Questionamento reflexivo: como intervir de forma eficaz sem emitir regras

As regras exercem um papel crucial na clínica comportamental por diversas razões: 1) os clientes podem vir à terapia emitindo comportamentos sob o controle de regras imprecisas ou que não se aplicam ao seu caso. Logo, tais regras precisam ser substituídas por regras mais precisas ou mais adequadas à sua realidade; 2) os comportamentos atuais dos clientes também podem ser controlados por regras que foram precisas no passado, mas que, pelas mudanças nas contingências que descreviam, precisam ser modificadas; 3) é comum clientes não identificarem as variáveis que controlam o seu comportamento, logo, regras devem ser formuladas para descrever tais relações comportamentais, de modo a facilitar a sua modificação; 4) a tendência a seguir ou não regras em geral pode estar intimamente relacionada a demanda do cliente, sendo necessário intervir em repertórios generalizados de seguimento de regras; 5) por fim, muitas vezes os clientes descrevem com precisão as variáveis que controlam os seus comportamentos, porém, não possuem em seu repertório respostas que atuariam sobre tais variáveis. As regras teriam, nesses casos, a função de propiciar a alteração de contingências controladoras de comportamentos relevantes do cliente.

Ao se verificar os papeis que as regras podem exercer na clínica, a sua emissão por parte do terapeuta surge como a forma de intervenção mais óbvia. Sem dúvida, desde que o terapeuta faça análises funcionais cuidadosas acerca dos comportamentos do seu cliente, a emissão de regras de acordo com tais análises parece uma intervenção vantajosa. Seus principais pontos fortes são o pouco custo que oferecem para o terapeuta para serem emitidas e a velocidade com que potencialmente produzem resultados em comparação com outros métodos.

Medeiros (2010), a despeito das vantagens citadas acima, é categórico ao afirmar que o terapeuta somente deve emitir regras para o seu cliente em condições bem específicas. O autor discorre sobre as possíveis consequências da emissão de regras pelo terapeuta para argumentar em favor de sua tese. A sua linha de argumentação segue duas linhas principais. Na primeira, é sugerido que as regras emitidas têm menor probabilidade de seguimento que as autorregras emitidas pelo cliente. O cliente, provavelmente, só seguirá as regras que estão em consonância com o que já tenderia a fazer. Desse modo, este pode não seguir as regras emitidas pelo terapeuta, o que talvez resultasse em alguns efeitos indesejáveis, como, distorções no relato de seguimento ou não da regra, resistência às regras apresentadas pelo terapeuta ou mesmo, no abandono da terapia. Ainda que o cliente siga as regras emitidas pelo terapeuta, outros efeitos colaterais indesejáveis podem surgir, como a dependência, a insensibilidade às contingências e o risco de emissão de regras imprecisas pelo terapeuta que resultariam em não reforçamento e em punição para o seu seguimento.
A discussão acima parece implicar num paradoxo: ao mesmo tempo em que as regras assumem papeis tão relevantes na clínica, a emissão delas pelos terapeutas trazem consequências indesejáveis ao tratamento. Daí surge o questionamento acerca de qual seria a alternativa à emissão de regras por parte do terapeuta que minimizasse as limitações apontadas acima.

Medeiros e Medeiros (2012), ao descreverem a Psicoterapia Comportamental Pragmática, sugerem o procedimento chamado de Questionamento Reflexivo como alternativa à emissão de regras pelo terapeuta. Apesar da similaridade com o Diálogo Socrático das Terapias Cognitivas, o questionamento reflexivo se difere por seu caráter menos indutivo, principalmente por ser feito exclusivamente por meio de perguntas abertas.

O questionamento reflexivo possui quatro objetivos principais: 1) levar o cliente a emitir autorregras analíticas, isto é, regras que descrevam com precisão as variáveis que controlam os seus comportamentos alvo; 2) levar o cliente a formular autorregras acerca das modificações que precisa fazer em seu ambiente, as quais resultarão na mudança dos comportamentos alvo (i.e., regras modificadoras de comportamentos). 3) testar hipóteses de análise funcionais de forma pouco indutiva, o que resultaria na possibilidade de confirmação ou refutação de modo mais confiável; 4) estabelecer o repertório analítico no cliente.
O questionamento reflexivo envolve cadeias de perguntas abertas que funcionam como estímulos discriminativos verbais, os quais criam condições para que o cliente, ao final delas, formule autorregras analíticas e/ou modificadoras de comportamento. As cadeias de perguntas no questionamento reflexivo são heterogêneas, isto é, as perguntas componentes das cadeias variam de acordo com os comportamentos alvo definidos a partir das análises funcionais, com a autorregra a ser formulada, com cada cliente específico e, obviamente, com as respostas dadas pelo cliente às perguntas do terapeuta a cada momento.

Não é possível estabelecer listas de perguntas prontas para a realização do questionamento reflexivo, já que, cada pergunta deve ficar sob o controle discriminativo da fala anterior do cliente. Cada cadeia de perguntas no questionamento reflexivo é diferente, precisando o terapeuta elaborar a próxima pergunta levando em consideração a fala do cliente. Isso ocorre devido a função de reforço de comportamento de ouvinte que as perguntas devem exercer. Se as perguntas não levam em consideração o que o cliente estava dizendo, pode-se considerar que as repostas do cliente foram colocadas em extinção.

O questionamento reflexivo em termos ideais deve se assemelhar a um diálogo comum. Quanto menos ele aparentar ser um procedimento de intervenção, menor a probabilidade de o cliente discriminar quais respostas serão reforçadas pelo terapeuta. Caso o cliente discrimine quais autorregras serão reforçadas pelo terapeuta, o questionamento não diferirá, em termos funcionais, da emissão de regras pelo terapeuta. Daí decorre a relevância do uso de perguntas abertas (i.e., aquelas que permitem grandes variedades de respostas) em detrimento de perguntas fechadas (i.e., perguntas cujas respostas sejam sim ou não).

Geralmente as perguntas abertas são iniciadas por: “qual…”, “o que…”, “com o que…”, “o quanto…”, “como…” etc. Por exemplo: “como o seu marido reage às suas crises de pânico?”; “o que você acha da reação que ele tem às suas crises?”, “como você gostaria que ele te tratasse nessas situações?”, “como ele te tratava antes de você começar a ter crises de pânico?”, “que impactos as crises trouxeram para a sua relação?”. Se tais perguntas forem feitas de forma fechada, as metas do terapeuta ficariam óbvias para a cliente, por exemplo: “o seu marido cuida de você quanto você tem crises de pânico?”, “você gosta do jeito de ele te trata quando você tem crises de pânico?”, “você acha que ele passou a te dar mais atenção quando você começou a ter as crises de pânico?”, “você acha que as crises de pânico aproximaram vocês dois?”.

Observando as duas listas de perguntas, fica clara a diferença delas quanto ao caráter indutivo. Na segunda lista, o cliente pode facilmente identificar as relações comportamentais entre as crises de pânico e a atenção dada pelo marido. Na primeira lista, entretanto, as perguntas se assemelham a uma mera coleta de dados, dificultando a identificação, por parte do cliente, de quais respostas verbais seriam reforçadas. Resumindo, a lista de perguntas fechadas poderia ter a função de regras emitidas pelo terapeuta: “as suas crises de pânico foram uma forma encontrada por você para ter mais atenção do seu marido e resultaram numa maior proximidade entre vocês”. Desse modo, perguntas fechadas com essa função padeceriam da mesma problemática da emissão de regras pelo terapeuta.

As perguntas no questionamento possuem quatro funções básicas:

1. A primeira delas, conforme já explicitado, consiste em reforçar o comportamento verbal do cliente;

2. A segunda é levá-lo a fornecer respostas que criem contextos para as próximas perguntas. Esse aspecto é muito importante, uma vez que o terapeuta faz perguntas presumindo respostas prováveis do cliente. Na realidade, esse é o elemento chave do questionamento reflexivo, um planejamento de cadeias de perguntas deve ser feito pelo terapeuta enquanto ouve o relato do cliente.

Porém, esse planejamento precisa ser adaptado a cada resposta dada pelo cliente. Quanto melhores forem as previsões sobre as prováveis respostas a serem dadas pelo cliente, menos alterações na cadeia original precisarão ser feitas.

Fazer pressuposições acuradas acerca das repostas do cliente às perguntas do terapeuta requer alguns requisitos. O primeiro deles é a realização de uma análise funcional cuidadosa. Quanto mais precisas forem as análises, maior a probabilidade de o terapeuta prever com precisão as maneiras pelas quais o cliente reagirá às suas perguntas na condição de estímulos. O segundo requisito trata-se das informações acerca das contingências atuais e históricas às quais o cliente é submetido. Em termos cotidianos, significa que o terapeuta precisa conhecer bem o seu cliente. Os dois primeiros requisitos servem de argumento para o perigo de se aplicar o questionamento reflexivo precocemente. O questionamento reflexivo dever ser realizado apenas após a conclusão das primeiras análises funcionais. A não ser que o questionamento seja utilizado para testar as hipóteses de análises funcionais.

O domínio dos princípios da Análise do Comportamento, a experiência do terapeuta, a leitura de casos clínicos, a participação em congressos e os próprios conhecimentos gerais do terapeuta também são requisitos muito importantes na hora de prever as respostas do cliente. Tais requisitos demonstram a complexidade do questionamento reflexivo. Desse modo, o terapeuta ao executá-lo é muito exigido, o que representa desafios para a sua formação.

3. Por mais que o questionamento reflexivo seja um procedimento de intervenção terapêutica, as perguntas também podem ter a função de coletar dados. Como as respostas dos clientes nem sempre são as previstas pelo terapeuta, as novas informações fornecidas pelo cliente podem ajudar a complementar, ou mesmo corrigir, as análises funcionais. Daí segue a relevância do uso de perguntas abertas, já que permitem respostas mais amplas do cliente, enriquecendo as informações a serem obtidas pelo terapeuta.
O questionamento reflexivo também pode ter a função de testar hipóteses de análises funcionais. Desse modo, as informações geradas pelas perguntas abertas no questionamento reflexivo podem justamente representar a confirmação ou a refutação de hipóteses de análises funcionais.

4. As perguntas também têm a função de servir de modelo para o cliente. Uma meta em longo prazo do questionamento reflexivo é estabelecer um repertório analítico no cliente. É esperado que o cliente comece a se fazer algumas perguntas chave utilizadas no questionamento reflexivo. Ao fazê-lo, o cliente desenvolverá uma grande autonomia frente às contingências com as quais se depara.
Esse texto teve a função de introduzir o questionamento reflexivo como alternativa de intervenção à emissão de regras pelo terapeuta. Em termos bem sintéticos, o questionamento reflexivo é um procedimento terapêutico composto exclusivamente de cadeias variáveis de perguntas abertas encadeadas na fala do cliente com o objetivo de levá-lo a emitir autorregras analíticas e de modificação de comportamentos.

Dentre as limitações do procedimento é possível listar o desgaste sofrido pelo terapeuta e pelo próprio cliente no decorrer do questionamento reflexivo. O questionamento reflexivo é muito mais custoso para o terapeuta que a mera emissão de regras. Ele também exige muito do cliente, o qual deixa de exercer apenas um papel de ouvinte, passando a exercer também o papel de falante. O cliente, no questionamento reflexivo, é o principal responsável pelo sucesso do procedimento. Em decorrência disso, o questionamento reflexivo pode não funcionar tão bem com cliente com repertório verbal reduzido.

Obviamente vários aspectos do questionamento reflexivo não foram tratados com a profundidade que merecem nesse texto por uma questão de espaço. Porém, é importante ressaltar que o questionamento reflexivo é um procedimento central na Psicoterapia Comportamental Pragmática e que tem produzido resultados animadores com menos efeitos colaterais que a emissão de regras por parte do terapeuta. A despeito do poder do procedimento, é fundamental ressaltar que o questionamento reflexivo é uma forma de intervenção, devendo ser aplicado após a realização das análises funcionais individuais e da formação do vínculo terapeuta cliente.

Referências Bibliográficas:

Medeiros, C. A. (2010). Comportamento governado por regras na clínica comportamental: algumas considerações. Em A. K. C. R.de-Farias (Org.), Análise Comportamental Clínica: Aspectos Teóricos e Estudos de Caso, 95-111. Porto Alegre: Artmed.

Medeiros, C. A. & Medeiros, N. N. F. A. (2012). Psicoterapia Comportamental Pragmática: uma terapia comportamental menos diretiva. Em C. V. B. B. Pessoa, C. E. Costa & M. F. Benvenuti. Comportamento em Foco. v. 01. [417-436]. São Paulo: Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental – ABPMC.

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Escrito por Carlos Augusto de Medeiros

Graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (1997), mestrado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1999) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2003). Atualmente é professor titular do Centro Universitário de Brasília e Professor e Orientador do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Coordenador do Curso de Mestrado em Psicologia do UniCEUB. Tem experiência na área de Psicologia Clínica como terapeuta individual e de casais e como supervisor em nível de graduação e pós-graduação. Apresenta publicações na área de relações de equivalência, comportamento verbal, comportamento governado por regras, relações amorosas, questões conceituais, clínica comportamental, análise comportamental de filmes e princípios de análise do comportamento. Junto com Márcio Borges Moreira, é autor do Livro, Princípios Básicos de Análise do Comportamento.

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