“Eu rezo e acontece”: o pensamento mágico na prática do coaching

Felipe Dias – felipe@neosrh.com.br

Há 10 anos, um show de humor chamado Terça Insana apresentava uma personagem interpretada por Octávio Mendes chamada Irmã Selma, uma freira mal humorada que iniciava sua carreira de humorista. No esquete, Irmã Selma falava que ensaiara suas primeiras piadas no convento e que as irmãs que riram tiveram fins diferentes das que não riram. “As irmãs que riram, tudo bem, mas as que não riram… eu rezo por elas… e acontece”, dizia a personagem citando uma lista de tragédias ocorridas com as irmãs que não riram de suas piadas. Enquanto show de humor, esta lógica é ótima e engraçada. Entretanto, na vida real a descrição dos fenômenos com uma lógica mágica não é tão engraçada e pode gerar consequências graves para a pessoa, incluindo padrões adoecidos ou de alta exposição ao risco.

Para compreendermos melhor em que ponto esta lógica tem entrado no coaching e como podemos fazer diferente em um processo com base comportamental, retomo um caso de um coachee (cliente) que atendi, o chamarei aqui de Alberto. Ele era um empresário, proprietário e presidente de uma empresa de grande porte criada por ele na década de 90. A empresa surgiu como uma pequena empresa e foi crescendo ao longo dos anos de forma orgânica. Entre 2008 e 2012 a empresa passou por uma explosão de crescimento, quadruplicando sua produção e faturamento. Depois de um período de estabilidade, em 2013, a empresa iniciou um processo de declínio de resultado em 2014, entrando em uma grave crise e passando a operar em prejuízo. Neste momento, o cliente entrou em contato comigo entendendo que o trabalho de coaching poderia ajudá-lo a retomar o bom resultado na empresa.

Depois das avaliações iniciais, como gosto de fazer nos trabalhos de coaching executivo, separei algumas sessões para a observação da rotina de trabalho do Alberto. Naquela época, o clima da empresa estava pesado, o medo de que a empresa quebrasse era evidente e reuniões sucessivas eram realizadas. O padrão das reuniões me chamou a atenção. Na maior parte das vezes, as reuniões eram feitas não para se pensar em soluções para aquele momento delicado, mas apenas simplesmente para se apresentar os problemas. Basicamente, ele iniciava a reunião dizendo, por exemplo, “nesta semana vendemos menos, tivemos um processo trabalhista e estamos com uma previsão de caixa bem menor do que nossos compromissos”. Até aí, tudo normal. Entretanto, em seguida, ao invés dos clássicos brainstorming, análise de espinha de peixe ou outras estratégias comuns de resolução de problemas, ele continuava sua fala quase que invariavelmente reclamando de si mesmo. “Realmente não sei o que vamos fazer, eu sou uma merda de empresário, acho que nem deveria ter aberto esta empresa, não nasci para isso”, esta era uma construção típica de seu discurso. Logo que começava a falar dessa forma, uma ou outra pessoa começava a consolá-lo. “Imagine Alberto, você é um excelente empresário. Veja a empresa que você construiu lá atrás e como ela chegou até aqui!” dizia um, “você é um cara atencioso, bom de negócios, com boa visão de mercado, vai conseguir sair dessa”, dizia outro. A resposta de Alberto a estas frases era a de que conseguiu empreender em outro momento, mas a crise que se instaurara no país não deixava espaço para ele. E isso era seguido de uma sequência de xingamentos e reclamações do governo da época. Todos concordavam que a crise financeira do país era a responsável também pela crise financeira da empresa.

Este padrão observado em Alberto é muito comum de encontrarmos em clientes de coaching. Naquele momento ele possuía um repertório de comportamento governado por regras que descreviam o controle da situação localizado em ente externo (a crise) ou em um ente interno incontrolável (não sou empresário ruim). É como se dissesse, “não há nada a se fazer, pois qualquer ação minha não terá efeito”. Esta regra fatalista e contraproducente é chamada pelos cognitivistas de crenças limitantes. Quase que por unanimidade, os coaches defendem que para produzirmos maiores resultados, este padrão precisa ser interrompido. Entretanto, aqui há um divisor de águas. Alguns coaches vão entendem que este controle por regras contraproducentes (ou crenças limitantes) precisa ser substituído por aquilo que chamam de “crenças poderosas” ou “crenças que empoderam”, enquanto os mais céticos, materialistas e behavioristas, como eu, vão buscar a instalação de repertórios controlados por regras mais funcionais e produtivas. Qual é a diferença?

Quando os coaches falam de crenças empoderadoras ou poderosas, não necessariamente estão se referindo a regras funcionais. Algumas vezes, essas regras são construídas dentro de um padrão mágico do tipo “posso fazer qualquer coisa, porque o mundo conspira ao meu favor”, ou “sou um excelente empresário, tudo o que toco vira ouro”. Quando se constrói uma regra funcional, por outro lado, está se buscando uma descrição entre o que a pessoa faz, ou pode fazer, e as possíveis consequências dessa ação. “Minha empresa não vai dar certo porque sou um péssimo empresário” ou “minha empresa vai dar muito certo porque sou um Midas dos negócios”, são descrições igualmente inúteis em relação à correspondência entre a ação e suas consequências. Como se na primeira descrevêssemos a regra como “farei qualquer coisa, porque nada que fizer vai produzir resultado” e na segunda, “farei qualquer coisa, pois tudo que fizer será acertado”. Teríamos provavelmente duas sensações diferentes, mas a mesma falta de ações produtivas e que deixariam a pessoa ainda distante de chegar ao resultado desejado.

Inicialmente, podemos pensar que este padrão mágico é inofensivo. Como dizem, pode até não fazer bem, mas mal também não faz. “Se não vai fazer mal, pelo menos traz o bem de deixar a pessoa feliz e confiante”. Infelizmente, não é bem assim. O excesso de confiança pode ser perigoso e, em geral, participa da causa dos principais acidentes. Quem sabe nadar é que morre afogado, diz o ditado. Quando a pessoa acredita que rezar lhe trará benefícios, como uma boa saúde ou prosperidade, pode sim ser inofensivo, uma vez que o comportamento de rezar traz poucos riscos para a pessoa ou seu ciclo social. Entretanto, há descrições mágicas do mundo que envolvem comportamentos com grande exposição ao risco. Se uma criança acredita que uma capa de tecido lhe dá superpoderes, pode saltar do 10º andar acreditando que será capaz de voar. Acidentes industriais graves acontecem com profissionais experientes que acreditam que são bons demais ou experientes demais para se envolverem em uma situação de risco. Um dia desses, eu li uma notícia de um rapaz que abasteceu o carro e pagou com pedaços de papel. Ao ser interpelado pela polícia, ele alegou que orou e acreditava que os pedaços se transformariam em dinheiro.

Como caminho alternativo, pode-se buscar a mudança de um padrão comportamental governado por regras improdutivas por outras que não possuem esta lógica mágica, mas que descrevem relações entre as ações e possíveis consequências, regras funcionais e produtivas. No caso do Alberto, uma regra alternativa poderia ser “para minha empresa voltar a ter resultado, preciso fazer um orçamento e planejamento financeiros”, ou “se fizer um estudo de custos e redução destes, posso voltar a ter resultados satisfatórios com a empresa”. Vale ressaltar aqui que no coaching esta intervenção não é feita de forma diretiva, dizendo o que o coachee (cliente) deve fazer. O coach, em geral, faz perguntas que estimulam o cliente a descrever (tatear) as situações e construir suas regras, experimentá-las e validá-las. O cliente é incentivado a explorar alternativas e a se expor a situações para aprender com elas. Um coach responsável, no entanto, incentiva a exposição dentro de recurso e capacidades que a pessoa tem ou que esta busque caminhos para adquirir mais recursos e capacidades necessários e não simplesmente um “segura na mão de Deus e vai”.

Com o Alberto, iniciei então um processo de mudança que incluía reduzir o controle pela regra “sou um péssimo empresário” e instalar repertórios de descrever objetivamente a situação atual, de criar uma regra funcional que expusesse uma relação entre uma ação possível e uma consequência desejada possível, de se expor a esta situação e de validar a regra, mediante esta exposição. Aqui não vou detalhar como fazemos isso no coaching, pois não é o objetivo do artigo. Futuramente podemos discutir melhor estas questões técnicas.

Depois de algumas intervenções iniciais, ele passou a dizer que sua empresa estava com problemas porque não haviam se preparado financeiramente para um momento de crise, porque estavam demorando a redimensionar a equipe e porque mantinham o mesmo formato de trabalho, que já não produzia bons resultados. Isso indicava uma evolução. Nos trabalhos que se seguiram, ele criou regras funcionais como “preciso fazer um redimensionamento da equipe para adaptá-la à realidade atual” e “devo buscar novos negócios pouco explorados para continuar crescendo e manter a operação saudável”. Posteriormente, foi incentivado a agir de acordo com essas regras e a validá-las e assim ele fez. Ao se comportar sob controle dessas novas regras, as próprias consequências selecionaram as regras que estabeleciam relações verdadeiras e úteis. Da mesma forma, deixou de seguir as regras que descreviam relações falsas. Uma das regras abandonadas foi “devo sair com uma frequência maior com minha equipe para que eles gostem mais da empresa e sejam mais produtivos”.

Como especialista em gestão de pessoas e como estudioso de análise do comportamento em organizações, sabia que esta regra não descrevia uma relação verdadeira. Porque eu não falei logo que esta correspondência não era real? Se assim eu fizesse, provavelmente ele seguiria minha orientação, mas o objetivo principal não seria atendido. No coaching, não quero apenas que o cliente tenha um repertório de comportamentos governados por regras funcionais e produtivas. O principal repertório a desenvolver é o de analisar a situação atual, criar regras, experimentá-las e validá-las. É por este objetivo ousado que falamos que no coaching buscamos não apenas a mudança de comportamentos improdutivos para outros mais produtivos, mas sim a autonomia.

Nem todos os trabalhos de coaching seguem esta linha de intervenção. Um coach da turma “good vibes”, por exemplo, poderia ter incentivado o Alberto a “pensar que ele é capaz”, “que pode tudo”, “que Deus está ao seu lado”, “que a natureza conspira ao seu favor”, “que a gratidão a tudo e a todos produz o sucesso”. Caso o coach fosse leitor e seguidor de “O Segredo”, poderia, ainda, direcionar seus esforços para levar seu cliente a “acreditar firmemente no sucesso da sua empresa, porque energias semelhantes se atraem”. Traria técnicas para fazer isso e, talvez, até conseguisse de fato. O problema é que um repertório controlado por regras como essas, em geral, é composto por ações igualmente contraproducentes e, algumas vezes, arriscadas. Alberto, caso seguisse por este caminho, poderia não direcionar seu foco para ações que promoveriam as mudanças necessárias para a empresa. Talvez fosse investir seu tempo e recursos em experiências que mantivessem esse “acreditar”. Ao invés de fazer um orçamento ou planejamento financeiro da empresa, ele poderia se tornar um grande consumidor de autoajuda e passar a ir aos vários congressos de automotivação, autoconhecimento e “auto” um monte de outras coisas. Alberto iria dançar, pular, gritar, saltar, bater palmas, falar palavras de ordem, andar sobre a brasa e realizar vários outros comportamentos até legais e divertidos, que o ajudariam a “acreditar mais no sucesso de sua empresa”, mas que não fariam diferença alguma na promoção do sucesso de fato.

Felizmente, Alberto seguiu um caminho produtivo. Obviamente, o processo com ele envolveu vários outros trabalhos, desenvolvimento de repertórios específicos de gestão, mudança de outros comportamentos governados por regras disfuncionais e demais propostas de intervenção típicas do coaching. No fim do processo, os comportamentos mais frequentes no ambiente de trabalho eram os que realmente faziam diferença para seu resultado e ele, por consequência, já havia conseguido retirar a empresa do ciclo de resultado negativo. Naquele momento, a empresa ainda não havia voltado a ser muito rentável, mas não produzia mais prejuízos também. Seis meses depois do encerramento do processo, como gosto de fazer com os coachees, retomei o contato para avaliar nosso trabalho e saber se as mudanças haviam se mantido. Alberto continuava com um repertório mais produtivo, havia criado outras regras e a empresa estava operando com um resultado satisfatório, voltando a gerar lucro, mesmo estando o país em um momento de grande crise econômica. Apesar disso, ele não é uma exceção, um case fora de série, pois este é justamente o resultado esperado no processo de coaching. Entretanto, algumas pessoas têm passado por trabalhos frustrantes de coaching porque o coach, muitas vezes inexperiente, gasta a maior parte do tempo buscando fazer com que a pessoa acredite firmemente na mudança, ao invés de investir no desenvolvimento de comportamentos mais produtivos. Entre a alternativa mágica e a prática, parafraseio o conselho dado a mim por um senhorzinho lavrador analfabeto do interior de Minas, com o qual concordo, “acreditar não paga dívida”.

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Escrito por Felipe Dias

Psicólogo, coach, consultor em gestão de pessoas, diretor de operações na Néos RH, mestre em Psicologia pela UFSJ e MBA em gestão estratégica de pessoas pelas FGV/Ohio.

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