Nunca sozinho

Gostaria de começar esse texto deixando um questionamento ao leitor: qual a sua intenção em clicar no link que dá acesso a este texto e como que, ao fazê-lo, você pode estar fazendo algo importante para você, de acordo com a pessoa que você quer ser? Guarde a resposta consigo, por ora.

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Falando um pouco sobre as variáveis que influenciaram meu comportamento de escrever esse texto: Fui convidado a escrever para o mês de fevereiro, o que estava fora dos meus planos.

E me vi bastante contente! Afinal, para mim é sempre um grande prazer escrever e ter meu texto lido. Mas, junto disso, veio um medo. Uma apreensão, seguida de vários pensamentos: “Não sou bom o bastante para isso”; “O que meus colegas vão achar de mim? ”; “Sou menos experiente que os demais [colegas da coluna], então melhor eu passar a bola para alguém. ”

Notei que muitos desses autoquestionamentos tinham a ver com o Raul que escreve agora. Mas qual Raul? Possivelmente, vários “Raul’s” surgem e dão suas próprias vozes. Como questões relacionadas a “meu eu” estão em muita evidência ultimamente, acho que nada mais natural que falar sobre o self.

Um conceito bastante falado em toda a Psicologia (James, 1891a, 1891b; Freud, 1963; Maslow, 1954; Rogers, 1961; Jung, 1964). Dentro da própria análise do comportamento, Skinner (1974) pontuou questões referentes ao self e ao autoconhecimento, como responder ao próprio comportamento. A literatura da Teoria das Molduras Relacionais (RFT – Relational Frame Theory) apresentou suas explicações sobre o self (Hayes, 1984; Dymond & Barnes, 1994; Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001) e, mais recentemente, ainda dentro desta, tem-se abordado questões relativas à coerência como relação para a formação do self e possíveis psicopatologias (Luciano, 2017). Um dos processos-chave da Terapia de Aceitação e Compromisso é o processo de mostrar ao cliente a possibilidade de responder a si mesmo de acordo com a pessoa que ele ou ela quer se tornar (Hayes, Strosahl & Wilson, 1999/2012; Luoma, Hayes & Walser, 2007/2017). E essa pessoa existe; em nossos clientes, em nossos amigos e em cada um de nós. Não só existe, como também é bastante provável que em momentos ela surja e tome um pouco de voz.

Nossos corpos mudam. Não somos as mesmas pessoas que éramos quando crianças; nossa voz é diferente, nossas preocupações e motivações são diferentes, nossa perspectiva sobre a vida também é diferente. Talvez não possamos rir mais das mesmas coisas ou o que nos cativava antes já não seja mais tão atraente ou chamativo, e até coisas que antes nos fossem “neutras” passaram a ser motivo de muita alegria ou de paixão. Tudo isso muda. E somos ditos que somos a mesma pessoa (Hayes, 1984). Mas por que será? Soa bastante natural falar: “quando eu era criança/adolescente/mais novo” ou “quando eu for mais velho/mais sábio” ou até “eu sou assim por conta do que me aconteceu/eu serei assim pois essas são minhas motivações. ”

E ainda dizemos ser só um. E se pudermos ser vários e um? Sendo esse “um” a pessoa que nota toda essa experiência e esses diversos eu’s em ação.

Confuso! Mas existe uma explicação. Segundo os autores da RFT, ao falar de self, leva-se em conta todas as relações que aprendemos e, em especial, as relações de hierarquia e dêiticas (ou de tomada de perspectiva) (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001; Luciano, 2017). E essas molduras dêiticas, chave para o desenvolvimento do self, são as molduras de EU-VOCÊ, AQUI-ALI e AGORA-ENTÃO. E o curioso é notar que relações dêiticas não podem ser rastreadas a propriedades físicas; embora as propriedades físicas estejam envolvidas em qualquer instância de responder dêitico, elas são colaterais ao padrão relacional (as palavras “aqui” e “ali” são usualmente utilizadas em relação a localizações físicas específicas, mas as propriedades físicas dessas localizações são irrelevantes em relação à adequação do uso das palavras) (Stewart, Villatte & McHugh, 2012).

Afinal, somos vários. E também não somos nenhum. E somos um só. Não somos as nossas experiências, mas sim o contexto, lócus, local, que observa a todas elas. Ou idealmente é o que pretendemos buscar e ensinar a nossos clientes.

E por que estou falando disso na coluna de Terapia de Aceitação e Compromisso, afinal? Como falei anteriormente, alguns autores sugerem que o surgimento de Psicopatologias está atrelado a problemas no desenvolvimento do self (Kohlenberg & Tsai, 1991; Linehan, 1993/2014; Hayes, Strosahl & Wilson, 1999/2012); também falei que o desenvolvimento do self está intimamente ligado com o desenvolvimento da linguagem (Hayes, Barnes-Holmes e Roche, 2001), e se o self está ligado ao desenvolvimento da linguagem, argumenta-se também o papel da linguagem no sofrimento e no desenvolvimento de psicopatologias (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012; Villatte, Villatte & Hayes, 2015). Podemos falar, talvez, de self não como uma “coisa”, mas como um comportamento também, o comportamento de “selfear” (confesso que “euzar” soa estranho).

É muito comum um apego a noções de um self conceitual. E isso por si só não é um problema. Difícil é quando esse apego leva à restrição de um repertório comportamental em prol de uma vida repleta de vitalidade. Talvez frases que descrevam características não arbitrárias “eu sou alto(a)/baixo(a)” não exerçam (não que não possam exercer) tanto impacto restritivo no indivíduo. Mas, e frases como: “eu sou ansioso, eu não sou feliz, eu sou uma boa pessoa, eu sou horrível, eu não sou amável, a minha vida não é vivível”?

Tais frases remetem a experiências nossas, e rapidamente nos apegamos à estas, sejam positivas ou negativas. E voltamos nossa atenção à estas definições, quase em tudo que fazemos. Falamos, por vezes, em tom de brincadeira, mas sem desacreditar na veracidade do que dizemos. Veracidade essa estabelecida por nós mesmos ora por molduras de coordenação (“eu sou x”), molduras de oposição (“eu não sou y”), molduras de comparação (“sou diferente de z), ou quaisquer relações que sejam. É possível dizer que a arbitrariedade da linguagem pode nos trazer sofrimento de maneiras quase que infinitas.

Parece um caminho sem saída. E talvez seja mesmo; em muitas situações nós sentimos aquele “alô” incômodo de uma experiência passada. Quem nunca falou um “me senti igual àquela aquela vez”, e doeu como se fosse real? E é real.

As definições feitas por nós são comportamentos, e não podem ser desaprendidas. Podemos, no entanto, treinar para alterar nossa perspectiva à estas experiências, desenvolvendo uma noção flexível de self envolvendo molduras dêiticas e de hierarquia. E nós gostamos de olhar mais para as partes que nos atraem mais dos que as outras. Mas não dá para ser meia pessoa, ou só uma fração de si mesmo. É importante ser inteiro, junto de todas as outras experiências. E muito da nossa história nós gostaríamos de remover, até tentamos fazê-lo. E se não precisasse? E se seu pensamento mais difícil ou sua noção de si mais difícil de suportar não precisasse ser seu inimigo? Como viver uma vida plena e íntegra brigado com si mesmo?

 

Eu gostaria de convidar a quem está lendo a fazer um pequeno exercício, talvez para sentir um pouco como é se perceber como o contexto de várias experiências. Talvez seja interessante ler o exercício uma primeira vez e ler uma segunda vez de maneira atenta, realizando pausas ao longo da leitura para colocar em prática o que é lido:

Gostaria que você repousasse, por um momento, a sua atenção em sua respiração. Tente se lembrar da pergunta feita no início do texto e da resposta que você formulou. Tente observar o que você nota em seu corpo enquanto respira. Perceba que isso que você está notando faz parte de você, como um componente de um conjunto maior. Assim como qualquer outro pensamento, emoção e sensação física. Gostaria de convidar a você, leitor, a imaginar em sua frente um álbum de fotos fechado. Imagine-se abrindo este álbum. Respire. Dentro deste álbum, estão experiências vividas por você; gostosas, angustiantes, de ternura, aterrorizantes, alegres, hilariantes, ou o que quer que seja. Respire.Imagine que você está folheando por este álbum e que algumas dessas experiências te prendem a atenção, quase como se você estivesse imerso nelas novamente. Note o que essas experiências te causam. Respire. Continue folheando o álbum e notando que essas experiências vão, voltam. Voltam quando você quer, e quando você não quer. Perceba se você consegue se imaginar com esse álbum em seu colo, como a pessoa que nota e observa essas experiências. Respire. Tente se perceber como se essas experiências fizessem parte de você, que fossem parte de quem você é hoje, mas que não são você por inteiro.  Respire. Observe por mais algum momento. Você consegue, diante de alguma dessas experiências, principalmente as que mais lhe afligem, agir com compaixão consigo mesmo, com a pessoa que folheia este álbum?Gentilmente, quando estiver pronto, permita-se fechar o álbum. Respire.

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Obrigado pela atenção e pela leitura até aqui. Espero ter sido útil.

 

REFERÊNCIAS

Dymond, S., & Barnes, D. (1994) A transfer of self-discrimination response functions through equivalence relations. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 62, 251–267.

Freud, S. (1923) O Eu e o Id In: Obras Completas Volume 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Hayes, S. (1984) Making sense of spirituality. Behaviorism, 12, 99-110.

Hayes, S., Barnes-Holmes, D., & Roche, B. (2001) Relational frame theory: A post-Skinnerian account of human language and cognition. New York: Plenum Press.

Hayes, S., Strosahl, K., & Wilson, K. (2012) Acceptance and Commitment Therapy: the process and practice of mindful change. The Guilford Press.

James, W. (1891a) The principles of psychology (Vol. 1). Cambridge, MA: Harvard University Press.

James, W. (1891b) The principles of psychology (Vol. 2). Cambridge, MA: Harvard University Press.

Jung, C. (1964) O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins

Kohlenberg, R., & Tsai, M. (1991) Functional Analytic Psychotherapy: Creating Intense and Curative Therapeutic Relationships. Estados Unidos: Springer Science+Business Media, LLC.

Linehan, M. (1993) Cognitive-Behavioral Treatment of Borderline Personality Disorder. The Guilford Press.

Linehan, M. (2014) DBT Skills Training Manual, Second Edition. The Guilford Press.

Luoma, J., Hayes, S., & Walser, R. (2007/2017) Learning ACT: An Acceptance and Commitment Therapy Skills-Training Manual for Therapists Second edition. New Harbinger Publications, Inc.

Luciano, C. (2017) The Self and Responding to the Own’s Behavior. Implications of Coherence and Hierarchical Framing. International Journal of Psychology and Psychological Therapy, 17, 3, 267-275

Maslow, A. H. (1954) Motivation and personality. New York: Harper and Row.

Rogers, C. (1961) Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes

Skinner, B. F. (1974) About behaviorism. London: Penguin.

Stewart, I., Villatte, J., & McHugh, L. (2012) Approaches to the self in: McHugh, L. & Stewart, I. – The Self and Perspective Taking: Contributions and Applications from Modern Behavioral Science. Context Press

Villate, M., Villatte, J, & Hayes, S. (2015) Mastering the Clinical Conversation: Language as Intervention. The Guilford Press

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Escrito por Raul Vaz Manzione

Psicólogo (Mackenzie) e Mestre em Análise do Comportamento Aplicada (Instituto Par/UFPA). Atua como psicólogo clínico, supervisor, professor e treinador de terapeutas É Peer-Reviewed ACT Trainer reconhecido e listado pelo processo oficial da Association for Contextual Behavioral Science (ACBS) sendo um dos únicos a obter o título na América Latina.
Em seu currículo já ministrou treinamentos em ACT a mais de 1000 profissionais no Brasil e no mundo. Atua como membro do Comitê de Treinamento da ACBS (ACBS Training Committee).

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