Luto Humano como processo: refletindo aspectos teóricos e aplicando intervenções analítico-comportamentais

Viver pressupõe o estabelecimento de vínculos e, ao mesmo tempo, a evidência tácita do rompimento de relações, ou seja, as experiências de perda que todos os seres humanos vivenciam.  Referimo-nos, em especial, à morte: uma experiência inevitável e que faz parte do jogo da vida. A morte é considerada um evento natural que gera naquele que ficou vulnerabilidade importante diante do mundo, uma vez que modifica significativamente o ambiente. A perda por morte produz um intenso sofrimento, o qual é denominado processo de luto (Torres, 2010 e Oliveira, 2014) –  fenômeno universal que ocorre a partir da perda de uma pessoa significativa.

Segundo Pollock (1961), luto é uma resposta adaptativa à perda de uma pessoa querida, é um processo que permite garantir a sobrevivência diante dessa separação. Por sua vez, Hoshino (2006) conceitua o luto como um processo natural e esperado diante da morte. A pessoa deixa de ter o que tinha (algo ou alguém do ambiente com quem havia um vínculo afetivo) gerando, como consequência, uma modificação relevante em um contexto que oferecia bem-estar, além de um importante sofrimento emocional (comportamentos encobertos e publicamente observáveis).  O autor sinaliza ainda que luto é, propriamente, a luta do enlutado contra a modificação causada em sua vida pela perda do ente amado.

A Análise do Comportamento compreende que o comportamento humano, no sentido da forma de ser e de agir, é selecionado por aspectos biológicos, pelas consequências das nossas próprias ações e pelos processos culturais. Dessa forma, considera-se que o luto humano é um processo resultante da relação que se estabelece entre o organismo e o seu ambiente, o qual sofre a influência desses aspectos, ou seja, os chamados níveis de seleção natural estarão presentes nesse enfrentamento.

Assim sendo, o primeiro nível, a filogênese, manifesta-se por meio de encadeadas mutações biológicas que, preservadas por conta do valor adaptativo, favorecerá a sobrevivência de quem ficou;  o segundo nível, a ontogênese, prove o repertório (construído por meio dos contextos sócio verbais) com que o ser humano irá lidar diante das perdas e/ou  rompimento de vínculos; e o terceiro nível,  a cultura, estabelece como a comunidade enxerga o fenômeno morte (finitude da vida, crenças religiosas,  tipos de rituais, entre outros quesitos) (Oliveira, 2014). Em conjunto, o modelo de seleção e variação por consequências modela e molda nossos comportamentos e, consequentemente, a maneira como cada humano reage à vida e, nesse caso, à morte.

Paralelo a esse cenário, surge uma (entre tantas) questão de grande relevância que se observa na vivência do luto: o papel dos vínculos na vida do ser humano. Segundo Queiroz e Guilhardi (2001):

Vínculo é o nome que se dá aos comportamentos e sentimentos que emergem numa relação (…) entre (duas) pessoas e que são produzidas quase exclusivamente, por contingências reforçadoras e, eventualmente, por contingências aversivas mínimas, manejadas por um em favor do outro (…). Os comportamentos, assim instalados a partir do outro, produzem principalmente, consequências reforçadoras, propiciando sentimentos a elas relacionados como: bem estar, alívio, liberdade, segurança etc.; diminuindo sentimentos relacionados com contingências coercitivas como: medo, ansiedade, culpa, etc. (Queiroz e Guilhardi, 2001, p. 474) (grifo acima dos autores citados) 

Por sua vez, B. F.Skinner, quando foi comunicado de sua condição terminal, em uma entrevista para National Public Radio, em 1990, assim se expressou:

(…) E quando me contaram que eu tinha isso (leucemia) e iria morrer em poucos meses, eu não tive nenhum tipo de emoção. Nem um pouco de pânico, medo ou ansiedade. Nada. A única coisa que me emocionou, de verdade, meus olhos se encheram de água quando pensei isso, é que eu teria que contar à minha esposa e filhas sobre isso, Sabe, quando você morre você machuca as pessoas, elas te amam. E você não pode evitar. Você tem que fazer isso. E isso me incomodava. (tradução Nascimento, D, C., Nasser, G.M., Amorim, C.A.A., Porto, T.H.; Original: Ridanos Protectors, 2014).

 Parkes (2009), a partir de suas investigações empíricas, refere-se também à importância do vínculo para a vida humana enfatizando que “(…) o amor é a fonte de prazer mais profunda na vida, ao passo que a perda daqueles que amamos é a mais profunda fonte de dor.  Portanto, amor e perda são duas faces da mesma moeda. Não podemos ter um sem nos arriscar ao outro.” (Parkes, 2009, p.11). Ou seja, não se vivencia o primeiro (o amor) sem correr o risco de vivenciar o segundo (o luto). O autor complementa: “Talvez não seja o amor que faça o mundo girar, mas ele é uma fonte de segurança, autoestima e confiança da maior importância. Sem esses suportes, nós nos sentimos, e de fato estamos, em perigo.” (Parkes, 2009, p.13)

 Ao se analisar outros aspectos dessa experiência tão avassaladora, é possível também observar que é o luto um processo único e traçado por vários fatores. Entre os quais é possível citar: a) a história individual de amor e de perda e a história de vida ao lado da pessoa que morreu (a vinculação, como exposto acima); b) como a pessoa sucumbiu à mortalidade; c) idade do ente que se foi; d) idade do enlutado quando perdeu a pessoa; e e) o suporte emocional à dor (Viorst, 1988). Constatar essa singularidade gera o entendimento de como as diferenças individuais tornam-se evidentes no que tange ao experienciar perdas, e, em especial, na adaptação da perda por morte (Worden, 2013).

Vivenciar o luto (comumente chamado de elaboração do luto) é uma experiência viva e ocorre quando o enlutado entra em contato com as contingências da perda. Ou seja, quando essa pessoa faz o enfrentamento do conjunto de reações aversivas e da irreversível perda de reforçadores (eventualmente o ganho de alguns outros) presentes nesse processo. Tal elaboração se dá por meio do vivenciar de fases que, segundo estudiosos do assunto, é uma forma de entender o processo de luto. Nos estudos de Bowlby (1969/1990), por exemplo, as fases que levarão à resolução do luto são identificadas como: a) entorpecimento ou choque; b) anseio e busca da pessoa perdida; c) desorganização e desespero; e d) reorganização.

Ressalta-se aqui a similaridade existente entre as fases do luto e a curva de Extinção Operante (Keller e Schoenfeld, 1968). Tal fenômeno é entendido como um processo de enfraquecimento da relação entre a resposta e a consequência, por meio da suspensão do reforçador contingente à emissão do responder, desse modo, nessa classe operante existe a diminuição das frequências de respostas (Borges, Cassas e col, 2012). Em uma curva de Extinção Operante (ver Fig.1), constata-se toda uma classe de respostas em processo de extinção. Assim, no luto, como processo, os comportamentos deverão diminuir de frequência no repertório do enlutado para que haja continuidade de sobrevivência (embora se saiba que quanto mais reforçada a classe de resposta na história de quem ficou, mais dificuldade terá em eliminá-la do seu repertório).

Figura 1. Fases do Luto e a Curva de Extinção Operante (Adaptado por Torres, 2018)

É possível identificar na figura acima a presença significativa de comportamentos públicos e privados existentes no processo de luto. Cumpre assinalar que não se está distanciando do fato de que o comportamento privado, denominado de cognição (falta de atenção, descrença, confusão, preocupações exageradas, pensamentos obsessivos, entre outros), também está muito presente nesse vivenciar.

Dadas aqui essas contribuições no sentido de ampliar as reflexões e a compreensão sobre tão denso fenômeno, cabe agora pensar a prática terapêutica do profissional no que tange criar caminhos terapêuticos que possam estimular o enlutado a experienciar a dor produzida pelo luto. Isso o auxiliará, sobremaneira, na redução importante dos  efeitos dolorosos gerados pela perda da pessoa amada.

Nesse sentido, a Análise do Comportamento, uma vez mais, fornece um modelo terapêutico de expressiva efetividade, a chamada Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) de Hayes, 1987. Resumidamente falando, a ACT está baseada em evidências clínicas e tem como proposta um olhar contextual dos eventos privados (pensamentos, lembranças, sentimentos), entendendo-os como naturais à vida dos seres humanos. Dessa maneira, não se dá ênfase à necessidade de modificação, evitação e controle dos mesmos quando associados a eventos dolorosos (na verdade, uma aprendizagem importante instalada a partir da comunidade sócio verbal e que gera padrões de respostas – ou seja, a esquiva experiencial-que impede o ser humano do contato efetivo com as contingências).

A pessoa que perdeu seu ente querido, diante da estimulação significativa das emoções, das lembranças e das sensações físicas, dos sentimentos e dos pensamentos (comportamentos públicos e privados já assinalados), apresenta recorrentemente respostas de esquiva. Embora seja um comportamento encorajado socialmente, a esquiva no processo de luto impede que o enlutado vivencie os comportamentos privados dolorosos da perda, gerando, como consequência, grandes dificuldades na elaboração e resolução desse processo.

Dessa forma, um dos principais objetivos na intervenção do luto será o bloqueio da esquiva evocando os comportamentos mencionados. Em outras palavras, o processo terapêutico buscará enfraquecer esse comportamento da pessoa em luto, levando-a a contactuar com as contingências da perda com vistas a exteriorizar sua dor e, assim, ocorrer a adaptação à vida na ausência do ente amado (Torres, 2018). Esses procedimentos, ao mesmo tempo, aumentarão as oportunidades para aquisição de novos comportamentos. 

Nesse sentido, no setting terapêutico, as esquivas que ocorrem por conta dos eventos privados estimulados pela perda serão bloqueadas e/ou enfraquecidas com o uso de estratégias de intervenção clínica propostas pela ACT, entre elas, metáforas, músicas, poemas, escrever cartas e/ou um diário. Exemplificando aqui com um caso de um cliente (D.) em processo de luto por viuvez após um longo casamento. O cliente, no início do processo terapêutico, demonstrava um significativo sofrimento e, ao mesmo tempo, emitia vários comportamentos de esquiva e fuga diante dessa dor. Assim, foi apresentada ao D. a música “Vou te encontrar” (Tema: “O Outro Lado do Paraíso”) do compositor/cantor Paulo Miklos. D., em prantos, iniciou ali mesmo na sessão a elaboração de uma carta para a amada que se foi, expressando todo seu pesar, desesperança, desalento, desilusão, do não querer viver sem a presença dela. Encerrou a carta dizendo da saudade infinita que continua sentindo por ela e da vida que eles construíram e que tanto compartilhavam.

Na fase final do processo terapêutico foi apresentada a música “Estou pronto” do mesmo compositor, então o cliente, naquele momento, muito emocionado relatou seus sentimentos e pensamentos no Diário do luto. Em resumo, D. expressou seus sentimentos relacionados a um “desejo grande de viver…Viver apesar de…” principalmente após “ter revisitado seus sentimentos de dor, culpa, pesar e saudade”; finalizou colocando que ainda tem um olhar para os pensamentos ambivalentes que surgem e que, ao mesmo tempo, D. se percebe “passando da escuridão do luto para a luz da reconciliação com a vida, estou caminhando”. Citando um escritor inglês, D. complementa: “eu quero me lembrar de você para me reconciliar com a vida. Eu quero honrar-te sempre e dizer olá para o meu futuro.”

 Em suma, a dor dessa travessia se faz necessária como processo experiencial, uma vez que novas aprendizagens surgirão e com elas um novo e importante repertório comportamental é gerado. As evidências clínicas (e nelas, a proposta da ACT) demonstram que, ao vivenciar o processo de luto, o ser humano construirá um novo senso de significado para sua vida.  

É preciso dizer algo mais? Obviamente que o tema luto não se exaure aqui…não há jamais essa pretensão. É preciso uma trajetória mais ampla em que se possa construir e desenvolver novas perspectivas sobre o tema. Cabe aqui, portanto, a relevância das evidências clínicas, pois as contribuições encontradas na literatura, tais como podem ser observadas na abordagem analítico-comportamental, ainda se encontram inexpressivas ao se comparar com a complexidade do tema.

Referência Bibliografia     

Borges, N. B., & Cassas, F. A. (2012). Clínica analítico-comportamental: aspectos teóricos e práticos. Artmed Editora.

Bowlby, J. (1969). Attachment and loss. Vol. I: Attachment. New York: Basic.

Bowlby, J. (1990). Apego e perda. (2ª ed., A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins

do Nascimento, D. C., Nasser, G. M., de Amissis Amorim, C. A., & Porto, T. H. (2017). Luto: uma perspectiva da terapia analítico-comportamental. Psicologia Argumento, 33(83)

Hoshino, K (2006). A perspectiva biológica do luto. In H. J. Guilhardi,  & N. C. Aguirre, Sobre o Comportamento e Cognição, vol 17 (pp.313-326). Santo André: ESETec. Editores associados

Keller, F. S., & Schoenfeld, W. N. (1968). Princípios de psicologia (CM Bori & R. Azzi, Trad.). São Paulo: Herder (Trabalho original publicado em 1950)

Oliveira, D. R. Terapia do Luto: contribuições e reflexões sob a perspectiva da Análise do Comportamento. São Paulo, 2014. Disponível em: <https://www.academia.edu/7455245/Terapia_do_Luto_contribui%C3%A7%C3%B5es_e_reflex%C3%B5es_sob_a_perspectiva_da_An%C3%A1lise_do_Comportamento >

Parkes, C. M. (2009). Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações. São Paulo: Summus.

Pollock, G. H. (1961). Mourning and adaptation. International Journal of Psycho-Analysis, 42, 341-361.

Queiroz, P. P. e Guilhardi, H. J. (2001). Integração de Contingências em Ambiente Clínico e Natural para Desenvolvimento de Repertório de Comportamentos e Discriminação de Sentimentos. Em Guilhardi, H. J., Madi, M. B. B. P., Queiroz, P. P. e Scoz, M. C. (Org.) (2001). Sobre Comportamento e Cognição, Vol. 7. São Paulo: ESETec, pp.453 – 475.

Ridanos Protectors. (2014 Junho 23) Interview with Dr. B. F. Skinner shortly before he died … [Arquivo de vídeo]. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=QdZNdO E4a-s>

Torres, N.  (2010).  Luto: a dor que se perde (ou não se perde) (Cap. 34). Sobre  Comportamento e Cognição. Santo André: ESETec, Editores associados.

Torres, N.  (2010). Momentos Estou aqui: triste… Momentos estou aqui: alegre… Momentos onde quero estar e por que? (cap. 33)Sobre  Comportamento e Cognição. Santo André: ESETec, Editores associados.

Torres, N. (2018). Luto Humano: reflexões e intervenções na clínica analítico-comportamental. In. I Jornada de Análise do Comportamento de Marília, Marília- SP.

Viorst, J. (1988). Perdas necessárias. 24 ed. São Paulo: Melhoramentos.

Worden, J. W. (2013). Aconselhamento do luto e terapia do luto: um manual para profissionais da saúde mental. São Paulo: Roca.

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Escrito por Nione Torres

Nione Torres (CRP. 08/02333)
Graduada em Psicologia pela Universidade Filadélfia (UNIFIL)- Londrina. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Psicologia Clínica na área de Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Formação em Terapia Comportamental Dialética (DBT) pelo Behavioral Tech/The Linehan Institute-Seattle-EUA.
Criou o Instituto de Análise do Comportamento em Estudos e Psicologia de Londrina (IACEP), atuando até a presente data como terapeuta, coordenadora de projetos e supervisora clínica. Membro da Associação Brasileira de Medicina e Terapia Comportamental (ABPMC). Sócia- fundadora da Sociedade Brasileira de Stress e Qualidade de Vida. Autora de artigos e capítulos de livros relacionados à área de Psicologia Clínica na Análise do Comportamento no Brasil e no exterior. Professora convidada em Cursos de graduação e Pós-Graduação na área da Psicologia Clínica da Análise do Comportamento. Coordenadora e Supervisora de Projetos sociais com ênfase à atendimento
psicológico para adultos. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Terapia Dialética Comportamental do IACEP.

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