Autismo: O Treino de Habilidades Sociais

Segundo o DSM V (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, APA, 2013), uma das características que compõem o diagnostico de TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) consiste nos déficits persistentes na comunicação social e na interação social. Uma das deficiências que compõem este item do diagnóstico consiste nos déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos.

Laugeson et al. (2015) conduziram um estudo para melhorar as habilidades sociais em jovens adultos com Transtorno do Espectro do Autismo: The UCLA PEERS Program. Os autores justificaram seu estudo afirmando que o número de adultos com TEA cresce a cada ano e habilidades sociais prejudicadas são um grande desafio para esta população. Segundo os autores, existem poucas intervenções baseadas em evidências para desenvolver habilidades sociais em adultos com TEA. Segundo Cederlund et al. (2008), aproximadamente 26% dos adultos com TEA sem deficiências intelectuais levam vidas isoladas e improdutivas, com uma notável ausência de amigos e praticamente nenhum envolvimento ocupacional, profissional ou em atividades sociais recreativas.

Laugeson et al. (2015) utilizaram um delineamento controlado randomizado. O grupo de tratamento passou por 16 sessões semanais de grupo com 90 minutos de duração. O grupo controle esperou pelo tratamento por 16 semanas. O tratamento começava com aulas didáticas com os seguintes conteúdos: habilidades de conversação; meios eletrônicos de comunicação; desenvolvimento de redes de amizade e encontrar fontes de amigos; uso adequado do humor; estratégias de entrada e saída de grupos; organizar e ter sucesso em encontros com amigos; manipulação de bullying na escola ou local de trabalho; gerir a pressão dos pares; resolução de conflitos; estratégias relacionadas com etiqueta em encontros, inclusive mostrando interesse romântico, chamar alguém para sair, lidar com a rejeição e diretrizes gerais do namoro.

As aulas didáticas eram seguidas de dramatização e de perguntas que levavam o participante a se colocar no lugar do outro, por exemplo: “Como foi isso para a outra pessoa?”; “O que é que eles pensam de mim?”; “Será que eles vão querer falar comigo de novo?”. Em seguida eram feitos ensaios comportamentais, lições de casa para generalização do aprendizado e revisão das lições de casa.

Os resultados deste estudo mostraram que o grupo de tratamento melhorou significativamente em: habilidades sociais gerais tais como motivação social, cooperação e assertividade; frequência de engajamento social; e conhecimento de habilidades sociais. Laugeson et al. (2015) também observaram redução significativa dos sintomas do TEA relacionados com responsividade social; e diminuição do interesse restrito e dos comportamentos repetitivos. Segundo os autores, a maioria dos ganhos do tratamento foi mantida após 16 semanas (follow up) com novas melhorias observadas, tais como: assertividade; responsabilidade; e empatia.

Os autores discutem que estes resultados são encorajadores e destacam a eficácia e a durabilidade da intervenção na melhoria das habilidades sociais de jovens adultos de alto funcionamento com TEA usando assistência do cuidador. Os autores observaram, ainda, que a durabilidade dos ganhos do tratamento é resultado do envolvimento ativo do cuidador no programa, já que estes são orientados a manter as estratégias mesmo após o fim do programa.

Costumo chamar a “interação com pares” de “a cereja do bolo” da intervenção com TEA, já que precisamos construir pré-requisitos sociais e verbais importantes para, então, conseguirmos alcançar este patamar mais alto e mais difícil do desenvolvimento destas pessoas. Esta estimulação, porém, já deve começar desde a infância instalando habilidades sociais importantes para as interações. Uma das primeiras formas de treinar habilidades sociais consiste no ensino do brincar compartilhado, ou seja, estimulamos a criança a brincar com jogos que envolvem mais de um jogador, respeitando a vez de cada um jogar, assistindo à jogada do outro e até falando ou apontando de quem é a vez. Este treino começa com adultos (o terapeuta) e, depois que estiver bem instalado, é generalizado para o brincar com crianças da mesma idade. Conforme já explicado nesta coluna, as habilidades vão sendo instaladas com hierarquia de dicas, ou seja, começando com muita ajuda e retirando a ajuda gradualmente para prevenir o erro e a frustração e, também, com reforçamento positivo das respostas adequadas emitidas com ou sem ajuda.

Quando a criança já tem um bom repertório verbal instalado começamos a treinar as habilidades de conversação. Para isso, utilizamos pistas visuais, ou seja, imagens de temas de interesse da criança, temas de interesse do terapeuta e temas de interesse dos colegas da sala de aula da criança. Podem-se utilizar, ainda, imagens sobre eventos extraordinários vividos pela criança nos finais de semana. As imagens devem servir como pistas visuais para a criança conseguir falar sobre aquele assunto tanto respondendo às perguntas do aplicador, quanto fazendo perguntas. O aplicador deve dar as dicas verbais necessárias e reforçar cada resposta com elogios e acesso a itens de interesse.

As histórias sociais, já descritas nesta coluna em publicação específica sobre pistas visuais (artigo publicado em 11/07/2016), também consistem em um instrumento terapêutico bem eficaz no treino de habilidades sociais. Devem-se produzir livros curtos, com uma imagem e uma frase curta por página, descrevendo o passo a passo da interação social que se deseja treinar. Este livro deve ser lido com a criança diariamente e, após a leitura, deve-se dramatizar a interação para treinar cada habilidade. Também é importante ler a história social imediatamente antes da situação em que a criança terá que participar da interação que está sendo ensinada.

Na medida em que a criança cresce, o treino de habilidades sociais deve ir ficando cada vez mais refinado. Com os adolescentes já podemos estimular como conhecer um colega, isto é, como identificar suas principais características para, então, planejar como iniciar uma interação social com esse colega. Uma forma lúdica, concreta e visual de fazer isso é escrever as principais características físicas e psicológicas do colega na foto deste colega impressa (pode ser o desenho deste colega feito pelo adolescente com TEA). Se precisar, o aplicador pode dar dicas por meio de perguntas tais como: Qual é a cor do cabelo dele? Ele é alto ou baixo? O que ele gosta de fazer? Sobre quais assuntos ele fala? Que músicas ele escuta? etc.

Em seguida, com o perfil do colega traçado no papel, o aplicador deve estimular que o adolescente com TEA fale algumas possibilidades de interação com este colega. Para isso, o aplicador pode dar dicas com perguntas, tais como: Ele gosta de futebol… Então, o que você poderia perguntar para ele? Finalmente, o aplicador pode propor uma dramatização (role play) da interação que foi planejada. Tudo isso é feito na terapia ABA individualizada e, depois, deve ser generalizado para o ambiente natural por meio da intervenção do AT (acompanhante terapêutico).

Nos dias de hoje, uma das principais formas de interação entre as pessoas (principalmente entre os adolescentes), acontece pela internet em redes sociais. Por isso, é importante estimular que os adolescentes com TEA aprendam a usar esta ferramenta de interação social de forma adequada. Na terapia ABA podemos ensinar estes adolescentes a identificarem comportamentos apropriados e inapropriados nas redes sociais, bem como, podemos ensiná-los como se manterem seguros nestas interações. Para isso, pode-se, junto com o cliente, selecionar algumas postagens de uma rede social da qual ele faça parte. O cliente deverá, então, ler e categorizar estas postagens em uma tabela que pode ter as seguintes categorias: amigos, raiva, cuidado, embaraçoso, ruim, estranho, gentil, etc. Se precisar, o aplicador pode ir fazendo perguntas sobre a postagem para ajudar nesta categorização. Finalmente, o aplicador pode ajudar o cliente a pensar em como ele deveria reagir a cada categoria de postagens para conseguir uma boa interação e convivência em redes sociais.

Um dos maiores obstáculos para a interação social das pessoas com TEA consiste no bullying, que pode impedir a interação ou causar medo e aversão em relação a novas interações sociais. Por isso, é fundamental que o terapeuta ajude o cliente a se preparar para tais situações, treinando o que fazer e o que dizer em uma situação de bullying. Se o cliente já viveu ou está vivendo uma situação real de bullying pode-se pedir que ele relate esta situação e, então, junto com o terapeuta ele deverá produzir fantoches dos agentes do bullying desenhando, colorindo e recortando. Depois, com os fantoches prontos, terapeuta e cliente deverão encenar a situação de bullying usando os fantoches. Após a encenação o terapeuta deve ajudar o cliente a identificar o sentimento causado na vítima do bullying. E, finalmente, o terapeuta deve estimular que o cliente planeje formas de reagir a estes atos de bullying, esta reação planejada também pode ser encenada com os fantoches. Em todas as etapas deste procedimento o aplicador deve dar dicas para a resposta por meio de questionamentos ou modelos de resposta. Cada resposta adequada deve ser reforçada com elogios.

Outra estratégia que comumente usamos para treinar habilidades sociais é estimular a conscientização do cliente em relação a alguns comportamentos seus que são inadequados em interações sociais e que podem atrapalhar estas interações. Para isso, usamos vídeos da própria pessoa emitindo o comportamento-alvo inadequado ou vídeos encontrados na internet que mostrem o comportamento-alvo. Pode-se, ainda, produzir estes vídeos com “atores amadores” comportando-se como o cliente costuma se comportar. Após assistir ao vídeo junto com o cliente, o terapeuta deve ir perguntando o que ele achou do vídeo, se ele acha que as pessoas se comportaram de forma boa ou ruim, o que ele acha que estava errado no comportamento das pessoas, como ele acha que as pessoas se sentiram na situação, que outros comportamento seriam mais adequados naquele contexto, etc. Ver seu próprio comportamento “de fora”, ou seja, sem estar vivendo a situação, é uma forma muito eficaz de se conscientizar sobre seus atos e pensar em formas mais adequadas de agir.

Estas são algumas idéias de procedimentos para treinar habilidades sociais em pessoas com TEA, mas claro que existe uma infinidade de outros procedimentos para este fim. A mensagem principal deste artigo é que o treino de habilidades sociais deve começar desde o início da intervenção e ir sendo refinado à medida que o cliente se desenvolve, de acordo com as exigências sociais de cada idade.

 

Referências Bibliográficas:

American Psychiatric Association. (2013). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.

Cederlund, M., Hagberg, B., Billstedt, E., Gillberg, I., Gillberg, C. (2008) Asperger Syndrome and Autism: A Comparative Longitudinal Follow-Up Study More than 5 Years after Original Diagnosis. Journal of Autism and Developmental Disorders. 38: 72–85.

Laugeson, E. A., Gantman, A., Kapp, S. K., Orenski, K. O. & Ellingsen, R. (2015) Um estudo controlado randomizado para melhorar as habilidades sociais em jovens adultos com Transtorno do Espectro do Autismo: The UCLA PEERS Program. Journal of Autism and Developmental Disorders, 45 (12), 3978-89.

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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

IV Jornada de Análise do Comportamento – USP 2017

Treinamento de Habilidades DBT para Familiares