O Homicídio-Suicídio no Voo Germanwings 9525: Algumas Considerações de uma Autópsia Psicológica

No dia 25 de Março de 2015, o copiloto do Voo 9525 da Germanwings (Lufthansa) Andreas Lübitz trancou-se na   cabine do avião e direcionou a aeronave contra a área sul dos alpes franceses, matando todas as 150 pessoas que viajavam de Barcelona a Düsseldorf. O caso chocou o mundo, e diversas investigações concluíram que Andreas o fez deliberadamente.

Nos dias 30-31 de março de 2017, na cidade de Roma, ocorreu o 2º Fórum Romano sobre Suicídio [1], e o professor Jean-Pierre Soubrier (Centre de Ressources em Suicidologie, Paris) apresentou pela primeira vez alguns resultados do estudo de autópsia psicológica que vem realizando sobre o caso da Germanwings nos últimos dois anos. Algumas das informações deste estudo serão apresentadas aqui.

O Caso

Os dados sobre o caso foram coletados pela BEA (Bureau d’Enquêtes et d’Analyses pour la Sécurit´e de L’aviation Civile). Os principais fatos antecedentes podem ser conferidos no gráfico de linha do tempo abaixo.

Como parte dos procedimentos da condução de uma autópsia psicológica, é necessário identificar possíveis fatores de risco e proteção contra o suicídio do caso. De acordo com Soubrier [3], possíveis fatores de proteção contra o suicídio de Andreas são desconhecidos. Não há dados que confirmem que o copiloto buscou ajuda do grupo de suporte e apoio psicológico disponível para empregados da Lufthansa, por exemplo. Além disso, a família de Andreas se recusou a cooperar com as investigações. Além dos fatores de risco publicados pela mídia após o acidente, outros fatores foram identificados:

  • A evolução do quadro depressivo para transtornos psicóticos, sem tratamento psicofarmacológico suficiente e acompanhamento adequado;
  • Não houve alerta de risco de homicídio ou suicídio emitido pelos médicos que o acompanhavam. De acordo com o Soubrier, os médicos não proveram informações confidenciais à Lufthansa, uma vez que as regras alemãs sobre confidencialidade médica são muito estritas. Deste modo, os médicos tinham medo de serem punidos, caso fornecessem tais informações à companhia aérea.
  • Andreas estava numa situação financeira crítica. Um dos dados mostrou que ele fez um empréstimo para pagar sua licença de piloto aéreo. O fato de julho de 2009 também evidencia a possível perda de sua licença de piloto e fundo do plano de saúde – o que o comprometeria financeiramente ainda mais. Segundo Soubrier, pilotos podem se inscrever para obter seguros complementares em caso de instabilidade no trabalho, mas esta não foi uma possibilidade disponível para Andreas devido ao diagnóstico de depressão inicialmente entregue à empresa em 2008.
  • Ele provavelmente sabia que não seria capaz de voar novamente como piloto licenciado.

Após analisarem os dados do tablet de Andreas, os investigadores encontraram em seu histórico de navegação, pesquisas com as frases “modos de cometer suicídio” e “portas de cabines de avião e suas provisões de segurança”. Por cinco anos o copiloto tinha dificuldades de dormir devido aos problemas de vista que ele acreditava ter – por isto se consultou com mais de 40 médicos e tinha medo de que estava ficando cego. No entanto, nenhum dos médicos encontrou qualquer indicação fisiológica de cegueira, e um deles sugeriu este ser um sintoma psicótico.

Discussão

Em Roma, reconhecendo a escassez de dados pessoais sobre o copiloto devido à resistência da família em cooperar com as investigações, Jean-Pierre Soubrier levantou uma série de questões sobre as limitações de ações preventivas ao suicídio, assim como do quanto é possível antever mortes por suicídio. Por exemplo: qual é o acompanhamento (follow-up) necessário e adequado de pacientes com ideação suicida que possuem uma profissão na área de segurança pública? Quais as limitações da prevenção ao suicídio relacionadas as regras de confidencialidade de informações médicas e psicológicas nesse tipo de caso? Os policiais encontraram na casa de Andreas inúmeros documentos médicos, como prescrições, atestados, exames e receitas; como as notificações médicas de incapacidade para trabalhar deveriam ser procedidas?

A existência de um quadro de depressão não explica por si só a emergência de ideações suicidas. De fato, há evidencias mostrando que apenas 7% das pessoas que recebem um diagnóstico de depressão desenvolvem ideações suicidas [4]. A emergência de ideações suicidas se dá a partir da acumulação de contextos extremamente adversos, da amplitude e flexibilidade comportamental do indivíduo (ou seu perfil psicológico, suas capacidades de resolução de problemas, resiliência e adaptabilidade), da capacidade de buscar por apoio social, da história de vida que selecionou e construiu sua personalidade, e da sensibilidade biológica aos fatores estressores de seu contexto. Por mais que haja poucos dados disponíveis sobre o caso em questão, é possível perceber uma acumulação de estressores desde 2008 na vida de Andreas e de como as coisas se desencadearam a partir daí.

O caso demonstra as características psicológicas que subjazem o desenvolvimento de ideações suicidas: desesperança (principalmente relacionadas às aspirações profissionais e aos compromissos financeiros), constantes pensamentos de fracasso (evidenciados pelas tentativas incansáveis de busca por respostas médicas para o suposto problema de cegueira, o qual comprometeria sua carreira e aspirações), aprisionamento (ver-se enclausurado entre a ameaça de perder o emprego caso tivesse algum tipo de recaída ou reincidência de sintomas depressivos, e o sentir que sua suposta cegueira avançava, resultando em conclusões de que não haveria mais nenhuma solução ou saída). O desenvolvimento de planos para realizar o ato suicida, o acesso ao conhecimento técnico sobre o avião, as oportunidades como copiloto, e o saber que a tentativa de suicídio estaria isenta de qualquer possibilidade de sobrevivência possibilitaram que pensamentos e sentimentos de aprisionamento evoluíssem para o incidente de 25 de março de 2015. Não se sabe o quanto as experiências alucinatórias e delirantes influenciaram o comportamento de Andreas. No entanto, este é um fator extremamente importante para a caracterização do caso. Não é anormal as pessoas que possuem experiências psicóticas sofrerem de ideações suicidas – e se estiverem sem tratamento medicamentoso e psicoterápico – ouvirem vozes de pessoas ou verem mensagens de que devem se matar e também matar outras pessoas, pois assim o sofrimento se acabaria. Os sentimentos e pensamentos de fracasso e aprisionamento podem ser intensificados a níveis quase intoleráveis quando há experiências psicóticas presentes. Esta possibilidade não pode ser negligenciada ao se levantar análises potenciais sobre o copiloto da Germanwings.

É extremamente importante considerar que este foi um caso específico e único. Após a tragédia, o sensacionalismo alimentou absurdos nas redes sociais tais como a afirmação de que pessoas deprimidas são perigosas ou pessoas que sofrem de ideações suicidas podem colocar em risco a vida de outras pessoas. Não há evidências científicas que deem suporte a este tipo de argumentação. O jargão de que “cada caso é um caso” não perde sua validade e qualquer tipo de generalização deve ser feita com muito cuidado, pautada em evidências. Casos de homicídio seguido de suicídio são extremamente raros e com perfil comportamental muito específico, o que não descarta a necessidade de pesquisas. A autópsia psicológica é altamente importante para identificar a complexidade de fatores relacionados a um suicídio, e no caso do copiloto ainda mais por envolver a morte de 149 pessoas.

Por mais que ainda haja muito para se investir no aperfeiçoamento da prevenção, é importante deixar claro que o suicídio pode ser prevenido, e a porta para isto é a busca por apoio profissional, seja ele psiquiátrico ou psicológico.

*Se você não está se sentindo bem e necessita conversar com alguém, entre em contato agora com o CVV-Centro de Valorização da Vida pelo telefone 141 (ligação gratuita de qualquer parte do país).

 


[1] Organizado pela seção de suicidologia da Associação Psiquiátrica Européia.

[2] Isometsä, E. T. (2001). Psychological autopsy studies – A review. European Psychiatry, 16(7), 379–385.

[3] Soubrier, J.-P. (2016). Self-Crash Murder–Suicide: Psychological Autopsy Essay and Questions About the Germanwings Crash. Crisis, 37(6), 399–401.

[4] Joo, J., Hwang, S., & Gallo, J. J. (2016). Death ideation and suicidal ideation in a community sample who do not meet criteria for major depression. Crisis, 37(2), 161–165.

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Escrito por Tiago Zortea

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, onde atuou como pesquisador-bolsista do Ministério da Educação pelo Programa de Educação Tutorial em Psicologia. Possui mestrado em Psicologia pela mesma instituição na área de Evolução e Etologia Humana (Bolsista CAPES). Possui formação em Terapia Comportamental pelo Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento (ITCR) e atua em consultório particular no trabalho com crianças, adolescentes e adultos. Atualmente é pesquisador de PhD na University of Glasgow (Escócia, Reino Unido), membro do Suicidal Behaviour Research Laboratory, onde pesquisa sobre comportamento suicida e práticas parentais. É membro da British Psychological Society e revisor do periódico Archives of Suicide Research (International Academy of Suicide Research). Trabalha com os seguintes temas/áreas: Suicídio; Comportamento Suicida; Autolesão; Prevenção ao suicídio; Práticas parentais; Psicologia Clínica; Análise do Comportamento; Etologia Humana; Investimento Parental.

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