Prof. Dr. Paulo Abreu – As tensões e intersecções entre Análise do Comportamento e Psiquiatria

Acontecerá, nos dias 10 e 11 de novembro de 2016, a II Jornada de Análise Aplicada do Comportamento, na cidade de Curitiba – PR. O evento, que será promovido pelo IACC – Sul sob coordenação do Prof. Dr. Paulo Abreu, abordará diversos temas polêmicos em nossa área, como as tensões e as intersecções entre Análise do Comportamento, Psiquiatria e as Terapias Comportamentais Contextuais. Para que possamos compreender um pouco mais sobre os assuntos tratados durante as atividades, o convidamos para uma conversa rápida aqui no Comporte-se. Confira, logo abaixo, o resultado.

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Foto: Arquivo Pessoal

Paulo Abreu é psicólogo clínico, doutor pelo Departamento de Psicologia Experimental da USP. Professor dos cursos de Especialização em Terapia Comportamental do Hospital Universitário da USP (HU-USP) e da Especialização de Terapia Comportamental e Cognitiva em Saúde Mental do Ambulatório de Ansiedade, Instituto de Psiquiatria, do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (AMBAN – IPq – HCFMUSP). Editor Associado da Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva (RBTCC), principal publicação científica da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC). Coordenador do Instituto de Análise do Comportamento de Curitiba (IACC).

Comporte-se: Como surgiu a ideia de realizar a JAAC do Instituto de Análise do Comportamento de Curitiba?

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Paulo: O IACC sempre ajudou a divulgar os grandes eventos de análise do comportamento. Nosso apoio ocorria desde a divulgação, até a publicação de entrevistas com os organizadores da época das edições  – assim como essa que por ora o Comporte-se está fazendo conosco! Temos um sentimento de forte compromisso com a divulgação da análise do comportamento e a JAAC, para além dos nossos cursos, sempre foi uma sonhada alternativa. Acredito que criar o nosso evento foi um passo natural de acontecer. A primeira edição aconteceu no ano passado, tendo reunido profissionais de grande relevância dentro da comunidade, a exemplo da professora da USP Dra Martha Hübner, então presidente da Association for Behavior Analysis International (ABAI). Amamos o que fazemos. A nossa JAAC surgiu dentro desse contexto de dedicação e muito trabalho.

Comporte-se: Na JAAC deste ano, um dos temas abordados é a tensão entre a cultura psiquiátrica e a cultura psicológica. Como esta tensão pode ser percebida no mundo acadêmico e fora dele?

Paulo: Felizmente a tensão vem se dirimindo, mais acentuadamente nos últimos 15 anos. Vejo que a resistência é mais forte da parte dos psicólogos, não tirando qualquer ônus dos nossos colegas. Falo isso pois, em qualquer congresso que você venha a entrar de psiquiatria, e em que a tônica seja a terapêutica para um determinado transtorno, invariavelmente você vai ouvir falarem da necessidade do uso da terapia comportamental ou cognitivo-comportamental. E isso tem sido a regra, no geral. Sobretudo quando você assiste a apresentação de algum algoritmo de decisão de tratamento de uma instituição de saúde internacional. Muitas vezes a psicoterapia é descrita como a primeira linha, sendo o padrão ouro de tratamento, a exemplo da Terapia Comportamental Dialética (DBT) no Transtorno de Personalidade Borderline. Arrisco dizer que no Brasil, os maiores divulgadores dessas terapias não fomos nós os psicólogos, mas eles, os médicos psiquiatras. Eles têm contato com um público muito mais amplo e diversificado do que nós, pois falam para mais pessoas, além de exercerem uma influência grande nas instituições de saúde e de planejamento de ações de saúde.

No trabalho do dia a dia parece que a integração segue em clima de parceria. É muito comum o tratamento conjugado entre psicólogos e psiquiatras para um melhor desfecho dos casos. Eles dependem de nós e nós dependemos deles para conseguir ajudar de forma consistente as pessoas que nos procuram, e que estão em intenso sofrimento psicológico. Isso beneficia primeiramente o paciente, que estará sendo cuidado por dois profissionais parceiros, e por outro lado, gera trabalho e intercâmbio de conhecimento para todos os envolvidos. Precisamos definitivamente vencer as limitações profissionais de classe. E essa II JAAC é um esforço genuíno para criar contingências dentro da nossa comunidade que favoreçam essa integração.

Comporte-se: Os psiquiatras, em sua maioria, possuem uma visão biológica dos transtornos mentais. A análise do comportamento, por outro lado, parte de um ponto de vista interacionista. Como é possível unir estas duas vertentes? Quais as implicações desta união?

Paulo: Não vejo qualquer conflito nisso, pois na prática as intervenções não fugirão do trabalho conjugado. Conceber uma etiologia orgânica não implica em uma catarata para as interações sociais do paciente. Estou falando aqui do trabalho especializado, preocupado em abordar o transtorno em todas as suas vertentes, biológicas e psicossociais. Isso vale mesmo para um médico generalista que, em um atendimento no SUS prescreve um antidepressivo, mas também encaminha o paciente para um grupo de psicoterapia.

Abordei até aqui os psiquiatras afiliados a uma visão puramente biológica. Mas uma grande fração desses profissionais entende os transtornos de uma forma mais interacionista e contextualista. E muitos outros mesmo abraçam um modelo de etiologia da psicologia, como os nossos colegas médicos behavioristas que irão falar na II JAAC! O modelo skinneriano é um modelo filosófico excelente no entendimento das psicopatologias.

Veja os nossos exemplos: Na II JAAC o psiquiatra Álvaro Araújo apresentará os princípios e métodos da análise do comportamento que vem se mostrando úteis no tratamento do transtorno do estresse pós-traumático. Destaque para a mesa redonda formada por Francisco Lotufo Neto, Álvaro Araújo e Tito Paes Neto, psiquiatras terapeutas comportamentais do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da USP (HC-IPq-FMUSP), maior instituição latino americana de saúde mental. Os colegas estarão especialmente reunidos nesse debate para responder a pergunta “Por que usar a terapia comportamental no tratamento das psicopatologias?”.  A mesa foi criada pensando no tema interdisciplinar do congresso! Nesse dia também, o professor Dr Francisco Lotufo Neto, chefe do Departamento de Psiquiatria do HC-IPq-FMUSP, falará sobre as pesquisas em psicoterapia. Esse tema é bastante importante não somente para os pesquisadores, mas também para os clínicos interessados em entender melhor o universo das psicoterapias baseadas em evidência.

Comporte-seTem crescido, no Brasil, o movimento de adesão às terapias comportamentais de terceira onda – em especial, ACT (terapia de aceitação e compromisso), IBCT (terapia comportamental integrativa de casais), FAP (psicoterapia analítica funcional), DBT (terapia comportamental dialética) e BA (ativação comportamental). De que forma o conhecimento destas abordagens pode contribuir com a prática dos Terapeutas Comportamentais brasileiros?

Paulo: O Brasil possui uma tradição em clínica única, que não fica nada a dever para os nossos colegas estadunidenses. A ABPMC nasceu nesse contexto. Os analistas clínicos publicaram extensa literatura articulando princípios skinnerianos, como o uso massivo da análise funcional do comportamento – seja na leitura de uma contingência de controle aversivo, seja tentando entender as verbalizações do cliente na sessão por meio dos conceitos de operantes verbais. Faziam isso quando ainda se praticava a modificação de comportamento simples lá fora.

Contudo desde o final da década de 80, muita coisa mudou. Veio a FAP, a IBCT, a ACT, a DBT, e mais recentemente a BA reformulada. As conceituações para os problemas de comportamento dessas terapias são muito interessantes e bastante requintadas. E definitivamente, sua grande contribuição foi a sistematização das intervenções em protocolos, o que permitiu a padronização e a pesquisa de resultados, tão necessária para responder as demandas sociais. Se for verdade que os objetivos de nossa ciência são a predição e o controle, esses objetivos podem ser contemplados em um manual para tratamento de problemas específicos.  As regularidades comportamentais permitem pacotes de intervenções pré-concebidas, por que não? Acredito que os tratamentos protocolares apenas não podem prescindir de rigorosa avaliação funcional do repertório do cliente de momento a momento, no diagnóstico e durante a terapia. Por isso que quando nós brasileiros usamos essas terapias, via de regra não o fazemos de A a Z. Essa é uma herança genuína da terapia analítico-comportamental brasileira. Estamos flexíveis para repensar as intervenções na medida em que as contingências vão guiando os nossos comportamentos. Poucos de nós brasileiros utilizam a FAP ao longo de todo o tratamento, por exemplo. Antes utilizamos enquanto uma estratégia em um momento específico no curso da psicoterapia. A avaliação funcional criteriosa é condição sine qua non para a adoção de um componente de qualquer protocolo, ou mesmo para a integração entre protolos, como na FACT (FAP integrada com a ACT). Esse será o grande quesito a ser respeitado para entrarmos em uma quarta geração de terapias comportamentais.

Na JAAC teremos apresentações sobre a DBT, a ACT e a FAP! A ênfase na terceira onda foi deliberada em nosso planejamento! Cito a apresentação da psicóloga Ana Gumiela sobre o estado da arte da FAP, e do psicólogo Cloves Amorim, que abordará um protocolo da ACT associado à psicofarmacologia.

Comporte-se: Das abordagens de terceira onda, a Terapia Comportamental Dialética (DBT) é a que mais recentemente chegou ao Brasil, e uma das principais polêmicas que a cerca, é se ela é ou não uma abordagem comportamental. Há pouco tempo foi publicado um artigo de sua autoria, em parceria com Juliana Abreu, analisando os pressupostos filosóficos e aplicados da abordagem (clique e acesse). A que conclusão vocês chegaram?

Paulo: A DBT inicialmente causou certo estranhamento em nós behavioristas brasileiros pelos termos que utiliza em seu vernáculo, como comportamento desadaptativo e mindfulness, apenas para citar alguns. Outrossim, o nome do principal livro manual já não foi convidativo, pois trazia termos como “tratamento cognitivo-comportamental” (na tradução para o português ficou “terapia cognitivo-comportamental”). Praticamente um pecado capital em nossa comunidade. Ninguém quis ler o extenso e bom trabalho produzido pela sua autora Marsha Linehan.

Devido a minha predileção por terapias de terceira onda, eu já utilizava e ensinava essa terapia há um bom tempo. Dei módulos sobre a DBT na especialização em terapia comportamental do IACC, e na USP, na especialização do Ambulatório de Ansiedade (AMBAN) do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas. Tive audiências comportamentais e cognitivas que me traziam frequentemente essa questão. Foi então que me vi compelido a tentar responder de forma mais sistematizada a essa pergunta, em forma de um artigo científico. Para isso, eu e a Juliana analisamos os critérios filosófico-aplicados de inclusão nas terapias baseadas na análise do comportamento. Analisamos então a concepção filosófica de base da DBT, bem como as estratégias de avaliação e intervenção. Argumentamos que o embasamento filosófico da dialética (conforme a autora define) se aproxima do behaviorismo, devido a sua definição de comportamento, concepção de causas e de seleção. Identificamos também estratégias de avaliação e intervenção, com foco na aceitação e na mudança, baseadas em análises funcionais, no reforçamento e na modelagem para a aprendizagem de novas habilidades.

Enfim, segundo a nossa leitura, a DBT vem sendo apresentada por Linehan como sendo uma terapia de orientação cognitivo-comportamental, provavelmente pelo apelo publicitário desse tipo de divulgação, ainda que reiteradamente desaprove as abordagens cognitivas clássicas pautadas em concepções e intervenções focadas na mudança de pensamentos. Devido a sua concepção filosófica contextual, e pelos procedimentos de avaliação e intervenção notadamente comportamentais, a DBT pode ser adequadamente categorizada como sendo uma terapia baseada na análise do comportamento. Nada, ou muito pouco do protocolo sugere qualquer compromisso conceitual-aplicado com as terapias de orientação cognitiva.

Na II JAAC teremos a apresentação desse artigo pela psicóloga Juliana Abreu. Eu, ao meu turno, darei um curso sobre a DBT aplicada ao transtorno de personalidade borderline.

Comporte-se: Qual a importância dos clínicos analítico-comportamentais conhecerem os manuais de transtornos mentais, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)? Em que isso pode contribuir com a prática deles?

Paulo: Por muito tempo vigorou na análise do comportamento brasileira a crítica de Ullman e Krasner de 1975 sobre as concepções médicas de psicopatologia. Ela nos forneceu excelentes parâmetros para discussão do que chamou de modelo médico de psicopatologia. Mas precisávamos avançar.

Sim, a psicopatologia é importante. Acho que a importância do diagnóstico vai muito além da simples comunicação entre profissionais de saúde. Nós terapeutas trabalhamos não com o comportamento, mas com as regularidades. Se o reforçamento está envolvido, então terão que existir as repetições. E o diagnóstico aponta para as regularidades comportamentais dos pacientes. Sem esses agrupamentos comportamentais talvez fosse muito difícil conseguirmos trabalhar. Bem da verdade, se não existisse uma concepção de depressão, muito provavelmente teríamos que ter que categorizar em algum momento as classes comuns de respostas depressivas! O fato é que não tem como intervir naquilo que não nomeamos, indiferentemente da forma como o fazemos. E podemos fazê-lo atrelando à análise de contingências, sem problemas! A análise funcional das topografias descritas nos critérios diagnósticos caberá ao terapeuta, dado que seja único o ambiente em que ocorrem os comportamentos de cada paciente. Pelo caráter ideográfico, a identificação dessas relações caberá exclusivamente ao clínico analisar – e essa não é uma limitação do manual diagnóstico. Não teria como ser.

Vou um pouco mais longe, é importante nos apropriarmos de nossa participação na formulação da psicopatologia, pois o DSM, ao longo dos 60 anos de evolução, teve extensa contribuição da psicologia, e dos psicólogos compondo as equipes de trabalho. Exemplos de nossa contribuição comportamental são os critérios diagnósticos comuns trazidos em muitos transtornos de ansiedade – é fácil ler comportamentos de “esquiva ou evitação”, desde o diagnóstico de transtorno do pânico, até as fobias específicas!

A moderna psicopatologia é preciosa também ao descrever disfunções anátomo-fisiológicas comuns aos transtornos, como as causas nitidamente orgânicas para subtipos de problemas. Por exemplo, existem vários subtipos de depressão associados a mudanças orgânicas. Hoje já se sabe que a depressão pode estar associada a mudanças metabólicas de tireoide ou falta de vitamina B, ou que mesmo uma síndrome de abstinência de cocaína pode levar a uma ocorrência severa. Sabe-se que um tipo de transtorno obsessivo compulsivo em crianças, o PANDAS (de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated to Streptococcal Infections), é causado pela infecção por estreptococos (isso mesmo, bactérias!). Esses dados não invalidam a contribuição das contingências de reforçamento, mas antes, as amplificam. Um organismo modificado pode apresentar outro comportamento sob uma determinada contingência, e isso não é inconsistente com o modelo behaviorista.

É claro que afirmar a contribuição da psicopatologia não é o mesmo a ter uma aceitação acrítica do aumento gradual no número de transtornos em cada atualização do DSM. Nem todo diagnóstico é válido, ou mesmo acrescenta adequadas ferramentas de trabalho para o clínico. Poucos de nós terapeutas comportamentais discordaria da relevância científica e utilidade do diagnóstico de depressão, ou do transtorno obsessivo-compulsivo. Contudo, discutiríamos incessantemente os diagnósticos de transtorno desafiador opositivo, ou do transtorno da personalidade narcísica.

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Escrito por Portal Comporte-se

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