E quando o terapeuta se cansa de seu cliente?

 

A maioria dos psicólogos que atua na clínica provavelmente já experimentou sentimentos de desgaste, cansaço, exaustão ou aversão em relação a algum paciente ou em relação ao próprio trabalho como um todo. Em muitos casos o profissional chega a formular descrições de si mesmo como incompetente ou incapaz de contribuir com a vida daqueles que confiaram em sua intervenção. Do ponto de vista da Terapia Comportamental Dialética (DBT), uma das razões para que isso aconteça é o desrespeito aos limites pessoais do terapeuta, que podem não estar claros ou, ainda que estejam, podem não estar sendo preservados.

Na concepção de Marsha Linehan (1993), criadora da abordagem, os limites pessoais de um terapeuta dizem respeito a quais comportamentos do paciente ele não está disposto a aceitar na interação. A “lista” é construída a partir da observação e descrição das atitudes do paciente com efeito aversivo intenso o bastante para prejudicar a motivação ou a disposição do profissional para dar continuidade a seu trabalho. Obviamente, as ações específicas que tem este efeito em cada clínico dependem de sua genética, história pessoal e cultura (Hunziker e Samelo, 2012), de forma que aquilo que é aversivo para um profissional, pode não ser para outro.

Citando alguns exemplos, eu me incomodo quando um cliente me liga 30 vezes no espaço de tempo de poucas horas e me critica por não ter atendido às suas ligações de imediato, mas outros profissionais podem simplesmente não se importar. Não me importo quando algum cliente faz perguntas sobre minha vida pessoal, mas muitos terapeutas que conheço se sentem extremamente incomodados com isso. Vários profissionais tem como regra não adicionarem pacientes no Facebook; eu, por outro lado, não me importo e inclusive uso o chat da rede social como mais um canal de comunicação.

A importância de o terapeuta ficar atento às ações do cliente que ultrapassam seus limites pessoais pode parecer óbvia, mas na verdade, não é. Linehan (1993) explica que a maioria dos profissionais vem de uma formação que não enfatiza a necessidade de olhar para a relação terapêutica, ou se o faz, dá atenção especial ao impacto do terapeuta sobre o cliente e negligencia o impacto do cliente sobre o clínico. Como efeito, muitos profissionais sequer pensam sobre como as atitudes de seus clientes podem estar contribuindo para a forma como se sentem em relação ao próprio trabalho.

Os pressupostos envolvidos na necessidade de preservar os limites pessoais são simples e conhecidos por toda pessoa que compreenda o básico da Análise do Comportamento. Conforme discutido por Moreira e Medeiros (2007), autores de um dos principais livros introdução à área, a estimulação aversiva tem como efeito a produção de uma série de respostas emocionais desagradáveis, como o medo, a raiva, o cansaço, a preguiça, a irritabilidade e várias outras incompatíveis com que se entende por bem estar, disposição e motivação. Além disso, os autores explicam que ela:

  • Suprime os comportamentos que estiverem ocorrendo temporalmente próximos à sua apresentação, como aqueles envolvidos em se manter à disposição do cliente, atender suas ligações, validar, formular perguntas, entre outros;
  • Aumenta a probabilidade de respostas de contracontrole, como criticar ou julgar o cliente;
  • Aumenta a probabilidade de respostas incompatíveis com aquelas façam o profissional experimentá-la, como agendar sessões, retornar ligações, prestar atenção no que o cliente fala, entre outras.

Talvez, porém, um dos problemas mais graves relacionados à estimulação aversiva intensa e constante no setting terapêutico é que o próprio cliente pode se tornar um aversivo condicionado (Sidman, 2009), de modo que sua presença, por si só, passe a ser difícil de tolerar. Pior que isso, o trabalho clínico como um todo pode adquirir função aversiva em razão do pareamento com outros aversivos (idem), e como efeito,  a disposição e a motivação do profissional podem se reduzir em relação a todos os seus pacientes.

Linehan (1993) explica que os limites pessoais variam não apenas de terapeuta para terapeuta, mas também para um mesmo terapeuta ao longo do tempo. E é fácil compreender estas mudanças. Quando o profissional está mais cansado ou sobrecarregado é natural que seus limites sejam menos flexíveis do que em outros momentos; em uma época em que o terapeuta esteja com a saúde debilitada, sua disponibilidade para ceder a pedidos pode ser menor. E os exemplos não teriam fim. A autora destaca, ainda, que é previsível que o terapeuta seja mais flexível com um cliente cuja relação terapêutica é boa – p.e. um cliente que reforça muitos de seus comportamentos de engajamento – em comparação a outro cuja interação é mais aversiva. Novamente, não há regra arbitrária e universal.

Um pressuposto importante citado pela autora é que as atitudes do cliente que ultrapassam os limites do terapeuta não são, necessariamente, formas de atacá-lo. Podem ser expressões genuínas daquilo que ele precisa ou deseja. As pessoas realmente podem precisar ou querer aquilo que os outros não podem ou não estão dispostos a dar. Isso faz parte dos relacionamentos humanos de forma geral. Aceitar que pode acontecer também na relação terapêutica cria uma uma oportunidade a mais para ajudar o cliente a desenvolver habilidades que serão úteis lá fora. E, de fato, pode ser absolutamente necessário que o clínico ensino ao paciente como limitar suas demandas em relação às outras pessoas, independente do quanto estas demandas sejam válidas ou urgentes.

Linehan (1993) estabelece algumas diretrizes para esse trabalho. São elas:

1 . Monitorar Limites – O terapeuta precisa observar de forma cuidadosa e contínua a relação entre as atitudes de seu cliente e sua disposição para interagir e trabalhar com ele. Essa observação exige algum grau de autoconhecimento. Terapia pessoal e supervisão podem contribuir de forma relevante para isso. Um profissional da DBT pode contar ainda com a reunião de consultoria, componente fundamental da abordagem.

2 . Ser honesto quanto aos limites – Os limites do terapeuta não devem ser apresentados ao cliente como se fossem para beneficiá-lo. A observação de limites é uma necessidade do terapeuta, para que o terapeuta se preserve, ainda que em longo prazo isso se reverta em benefício para o paciente. O profissional deve ser honesto quanto a isso

3 . Pode ser necessário expandir limites às vezes – A observação de limites pessoais não deve ser encarada como um alvará para ser negligente ou não responder às necessidades importantes do cliente. Pode ser necessário abrir mão dos próprios limites em situações específicas, conforme indicado por uma análise funcional adequada do caso.

4 . Manter-se constantemente firme – Frequentemente os clientes tentam fazer com que os terapeutas expandam seus limites defendendo a validade das próprias necessidades, criticando o terapeuta por sua inadequação, ou ainda, ameaçando buscar por outro profissional ou se suicidar. É preciso ficar atento a situações como estas e manejá-las. A análise em cadeia (um tipo de análise funcional) é uma ferramenta útil para nortear a condução de momentos como estes.

5 . Combinar validação, solução de problemas e observação de limites – A importância de tranquilizar, validar e auxiliar a paciente ao mesmo tempo em que se observam os limites é clara. Conforme explica a autora, o fato de não dar ao paciente o que ele quer ou de não conseguir tolerar algum comportamento não significa que não se deve tranquiliza-lo ou auxiliá-lo. A observação de limites precisa ser combinada, o tempo inteiro, com estratégias de validação e solução de problemas. Invalidar as necessidades do cliente raramente é terapêutico.

Fora isso, os comportamentos específicos do clínico para manejar o impasse (necessidades e desejos do cliente X  seus limites pessoais), ensinar o paciente a limitar as próprias demandas e lidar com a frustração proveniente disso não diferem muito daqueles usados no manejo de outros comportamentos dentro ou fora de sessão. Análise Funcional, Análise de Soluções, Modelagem, Modificação do Controle de Estímulos são algumas das estratégias que podem ser empregadas.

Terapeutas FAP geralmente são bastante habilidosos para manejar esse tipo de situação. Embora não usem o conceito de “limites pessoais”, os profissionais que atuam com FAP possuem um treino intenso para identificar os impactos do comportamento do cliente sobre si próprios e fazer uso terapêutico disso. Grosso modo, a conduta de um terapeuta DBT nestas situações pode ser bastante semelhante.

 

MATERIAL CONSULTADO

Hunziker, M. H. L., Samelo, M. J. (2012). Controle Aversivo. Em: Clínica Analítico-Comportamental: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Artmed.

Linehan, M. M. (2010a). Terapia cognitivo-comportamental para o transtorno da personalidade borderline. Porto Alegre: Artmed.

Moreira, M. B., & Medeiros, C. A. (2007). Princípios básicos de análise do comportamento. Porto Alegre: Artmed.

Sidman, M. (2009). Coerção e Suas Implicações. (Andery, M. A., Sério, T. M. Trads). Campinas: Editorial Psy. (Originalmente publicado em 1989).

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Escrito por Esequias Caetano de Almeida Neto

Terapeuta Comportamental, com especialização em Clínica Comportamental pelo Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento (Campinas, SP), com Treinamento Intensivo em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech | A Linehan Institute Training Company (Seattle, Washington/ EUA) e Formação em Terapia de Aceitação E Compromisso e Terapia Analítica Funcional pelo Instituto Continuum (Londrina, PR). É sócio da Ello: Núcleo de Psicologia e Ciências do Comportamento, onde atende a adultos individualmente, em terapia de casais e terapia de família, além de prover Supervisão Clínica e Treinamento para Terapeutas Comportamentais. É fundador e diretor geral do Portal Comporte-se: Psicologia e Análise do Comportamento (www.comportese.com), onde também coordena a equipe de colunistas de Terapia Comportamental Dialética. Coorganizou os livros Terapia Analítico Comportamental: dos pressupostos teóricos às possibilidades de aplicação (Ed. Esetec, 2012) e Depressão: Psicopatologia e Terapia Analítico Comportamental (Ed. Juruá, 2015). Atua como consultor de Comportamento e Cultura para a Rádio Clube (AM 770) de Patos de Minas e escreve sobre Psicologia e Saúde Mental para o jornal Clube Notícia (https://www.clubenoticia.com.br). É sócio afiliado da Associação Brasileira de Análise do Comportamento (ACBr) e, entre os anos de 2015 e 2017, foi membro da Comissão de Comunicação da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC).

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