Não tenha medo do condicionamento!

Retirado originalmente de http://goias24horas.com.br/wp-content/uploads/2013/08/marionete.jpg
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“Não deixe que o condicionamento psicológico e a lavagem cerebral determinem quem você é e como deve se relacionar com o mundo” (Recuperado de http://sociedaderacionalista.org/2013/07/10/lavagem-cerebral-moralidade-e-condicionamento-psicologico/)

O trecho acima foi retirado de um blog sobre ciência e é uma pequena amostra de um receio comum a muitas pessoas a respeito de palavras típicas das ciências da natureza, especialmente na que se dedica ao estudo do comportamento humano em suas relações com o ambiente, a ciência do comportamento. Palavras como controle, estímulo, resposta, e principalmente condicionamento, causam incômodo e reações inflamadas dos mais eminentes humanistas, ainda mais quando o tema é saúde mental. O legado da reflexologia e da psicologia estímulo-resposta até hoje nos assombra, e não conseguimos produzir alternativas terminológicas com potencial mais produtivo no diálogo com leigos e todo tipo de interessado em comportamento humano.

Escrevo este texto com o objetivo de fazer uma breve discussão sobre condicionamento, mas sem a roupagem técnica tradicional da literatura especializada. Quero ressaltar que, afora práticas culturais tradicionalmente coercitivas, não há motivos concretos para temer o condicionamento, não há nada que não seja condicionamento, nada acontece isoladamente e ninguém existe fora da corrente causal ou desconectado de todo o resto do mundo. A proposta é que o leitor chegue ao final perdendo o medo do condicionamento, desmistificando os históricos mal entendidos sobre o tema e compreendendo um pouco o funcionamento natural do comportamento humano em suas relações com o ambiente.

O dicionário de português online Michaelis define condicionamento como:

1 Ato ou efeito de condicionar. 2 Conjunto das condições em que se realiza um fato; circunstâncias. 3 Psicol. Processo pelo qual uma resposta definitiva vem a ser provocada por um estímulo, objeto ou situação, diversa da resposta natural ou original; aprendizagem elementar por substituição de estímulos; o termo foi a princípio aplicado apenas a atividades reflexas, de onde o nome reflexo condicionado; hoje tem uso generalizado, aplicando-se também a reações complexas. C. da linha, Eletrôn e Telecom: conjunto de técnicas usadas para manter a qualidade das transmissões ou sinais de uma linha em um certo padrão. C. de ar: ato de purificar, umedecer ou secar o ar e regular a sua temperatura”

As três primeiras definições, em itálico, são especialmente interessantes. (1) Ato ou efeito de condicionar, ou seja, o ato de colocar condições. Dito dessa forma a palavra pode mesmo remeter ao medo da coerção e da lavagem cerebral, já que alguém terá que condicionar, colocar condições sobre algo ou outrém. (2) Conjunto de condições em que se realiza um fato; circunstâncias. Aqui temos uma possibilidade bastante útil para os propósitos deste texto, a relação entre condicionamento como ação de alguém, ou meramente como circunstância, condição presente no mundo à nossa volta. (3) Processos psicológicos de condicionamento. O trecho é bastante incompleto e diz mais respeito às relações estímulo-resposta do que o que chamou de “relações mais complexas”. As duas primeiras são mais pertinentes aos propósitos deste texto, então não vou me alongar nas questões conceituais e terminológicas que envolvem a terceira.

Talvez um dos principais problemas no entendimento dos processos de condicionamento é justamente sua identificação com o controle. Diz-se que condicionamento é um instrumento de controle, intencional ou não, e assim como o controle é onipresente. Quem controla o faz por meio de condicionamentos, quem coloca condição em algo ou alguém é necessariamente um “controlador”. Os exemplos clássicos são Laranja Mecânica, Admirável Mundo Novo e 1984, obras distópicas que retratam o ser humano degradado e subjugado à vontade do outro por técnicas malignas de condicionamento. Como evidenciam as conclusões de uma análise do filme Laranja Mecânica, encontrada em um blog sobre pedagogia:

“1. O controle do comportamento social é feito através da técnica Ludovico que, com princípios psicológicos behavioristas de condicionamento, introduz em Alex o mal-estar físico ligado a qualquer comportamento violento.

  1. Como na caixa de Skinner, Alex vincula o seu sofrimento físico a atos de violência introduzidos através de vídeos que ele assistiu exaustivamente, sem ao menos poder fechar os olhos. Esse tipo de condicionamento – ou técnica behaviorista –, relacionando um efeito (seu mal-estar) a uma causa (violência), se faz presente através da teoria comportamental. Seu comportamento é moldado de acordo com os propósitos de outrem” (Recuperado de http://sociedaderacionalista.org/2013/07/10/lavagem-cerebral-moralidade-e-condicionamento-psicologico/)

O trecho destacado é um bom exemplo de mal entendido histórico sobre o que é condicionamento e sobre as abordagens teóricas e filosóficas que versam sobre ele. Assim como a maioria das críticas, traz implícita (por vezes explícita) a noção de que tal perspectiva é reducionista, mecanicista e objetivista em sua compreensão do homem e do comportamento, pautando-se na psicologia estímulo resposta e restrita aos reflexos condicionados e incondicionados como unidade de análise, e as noções de controle e condicionamento pagam boa parte dessa conta. A questão que parece ter escapado aos críticos – e que faz toda a diferença para o behaviorismo radical – é: será que os behavioristas seriam tão relapsos ao ponto de se esquecerem do outro lado da moeda? Existe um velho ditado que diz: “tudo que vai, volta”. Será que só o controle e o condicionamento dos analistas do comportamento são de uma mão só?

No caso do condicionamento exercido por alguém é mais fácil perceber o controle, mas o caso que ilustra a segunda definição do dicionário é bem menos evidente. Um conjunto de condições em que se realiza um fato, ou circunstância, pode ser basicamente toda e qualquer fração do tempo e espaço; na verdade, toda e qualquer fração de tempo e espaço são condições ou circunstâncias para qualquer tipo de evento, da simples passagem do tempo tal e qual o concebemos, à atividade de microrganismos, até mesmo à tentativa mal sucedida de fazer janta por parte do jovem universitário que mora sozinho faz pouco tempo e mal consegue cozinhar o arroz.

Nem os mais fervorosos idealistas ignoram completamente a existência do mundo ao seu redor, já que o concebem, ainda que meramente como a criação de suas mentes e ideias. De uma forma ou de outra ele existe, e então podemos falar em algum tipo de circunstância. Mais interessante e produtiva é a perspectiva de que vivemos localizados no espaço e no tempo, compreendidos como as dimensões físicas e químicas dos eventos que nos rodeiam e constituem, incluindo nosso próprio corpo. Em outras palavras, existimos em relação às outras coisas que nos circundam, somos produto de uma história de evolução e transformação das espécies, de uma história pessoal, e de uma história coletiva e social. O ambiente deixa de ser um mero produto das ideias e, na melhor das hipóteses, se torna ocasião, se torna circunstância, constitui condições.

Toda e qualquer escolha é feita diante das possibilidades que o ambiente apresenta. Quando escolhemos uma roupa, o fazemos diante do frio ou do calor, da chuva ou do sol; quando preparamos uma refeição, o fazemos diante do que tem na dispensa, no máximo saímos para comprar algo necessário para a receita ou que estamos com vontade de comer, mas vamos a algum lugar em esse algo esteja à venda, ou em que possa ser colhido, como uma folha de manjericão ou um fruto; não vamos ao cinema assistir qualquer coisa que quisermos, vamos assistir ao que está em cartaz; não lemos qualquer coisa que quisermos, lemos aquilo que está à nossa disposição em nosso idioma (ou em algum outro que sejamos fluentes), a um preço acessível e de acordo com nosso tempo disponível para leitura. Poderia prosseguir por dias com outros exemplos, o importante é que tenha ficado claro o papel condicionante do ambiente e os controles exercidos pelos mundos físico e físico-social.

Talvez o condicionamento seja mal visto por conta da história de práticas aversivas no tratamento entre as pessoas e por parte de instituições, como o condicionamento clássico aversivo empregado pelas autoridades em Laranja Mecânica. Não gostamos quando nossos condicionamentos são limitantes, restritivos ou impositivos, como quando a única opção de refeição é paupérrima, de educação pública é sucateada e de lazer social é a rua e sua ausência de políticas públicas para o bem estar e desenvolvimento da juventude (ou da terceira idade). Ainda, quando as opções de conduta no meio social são limitadas ou reprimidas por um governo autoritário, por uma polícia violenta, e assim por diante. Desses tipos de condicionamento é compreensível a repulsa, mas um projeto político condizente com o behaviorismo radical é diametralmente oposto ao ilustrado em Laranja Mecânica.

Voltando ao trecho destacado no início, e somado ao trecho sobre Laranja Mecânica – ambos colhidos de blogs relacionados à ciência – a pergunta que surge é: alguém, em sã consciência, realmente acredita ser possível ser livre de “condicionamentos culturais?”. A única ressalva que vale a pena ser feita é que esse questionamento se dá, por vezes, tomando condicionamento como sinônimo de controle aversivo, nos moldes do que comentei nos parágrafos anteriores, nesse sentido, reafirmo, também tenho medo do condicionamento. O fato de essa conotação aversiva ser a mais frequente nos discursos cotidianos – e mesmo os científicos – parece ter relação com uma questão anterior e que dá sua sustentação, a ideia de não sermos condicionados de forma alguma, ou seja, a oposição do condicionamento ao livre arbítrio, à liberdade irrestrita. Essa crença se sustenta fundamentalmente no que talvez seja um dos motivos históricos pelos quais o condicionamento é temido, a doutrina do homem autônomo, agente criativo e livre para ser “sujeito”.

Mesmo formas supostamente positivas de controles e condicionamentos sofrem violenta crítica à luz do homem autônomo. Um músico autodidata é mais festejado por suas habilidades do que aquele que passou a vida toda recebendo aulas e estudando nas melhores escolas de música, um sujeito que pratica uma boa ação sem nenhum motivo aparente é muito mais festejado do que aquele que o faz “por fama, ou por reconhecimento”. “(…) O grau dessa valorização é inversamente proporcional à evidência das causas de seu comportamento” (Skinner, 1971, p. 58), ou seja, quanto mais evidentes os controles e condicionamentos – condições favoráveis de aprendizagem mais evidentes – maiores são as críticas e acusações de tratar o sujeito como uma marionete manipulada, em outras palavras, objetificá-lo.

Quem somos e como nos relacionamos com o mundo são processos que transcendem nossa existência como indivíduo, começando pela nossa história de desenvolvimento enquanto espécie, caminhando por nossa história de desenvolvimento comportamental, ou como pessoa, culminando com nossa história de interação com nossos pares e outros elementos que constituem nosso ambiente social histórico amplo, ou nossa cultura. A evolução nos fez homo sapiens, a nossa história individual nos fez uma pessoa que se relaciona com o mundo, e esse(s) mundo(s) nos fez conscientes de si.

Refaço a pergunta: existe algum tipo de situação em que alguém é livre de condicionamentos culturais? Seja qual for sua resposta, ela certamente também é condicionada. Todas as respostas são condicionadas por suas histórias de evolução, por histórias de vida e pelos ambientes sociais nos quais foram proferidas. Logo, devemos nos preocupar não com o fato de sermos ou não condicionados, porque definitivamente o somos, e sim devemos nos preocupar com o tipo de condicionamento ao qual nossa cultura está submetida, que pode ser responsável tanto por uma cultura autoritária e estagnada, como livre e igualitária. Saber disso é ter o poder para ser finalmente sujeito: “As pessoas se comportam, alteram seu ambiente, e são, assim, alteradas por elas mesmas” (Holland, 1980, p. 401, grifo nosso).

Referências

Oliveira, R. V. (2013, 19 de setembro). Análise do filme Laranja Mecânica segundo a psicologia behaviorista. [Blog]. Recuperado de http://pedagogiaaopedaletra.com/analise-do-filme-laranja-mecanica-segundo-a-psicologia-behaviorista/

Audrey, J. K. (2013, 10 de julho). Lavagem cerebral, moralidade e condicionamento psicológico. [Blog]. Recuperado de http://sociedaderacionalista.org/2013/07/10/lavagem-cerebral-moralidade-e-condicionamento-psicologico/

Condicionamento. (2009). In: Porto Editora (Eds.), Dicionário Moderno Michaelis, São Paulo, Brasil: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php

Holland, J. G. (1980). Alternative social systems: An analysis of behavior change in China and Cuba. Behavioral community psychology: progress and prospects, 388.

Skinner, B. F. (1971) Beyond Freedom and Dignity. London: Penguin Books.

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Escrito por Diego Mansano Fernandes

Diego é um um jovem analista do comportamento, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e formado no interior. Formado em Psicologia pela UNESP de Bauru, e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem também pela UNESP de Bauru, voltado para a Análise Comportamental da Cultura.

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