Par de dois – um texto para terapeutas

p

permanece todas as mãos e gestos flexíveis

pele da linguagem
fundindo sua melhor costura

de luz fluente
com um dedo levantado

dança dos lábios
cada frase completa

ele fala para a sombra
de folhas

papel de tecido amarrado
recortado em bandeiras delicadas

de que lado da conversa
Alguém começou?

Naomi Shihab Nye, O homem cuja voz foi tirada de sua garganta, 1994

Invariavelmente você, terapeuta, já deve ter ouvido (se não ouviu, vai
ouvir) a expressão “cliente difícil”. Provavelmente já deve ter pensado ou dito isso. Pode até parecer curioso eu trazer esse apontamento visto que é uma expressão bastante familiar para quem trabalha com Psicologia Clínica. Familiar e triste.  Me peguei pensando nisso por estes dias: “por que aquela pessoa é difícil?”

É pouco comum, creio eu, pensarmos na etimologia das palavras quando falamos. Eu acho que pode ser um exercício interessante. “Difícil” vem do latim difficilis, que significa: pouco acessível/que dá
trabalho/penoso/árduo e geralmente usamos a palavra difícil diante dessas condições. Pode-se argumentar que estamos enquadrando alguém diante dessas qualidades, mesmo que de maneira não muito atenta.

Parece, então, que deve ser algo que devemos engolir e seguir em frente, pois é inegável que existem clientes difíceis pelo simples fato de existirem pessoas difíceis, certo?

Talvez se eu te pedisse para parar de ler aqui e pensar em alguma pessoas difícil que você conhece: quem te vem à mente? Quais suas
reações ao pensar nela? O que ela tem de difícil?

Eu gostaria de sugerir que, talvez, não seja bem assim. Sendo bem direto: acredito que não existe tal coisa de “clientes difíceis”, mas sim interações difíceis. Imagino que essa frase, dita diretamente assim, possa eliciar alguns incômodos. Se esse foi o seu caso (certamente foi o meu) e se você ainda está comigo, me acompanhe.

Um dos maiores ganhos que o Contextualismo Funcional me proporciona é pensar em utilidade. Parando para pensar: qual a
utilidade em dizer que o cliente é difícil? Certamente não é útil para o
cliente, mas se um comportamento é mantido é porque existe reforçamento ocorrendo. Isso aponta para nós, terapeutas.

Quando eu estava recém-saído da faculdade eu receava alguns temas que encontraria no consultório: suicídio, dependência química e agressividade. Ironicamente, meu primeiro cliente, trazia esses três temas como queixas (cada terapeuta tem o cliente que merece, dizem por aí). Não cabe muito contar o desdobramento do caso, porém eu lembro o constante medo de atendê-lo. Atender vem de ‘dar atenção’, e certamente eu não me recordo de dar atenção àquela pessoa em minha frente, mas sim às minhas reações diante dela
(medo e receio).

Ter medo ou ter certeza (no sentido de querer estar certo) não traz o melhor de nós em nossas interações, e certamente não traz o melhor de nós enquanto terapeutas. Quando somos “cutucados” diante desses processos fica difícil relaxar e apenas ouvir o que a nossa cliente diz.  

Quais temas são aqueles que evocam a sua parte mais defensiva?

Um aprendizado recente que tenho tentado praticar a cada sessão é de notar eventuais impulsos diante desses processos (assumir uma postura confrontativa, utilizar minha “autoridade” de “terapeuta”, assumir um tom passivo e de concordância inflexível) e, no exato momento em que noto tais repertórios sendo evocados, sei que é a hora de fazer algo de diferente em prol de ajudar aquela pessoa. Nem sempre dá “certo”, mas ei, é sobre desenvolver padrões, né? Por
trás de todo “padrão difícil”, têm alguém que sofre.

É difícil interagir com alguém se tem uma parede entre vocês. Dá até para ouvir e fazer algo, mas geralmente acaba por aí. Tenho descoberto que optar por passar por essa parede traz resultados muito marcantes para aquelas duas pessoas. Dias desses, diante de uma cliente com uma postura “desafiadora”(maneira minha de me defender e justificar por que eu não conseguia gerar progresso), notei que estávamos em um cabo de guerra sobre quem tinha o controle da sessão; Um puxava, daí o outro, daí o outro puxava mais forte e o
outro fazia o que? Puxava mais forte ainda. Uns bons 30 minutos disso depois, falei (e de forma alguma significa que é algo bom ou certo de dizer para todos os clientes): “Olha, queria te falar sobre algo que tá acontecendo aqui, e não sei se é a coisa certa a se dizer, mas pode ser importante. Você me permite dizer mesmo assim?” e falei desse processo que notei do cabo de guerra e de como estava interferindo em nossa relação. Decidimos largar a corda, como um ato contínuo de nossas sessões.

Gostaria de realizar um convite, para pensar. Talvez você queira escrever, se assim lhe for útil:

Como você se vê como terapeuta? O que te define?

O quanto você se comporta de acordo com essas definições? Quando, para você, você observa ser ou não ser útil?

Quais são temas ou posturas de clientes que mais te incomodam? E de outras pessoas?

Qual é a sua reação mais comum diante disso, em termos de inflexibilidade?

E como pode parecer uma resposta mais flexível sua, diante desse/dessa cliente e ciente de suas reações, de forma a se tornar um agente de mudança na vida daquela pessoa?

Você estaria disposto/a a sair do conforte da posição de expert se
isso significar progresso para aqueles que confiam seu sofrimento a você?

____

Agradeço a leitura.

Com amor e gentileza,

5 1 vote
Article Rating

Escrito por Raul Vaz Manzione

Psicólogo (Mackenzie) e Mestre em Análise do Comportamento Aplicada (Instituto Par/UFPA). Atua como psicólogo clínico, supervisor, professor e treinador de terapeutas É Peer-Reviewed ACT Trainer reconhecido e listado pelo processo oficial da Association for Contextual Behavioral Science (ACBS) sendo um dos únicos a obter o título na América Latina.
Em seu currículo já ministrou treinamentos em ACT a mais de 1000 profissionais no Brasil e no mundo. Atua como membro do Comitê de Treinamento da ACBS (ACBS Training Committee).

Ensino de Competências Sociais e Emocionais para Crianças com TEA: desafios e benefícios

Conceituando o brincar