“Sei por que ajo assim, sei que me faz mal, mas não consigo mudar”: Do autoconhecimento à mudança no comportamento.

Um objetivo comum à quase todo tratamento clínico é a produção de autoconhecimento. Pressupõe-se ou espera-se que o autoconhecimento propicie ou favoreça as mudanças dos comportamentos alvo dos clientes. Skinner (1953/1994) define autoconhecimento como um repertório comportamental e uma resposta específica. A emissão de uma descrição precisa de um comportamento e de suas variáveis de controle representaria uma resposta de autoconhecimento. O sistema funcionalmente unificado de respostas especializado em descrever os demais sistemas representaria o autoconhecimento como um repertório comportamental. Em todo caso, autoconhecimento envolveria descrições precisas de variáveis controladores do comportamento.
As discussões acerca de autoconhecimento se tornam particularmente relevantes no contexto clínico. Obviamente não foi a Terapia Analítica-Comportamental que inaugurou a preconização do autoconhecimento como meta terapeuta. A psicanálise já atestava, no início do século XX, a importância da tomada de conhecimento de conteúdos outrora indisponíveis à observação do próprio indivíduo para a melhora de sua condição psíquica. Uma visão do ser humano como um ser racional poderia pressupor que alguém, ao saber por que age de determinada maneira, concluindo que suas ações não têm sido bem sucedidas ou que trazem prejuízos em longo prazo, seria capaz de alterar o seu curso de ação de modo produtivo. A despeito disso, frequentemente psicólogos clínicos ouvem de seus clientes asserções como a do título desse texto: “Sei por que ajo assim, sei que me faz mal, mas não consigo mudar”.

A definição de autoconhecimento ajuda a compreender por que isso acontece, isto é, a baixa correspondência entre o comportamento verbal acerca de um comportamento e esse comportamento em si. Em primeiro lugar, ao se falar de autoconhecimento, sempre ocorre mais de um comportamento. Esse é um ponto importante, pois, se o autoconhecimento for visto como um processo ou fenômeno psicológico à parte do comportamento e que teria status causal sobre este, estaríamos diante de um uso mentalista do termo. Voltando aos comportamentos envolvidos no autoconhecimento, sempre existe um primeiro comportamento, o qual é o objeto de análise. Doravante eu o chamarei de comportamento conhecido. O segundo comportamento representaria a descrição verbal do comportamento conhecido e de suas variáveis de controle, que seria a resposta de autoconhecimento. Resumindo, o autoconhecimento envolve sempre um comportamento conhecido e a resposta de autoconhecimento.
Curiosamente, se um desses dois comportamentos exerce controle sobre o outro, o mais correto a dizer é que o comportamento conhecido controla a resposta de autoconhecimento, e não o contrário. Esse controle se dá pela função de estímulo discriminativo que um comportamento de um indivíduo pode exercer sobre outro comportamento. Da mesma forma que somos treinados a descrever um objeto, somos treinados a descrever o comportamento das outras pessoas. Já as perguntas: “o que você está fazendo?”, “o que você fez?”, “o que você vai fazer?”, “por que você está fazendo isso?” criam ocasião para que as pessoas passem a descrever seus próprios comportamentos que, passarão a exercer função de estímulo discriminativo sobre (i.e., controlar no sentido comportamental do termo) as respostas de autoconhecimento.
A resposta de autoconhecimento não controla o comportamento conhecido porque as variáveis de controle de ambos são distintas. Um exemplo pode ajudar a esclarecer esse ponto. Um cliente de 28 anos, chamado Paulo, namora Roberta de 24. Paulo queixa-se de problemas no relacionamento com Roberta, relatando que terminam e reatam com grande frequência. O terapeuta pede para Paulo contar alguns exemplos desses términos e voltas. Com base no relato de Paulo, o terapeuta percebe que as iniciativas dos términos sempre são dele. Os pedidos de término são motivados por atitudes de Roberta que desagradam a Paulo, como a pouca disponibilidade de tempo para vê-lo, poucas demonstrações de afeto e o tempo que ela gasta com os amigos. As voltas também obedecem a um padrão, Roberta sempre pede para Paulo reconsiderar, diz que o ama e que não consegue viver sem ele e o procura com muita frequência nos dias seguintes ao término. Após algumas tentativas de Roberta, Paulo aceita a reconciliação. As atitudes de Roberta que desagradam Paulo mudam por algumas semanas após reatarem, porém, voltam aos níveis iniciais que precederam os términos.
O terapeuta formula privadamente uma hipótese de análise funcional acerca do comportamento de terminar, ilustrada na Figura 1:
Ocasião:
Atitudes de Roberta que desagradam Paulo
Resposta Analisada:
Terminar o namoro.
Consequências:
Função Sobre o Comportamento:
Curto Prazo:
Roberta dar demonstrações de afeto
Estímulo reforçador positivo
Roberta passar mais tempo com Paulo
Estímulo reforçador positivo
Roberta passar menos tempo com seus amigos
Estímulo reforçador negativo
Perda do acesso a Roberta até a reconciliação
Estímulo punitivo negativo
Longo Prazo:
Desgaste da relação e possível término definitivo
Estímulo punitivo negativo
Figura 1 – Quadro ilustrativo da hipótese de análise funcional do comportamento de terminar.
Na presença de comportamentos de Roberta que desagradam Paulo (ocasião), ele rompe o relacionamento com alta frequência. Esse comportamento produz, em curto prazo, estímulos reforçadores positivos, como mais atenção e demonstrações de afeto de Roberta, e negativo, como ela passar menos tempo com os amigos dela. Porém, essa mudança nos comportamentos de Roberta dura pouco e os mesmos eventos que desagradam Paulo voltam a ocorrer. Novamente, Paulo recorre ao término. Os términos sucessivos provavelmente tornarão a relação insustentável em longo prazo, o que resultaria em um término definitivo, que poderia ser avaliado como um estímulo punitivo negativo. Obviamente, trata-se apenas de uma hipótese com base casos similares. É preciso deixar claro que as classificações dos tipos de consequências no contexto clínico como as feitas acima não respeitam o rigor observado no laboratório.
Retornando ao caso, após um longo questionamento reflexivo (Medeiros & Medeiros, 2012) feito pelo terapeuta, Paulo consegue identificar que seus términos sucessivos são manipulativos e que têm como função produzir mudanças nos comportamentos de Roberta. Além disso, Paulo também formula que seus términos manipulativos podem levar a um término definitivo no futuro. Nesse exemplo, a sucessão de términos manipulativos consiste no comportamento conhecido. Paulo dizer que rompe o relacionamento para que Roberta mude e que os rompimentos resultarão no fim definitivo do seu namoro consiste na resposta de autoconhecimento.
Não seria surpresa que Paulo, mesmo após emitir a resposta de autoconhecimento, venha a romper de forma manipulativa com Roberta no futuro. Por que isso acontece? A explicação é muito simples: Roberta não deixará de passar a ser mais carinhosa, atenciosa e amorosa com Paulo após os términos porque ele consegue descrever com precisão as variáveis que controlam o seu comportamento de terminar de forma manipulativa. Resumindo, as contingências mantenedoras do comportamento conhecido não se modificam pela emissão da resposta de autoconhecimento.
Skinner (1953/1994) sugere que a pessoa, ao discriminar as variáveis controladoras de seu comportamento, está em condições favoráveis para modificá-lo, intervindo diretamente sobre essas variáveis controladoras. Porém, se ela intervirá sobre elas ou não decorre de outras contingências de reforçamento atuais e históricas e não de uma “determinação”, “autodomínio”, “autocontrole” ou “força de vontade”. Presumindo que o terapeuta tenha um acesso restrito às contingências controladoras dos comportamentos alvo do cliente, realmente, cabe ao cliente intervir sobre elas. Aos terapeutas restam apenas aquelas contingências envolvidas nos comportamentos emitidos pelo cliente dentro da sessão de psicoterapia na relação terapêutica.
De acordo com a discussão acima, é possível ver com clareza alguns dos desafios encontrados pelo terapeuta em se tratando de autoconhecimento:
Desafio 1: Com base no relato do cliente e na observação de comportamentos emitidos na sessão, formular hipóteses de análise funcional.
Desafio 2: Testar suas hipóteses de forma não indutiva de modo que elas possam ser refutadas ou ratificadas de modo mais confiável.
Desafio 3: Levar o cliente a formular respostas de autoconhecimento descritivas dos comportamentos conhecidos e de suas variáveis controladoras. Medeiros e Medeiros (2012) descrevem tais respostas de autoconhecimento como autorregras analíticas.
Desafio 4: Levar o cliente, a partir da análise feita, a pensar em novos cursos de ação para intervir sobre as variáveis controladoras dos comportamentos conhecidos. Medeiros e Medeiros (2012) denominam a emissão verbal desses novos cursos de ação de autorregras modificadoras de comportamento.
Desafio 5: Criar condições para que o cliente realmente emita novas respostas que tenham como função intervir sobre as variáveis controladoras dos comportamentos conhecidos.
Desafio 6: Reforçar diferencialmente os novos comportamentos do cliente, lembrando que o acesso a eles se dá, na maior parte das vezes, por meio do relato verbal.
É muito comum terapeutas analítico-comportamentais tentarem vencer os desafios acima com a emissão de regras e com o uso de reforçamento arbitrário (Medeiros, 2014). Medeiros (2010) discute algumas razões pelas quais esse procedimento deve ser evitado, como, por exemplo, a dependência, a resistência e a possibilidade de distorções no relato, efeitos comuns que podem decorrer da emissão de regras por parte do terapeuta.
Apesar de esse texto trazer uma discussão acerca do autoconhecimento que parece descrever um cenário pouco animador, na realidade, ele se propôs a refletir acerca da complexidade do papel do psicólogo clínico. Certamente, gerar autoconhecimento é uma parte importante no processo terapêutico. A despeito disso, nosso trabalho não se encerra aí. Devemos criar condições para que as modificações decorrentes do autoconhecimento venham a ocorrer. Uma vez que elas ocorram, criar contingências para que elas se mantenham.

Referências Bibliográficas:
Medeiros, C. A. (2014). Discussões teóricas e conceituais sobre reforçadores naturais, sociais e arbitrários. Em Comporte-se. Último acesso em 26/05/2014. Disponível em: https://comportese.com/2014/03/discussoes-teoricas-e-conceituais.html
Medeiros, C. A. (2010). Comportamento governado por regras na clínica comportamental: algumas considerações. Em A. K. C. R. de-Farias (Org.), Análise Comportamental Clínica: Aspectos Teóricos e Estudos de Caso, 95-111. Porto Alegre: Artmed.
Medeiros, C. A. & Medeiros, N. N. F. A. (2012). Psicoterapia Comportamental Pragmática: uma terapia comportamental menos diretiva. Em C. V. B. B. Pessoa, C. E. Costa & M. F. Benvenuti (Orgs.). Comportamento em Foco. v. 01, 417-436. São Paulo: Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental – ABPMC.
Skinner, B.F. (1994). Ciência e comportamento humano. Tradução organizada por J. C. Todorov & R. Azzi. São Paulo: Martins Fontes. 9ª ed. (Trabalho original publicado em 1953).
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Escrito por Carlos Augusto de Medeiros

Graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (1997), mestrado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1999) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2003). Atualmente é professor titular do Centro Universitário de Brasília e Professor e Orientador do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Coordenador do Curso de Mestrado em Psicologia do UniCEUB. Tem experiência na área de Psicologia Clínica como terapeuta individual e de casais e como supervisor em nível de graduação e pós-graduação. Apresenta publicações na área de relações de equivalência, comportamento verbal, comportamento governado por regras, relações amorosas, questões conceituais, clínica comportamental, análise comportamental de filmes e princípios de análise do comportamento. Junto com Márcio Borges Moreira, é autor do Livro, Princípios Básicos de Análise do Comportamento.

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