrir sentimentos pelo rapaz, Jo não se via na vida que imaginava que eles teriam juntos, via algo diferente para si.

Esse é o contexto em que acontece uma fala bastante significativa dessa personagem. Após passar um tempo morando em Nova York e voltar para casa por conta de um problema de saúde da irmã, Jo tem um momento de desabafo com a mãe. Abro um parêntese aqui para contar uma curiosidade: parte dessa cena aparece no trailer do filme, e nela, Jo fala o seguinte:

Women have minds and they have souls as well as just hearts. They’ve got ambition and they’ve got talent as well as just beauty. I am so sick of people saying that love is just all a woman is fit for. I’m so sick of it!

Tradução livre: Mulheres têm mentes e têm almas, além de só corações. Elas têm ambições e elas têm talentos, além de beleza. Eu estou tão cansada de pessoas dizendo que amor é a única coisa para a qual a mulher serve. Estou tão cansada!

Para o propósito da venda do filme, essa fala era muito importante no sentido de conquistar o público feminino e procura ressaltar a quebra de padrões e o questionamento do lugar da mulher, que é realmente muito presente na história. Porém, e aqui eu fecho o parêntese, a cena do filme mostra uma ideia mais complexa que a vendida no trailer. No filme, a fala completa é:

Women have minds and they have souls as well as just hearts. They’ve got ambition and they’ve got talent as well as just beauty. I am so sick of people saying that love is just all a woman is fit for. I’m so sick of it! But… I’m so lonely.”

Tradução livre: Mulheres têm mentes e têm almas, bem como corações. Elas têm ambições e elas têm talentos, além beleza. Eu estou tão cansada de pessoas dizendo que amor é a única coisa para a qual a mulher serve. Estou tão cansada! Mas… eu me sinto tão sozinha.

A fala completa de Jo nos mostra a complexidade de ser mulher, e mais ainda, de ser humano. Quando nos enxergamos de uma certa maneira, criamos uma série de regras sobre como pessoas assim deveriam agir. Se eu me vejo como uma mulher independente, por exemplo, passo a responder a regras sobre como uma mulher independente deveria se comportar. Estamos falando aqui de molduras relacionais, um operante de ordem superior que estabelece uma relação entre duas ou mais funções de estímulos. Algumas características podem estar em uma moldura de coordenação com “ser uma mulher independente”, estabelecendo relação entre as funções dos estímulos “eu”, “mulher” e “independente”. Pensando no mundo de hoje, posso entender que ser uma mulher independente implica em resolver os meus próprios problemas, e/ou trabalhar e/ou ter estabilidade financeira, e por aí vai. Outras características, porém, se relacionam em molduras de oposição: para ser uma mulher independente, eu não posso depender financeira ou emocionalmente de ninguém, por exemplo. Para Jo, em Adoráveis Mulheres, admitir que se sentia sozinha parecia estar em uma moldura de oposição com a mulher que ela gostaria de ser. Como lidar com esse sentimento então?

Quantas vezes nos comportamos de forma a afastar, bloquear, eliminar sentimentos, porque acreditamos que não deveríamos estar nos sentindo daquela forma? Quanto tempo gastamos nas nossas vidas tentando eliminar experiências que sentimos estar nos afastando da pessoa que gostaríamos de ser? Em uma época em que a imagem está em constante exposição em redes sociais, nos vendemos como seres bidimensionais, simples, e sofremos depois por acreditar que todas as pessoas conseguem ser simples, menos nós. Como posso me dizer feminista se sofro por não estar em um relacionamento?

E se formos mais do que isso? E se for possível ser independente e ao mesmo tempo se sentir sozinha? Ser forte e ao mesmo tempo se sentir triste? Ser uma boa pessoa e ao mesmo tempo sentir raiva? Trabalhando na clínica com as molduras relacionais, procuramos trabalhar para estabelecer molduras de coordenação entre nossas ideias de nós mesmos, nossos pensamentos, nossos sentimentos. Sou uma mulher forte e me sinto sozinha e penso que gostaria de estar em um relacionamento e sou filha e sou psicóloga e amo cinema e sou teimosa… Todas essas pequenas relações existem e são trabalhadas como estando em uma moldura de hierarquia com um “eu observador”. Quando penso e sinto todas essas coisas, ainda sou eu quem pensa e sente. O mesmo eu que se mantém constante enquanto sofre e é forte, ri e chora.

Temos dificuldades em lidar com as nossas aparentes contradições, mas elas existem e são justamente elas que nos tornam humanos. Não é à toa que é através da vulnerabilidade que mais nos conectamos uns com os outros. Quando vemos que aquela pessoa é mais do que todos os bons dias de Instagram. Assim como nós. Negar nossa vulnerabilidade é negar justamente aquela parte de nós que é capaz de conexão e de significado. Enquanto a Jo do trailer é a figura que representa o ideal, aquela para quem eu olho e admiro à distância, a Jo do filme é humana, é real. A Jo do trailer me faria assistir o filme, amá-la e então esquecê-la aos poucos em meio a diversos estímulos semelhantes. A Jo do filme fez com que eu me conectasse com algo significativo dentro de mim a ponto de querer escrever um texto sobre ela. Ela não é a figura que eu admiro à distância. Ela é alguém que eu gostaria de ser, mas, ao mesmo tempo, ela sou eu. E isso faz toda a diferença.

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Escrito por Aline Simões

Aline Simões é psicóloga clínica e trabalha com crianças, adolescentes e adultos. É mestre em Psicologia Social, pela Universidade Federal da Bahia e especialista em Terapias Contextuais pelo Instituto de Psicologia Contextual de Madrid.

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