De humano para humano: a função da vulnerabilidade na relação terapêutica

Um dos grandes objetivos da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) é promover relações de intimidade que sejam profundas. Para a análise do comportamento, uma relação de intimidade ocorre quando uma pessoa em interação apresenta comportamentos vulneráveis à punição interpessoal e, a outra pessoa, reforça ao invés de punir tal comportamento (Cordova & Scott, 2001). Assim, um dos mais importantes temas trabalhados pela FAP envolve, necessariamente, a vulnerabilidade. Para que o terapeuta consiga produzir intimidade na relação com seu cliente ele terá de reforçar comportamentos tidos como vulneráveis e, por vezes, terá de apresentar sua própria vulnerabilidade em sessão.

O que estou chamando de ser igual.

Para ilustrar o que quero tratar aqui, vou citar uma história: certa vez estava conversando com minha amiga e psicóloga, Olívia, sobre a importância do terapeuta estar vulnerável na sessão e sobre como este comportamento exige coragem e foco no bem-estar do cliente. Discutimos várias questões, mas o ponto central que quero destacar aqui é uma frase dita por Olívia na ocasião, “só há conexão com um igual”. Não sei qual efeito esta frase teve sobre você enquanto a leu, mas no momento que Olívia a mencionou, me causou um grande impacto, me fez refletir sobre a relação terapêutica e a forma como me posiciono frente aos meus clientes. E é sobre esta reflexão que quero tratar neste texto.
Antes de mais nada, acho que vale a pena questionar: igual em relação a quê? O que isso tem a ver com vulnerabilidade e intimidade? Acho que todos vão concordar que não é tarefa do terapeuta ser igual como um amigo ou de ter as mesmas dificuldades do cliente (o que às vezes pode ocorrer). No entanto, há igualdade entre terapeuta e cliente em termos de humanidade – ambos são vulneráveis em determinados momentos. O que quero dizer com isso? Vamos lá! Imagine um cliente com dificuldade em lidar com suas emoções cujo comportamento-problema (CRB1 – para esclarecimentos a respeito do que são CRBs, ver o post “Consciência, coragem e amor na FAP”) trata-se de diversas racionalizações. Isto quer dizer que ao invés do cliente entrar em contato com seus sentimentos e vivenciá-los, ele tenta explicá-los – algo bastante comum no contexto terapêutico. Agora imagine também um terapeuta extremamente racional, que direciona a sessão para questionamentos relacionados à compreensão dos fatos (o que também é importante!) e menos para a aceitação emocional. Pode-se pressupor com certa segurança que o terapeuta esteja, em alguma medida, reforçando o CRB1 do cliente de esquiva de suas emoções. Em contrapartida, um terapeuta que fornece condições para que o cliente possa entrar em contato com suas emoções, em vez de tentar explicá-las, estaria favorecendo um comportamento de melhora (CRB2).
Vamos olhar agora sob a perspectiva do terapeuta: considerando que este é tão humano quanto seu cliente, possivelmente ele tenha seus dilemas e suas dificuldades em entrar em contato com algumas emoções, sejam elas quais forem. Portanto, podemos entender que cliente e terapeuta possuem dificuldade em sentir certas reações emocionais. Caso o terapeuta conseguisse entrar em contato com a tristeza na sessão ele poderia, por exemplo, servir de modelo ou fornecer um contexto facilitador das expressões emocionais do cliente. No cenário apresentado terapeuta e cliente possuem suas humanidades e vulnerabilidades – uma junção de condições perfeita para promover uma relação verdadeiramente íntima. Tanto terapeuta quanto cliente precisam emitir ao longo do tratamento comportamentos vulneráveis associados à expressão emocional. De um lado o cliente precisa de um contexto seguro para reagir emocionalmente, do outro lado, o terapeuta precisa demonstrar vulnerabilidade a serviço da melhora do cliente.

Por que isso é importante?

Acabei de citar que a vulnerabilidade do terapeuta deve ocorrer a serviço do cliente, mas, afinal, como isso pode beneficiá-lo? Vale a pena lembrar que o terapeuta é um modelo bastante importante para o cliente (Kohlenberg & Tsai, 2004). Sendo assim, a forma como o terapeuta se comporta em sessão pode fornecer condições para que o cliente aja de forma semelhante ao longo do tratamento e em sua vida diária. Com base no exemplo acima, um cliente com dificuldade de entrar em contato com suas emoções pode sentir-se seguro o suficiente quando percebe que o próprio terapeuta possui reações emocionais diante de alguns comportamentos clinicamente relevantes. No entanto, a expressão emocional exige coragem do terapeuta para que ele mesmo consiga se expor, estar vulnerável e em uma posição humana, assim como seu cliente.

Como o terapeuta pode ser “igual” ao cliente?

Tomando como base a frase da minha amiga Olivia “só há conexão entre iguais”, como então que o terapeuta pode ser “igual” ao cliente? Neste caso, acho que cabe aplicar a nós próprios aquilo que aplicamos aos nossos clientes: precisamos estar conscientes do que está ocorrendo no aqui/agora da sessão, de quais emoções se apresentam a nós enquanto o cliente está relatando um fato X ou Y. É ter clareza de que somos, na mesma medida, humanos iguais aos nossos clientes. Você deve estar se perguntando “então devemos sempre expressar o que estamos sentindo para nossos clientes?” Definitivamente não! Aqui trata-se de discriminar o que o terapeuta está sentindo e, ao mesmo tempo, analisar se revelar este sentimento favorecerá a emissão de um CRB2 ou o aumento de sua frequência. São dois os casos em que a humanidade do terapeuta, sua condição de igualdade em relação ao cliente, pode favorecer o tratamento. São eles: a) ser modelo e b) reforçar naturalmente as expressões emocionais (Guenzen, 2014; Silva-Dias, 2015; Silva-Dias & Silveira, 2016). No primeiro caso (a), o terapeuta fornece uma condição antecedente propícia para o cliente emitir um CRB2, isto é, funciona como modelo de vulnerabilidade e humanidade. No segundo caso (b), após a emissão de um CRB2, o terapeuta consequencia o comportamento com uma reação humana e natural que revela o impacto do comportamento de melhora do cliente sobre o terapeuta.

Que efeitos isso pode ter na relação terapêutica?

Por fim, vale o questionamento: “quais são os efeitos do terapeuta ser ‘igualmente humano’ ao cliente durante o tratamento?” Talvez esta resposta esteja implícita no decorrer do texto, mas para deixar explícito, pode-se dizer que a vulnerabilidade do terapeuta pode promover uma relação terapêutica profundamente íntima, com uma conexão genuína e, talvez, uma das primeiras que o cliente tenha tido até aquele momento. Assim, um efeito imediato é o fortalecimento da relação terapeuta/cliente. Além disso, a aprendizagem que ocorre no contexto terapêutico pressupõe um aumento na probabilidade do cliente apresentar tal comportamento fora da sessão, favorecendo, assim, a generalização de comportamentos íntimos. Isto implica em aumentar a probabilidade do cliente ampliar sua rede de intimidade para além do setting terapêutico – efeito considerado bastante poderoso. Deste modo, um dos maiores efeitos do terapeuta usar sua humanidade a serviço do cliente é permitir que o cliente aprenda a usar sua humanidade para se conectar e criar laços verdadeiramente íntimos com outros seres humanos.

Referências

Cordova, J. V., & Scott, R. L. (2001). Intimacy: a behavioral interpretation. The Behavior Analyst, 24 (1) 75-86.
Guenzen, L. C. (2014). Os possíveis efeitos do comportamento de autorrevelação do terapeuta analítico-comportamental em um processo terapêutico. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR.
Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (2004). Psicoterapia analítica funcional: criando relações terapêuticas intensas e curativas (R. R. Kerbauy, Org.). Santo André, ESETec Editores Associados. (Trabalho original publicado em 1991)
Kohlenberg, R. J., Kohlenberg, B., & Tsai, M. (2011). Um guia para a psicoterapia analítica funcional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo. (F. Conte & M. Z. Brandão, Trad.). Santo André: ESETec (Obra original publicada em 2009).
Silva-Dias, A. Y. M. (2015). Efeitos da modelagem e da modelação do comportamento vulnerável à punição com um casal em terapia analítico-comportamental. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR.
Silva-Dias, A. Y. M. & Silveira, J. M. (2016). Comparação de duas intervenções no tratamento de um casal: o treino do comportamento vulnerável à punição. Acta Comportamentalia, 24 (1) 61-77.

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Escrito por Antoniela Yara Marques da Silva Dias

Antoniela Yara Marques da Silva Dias é graduada em psicologia pela UFPR, é especialista em psicologia clínica pela FEPAR, mestra em psicologia pela UFPR e doutoranda em educação pela UFPR. Atua como docente e psicóloga clínica com grande interesse na FAP e na área de relacionamentos amorosos desde a prevenção ao tratamento.

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