Autismo: O treino da comunicação alternativa por pistas visuais

Na última publicação desta coluna vimos algumas estratégias que visam a instalação do repertório verbal vocal em crianças com atraso na linguagem. Entretanto, em alguns casos, esta linguagem não está apenas atrasada ou deficitária, está completamente ausente no repertório comportamental da criança, que pode não ter adquirido nem os pré-requisitos necessários para treinarmos uma comunicação vocal. Nestes casos é importante que ensinemos para a criança outras possibilidades de comunicação funcional. Afinal, o atraso do desenvolvimento da fala em crianças com autismo não é devido a problemas no aparelho fonatório ou auditivo, como é caso dos surdos-mudos, as crianças com Transtorno do Espectro do Autismo apresentam dificuldades nas habilidades sociais que embasam a linguagem. A criança com autismo não vê função na comunicação, não aprende para que serve a fala e como funciona o processo de comunicação funcional. Está aí a dificuldade na instalação desta habilidade com esta população. Por isso, o principal foco da intervenção na área verbal com autismo não é necessariamente o ensino de habilidades vocais, mas sim o ensino da comunicação funcional. 
É preciso ensinar a criança com autismo a importância de fazer o outro entender o que ela quer ou o que ela está tentando contar. Inicialmente estas crianças não percebem a relevância disso. Algumas até falam muito, mas não possuem o que chamamos de comunicação funcional, ou seja, sua fala não é mantida por reforçadores mediados pelo ouvinte, ela não fala para que o ouvinte entenda ou de modo compreensivo para o ouvinte, fala apenas porque isso é organicamente prazeroso para si mesma. É o que acontece em alguns casos de autismo leve nos quais a criança fala muito, mas fala somente sobre os seus temas de interesse e nunca fica sob controle do outro.
A troca de imagens ou fotos tem sido utilizada como uma forma de comunicação funcional alternativa para crianças com atraso de desenvolvimento que afete a aquisição da fala. A criança é ensinada a selecionar a imagem do que deseja pedir, comentar, perguntar ou responder dentre várias imagens e, então, entregar ou mostrar para o outro (“ouvinte”). 
Este aprendizado está diretamente relacionado à diminuição de comportamentos inadequados que poderiam estar sendo utilizados como forma de comunicação (Charlop-Christy, Carpenter, Le, Le-Blanc e Kellet, 2002). Por exemplo, uma criança que não fala e não se comunica de nenhuma outra forma alternativa acaba aprendendo que birras, agressões e autolesões (machucar a si mesmo) funcionam como forma de comunicação. Afinal, quando a criança emite tais comportamentos os adultos acabam dando atenção e acesso às coisas que ela precisa ou deseja. Nestes casos, o ouvinte não sabe exatamente o que a criança quer, mas tenta adivinhar e acaba reforçando os comportamentos inadequados que, então, se instalam no repertório comportamental e podem aumentar muito.
Muitos estudos (Krantz e McClannahan, 1998; Finkel e Williams, 2001; Shabani, Katz, Wilder e Beauchamp, 2002) apontam que quanto mais concreta (isto é, com mais características físicas), estruturada e específica for o tipo de dica, melhor e mais rápido é o aprendizado de habilidades verbais por crianças autistas, se comparado com as dicas auditivas. Por isso o treino da comunicação funcional por meio da troca de pistas visuais é vantajoso, já que as imagens são pistas concretas e, ainda, universais. A comunicação por gestos (libras) exige um ouvinte com treinamento específico para compreender os sinais. Já as imagens são universais, compreendidas por qualquer pessoa à despeito de treinamento especial. O que facilita o uso generalizado desta forma de comunicação.
Charlop-Christy, Carpenter, Le, LeBlanc e Kellet (2002) ensinaram a comunicação por pistas visuais (PECS – Picture Exchange Communication System) para crianças com autismo e constataram que este treino, além de ensinar a troca de imagens como forma de comunicação, teve efeitos colaterais positivos como: a aquisição da fala espontânea e imitativa (fonemas inteligíveis); o desenvolvimento da comunicação social; a redução dos comportamentos inadequados que ocorriam com a função de comunicação; o aumento do brincar cooperativo, da atenção compartilhada e do contato visual (isto é, habilidades sociais básicas).
Para esta comunicação alternativa pode-se usar diferentes instrumentos. O primeiro e mais conhecido deles é o PECS (Picture Exchange Communication System), que foi Desenvolvido por Bondy e Frosty (1994). O material do PECS foi desenvolvido por Mayer-Johnson (1981, 1985, 1990) e consiste em imagens universais para cada item que compõe uma comunicação. Como no exemplo abaixo.
Estas imagens podem não significar muito para a criança, já que nem sempre se parecem com o alimento real com o qual ela tem contato no dia a dia ou com aquele brinquedo que ela gosta. Por isso, muitas vezes optamos por criar o que chamamos de LPV (Livro de Pistas Visuais), que é confeccionado a partir de fotos individualizadas para cada criança, fotos dos alimentos e objetos reais de sua rotina. Estas imagens devem ser plastificadas e coladas em uma pasta que, após o treino inicial, a criança poderá levar consigo para todo lugar, possibilitando que ela se comunique com qualquer pessoa.
O treino da comunicação por pistas visuais começa com uma foto apenas e, depois, aumenta-se o número de fotos gradualmente. Durante o treino a estimulação antecedente deve ser limpa e objetiva (Tentativas Discretas) e, aos poucos, passará a reproduzir um contexto mais natural. A resposta a ser ensinada é a de selecionar uma foto e entregá-la ou mostrá-la para um ouvinte. As dicas vão sendo retiradas gradualmente, ou seja, começamos com uma dica mais intrusiva (pegar na mão da criança e descolar e entregar ou apontar a foto junto com ela) e passamos gradualmente para dicas mais leves (só direcionar a mão da criança para a foto ou apenas apontar a foto que a criança deve pegar).
Um passo importante do treino e do uso da comunicação por pistas visuais consiste em o aplicador nomear a foto selecionada para a criança repetir. Isso deve ser feito em todas as tentativas, desde o treino, visando aumentar as chances de a criança verbalizar mais e, com o tempo, podermos retirar a comunicação por fotos substituindo-a pela fala.
Deve-se treinar, com a troca de imagens, os principais operantes verbais: Ecoico – pegar a imagem que corresponde à fala do outro; Tato – pegar a imagem que descreve um estímulo do ambiente ou um evento; Mando – pegar a imagem do que se quer pedir; Intraverbal – pegar a imagem que responde a uma pergunta, completa uma frase, ou dá continuidade a um diálogo. Aos poucos, vamos aumentando a complexidade da comunicação por troca de imagens. Pode-se treinar o tato de sentimentos e ações; o relato de eventos passados; a construção de frases; etc.
Sugere-se que o treino comece pelo mando (pedidos), já que o reforçamento deste operante verbal é específico e, portanto, mais eficaz na instalação de uma nova resposta. Para o treino de mando o aplicador deve apresentar uma foto na mesa ou pregada com velcro na pasta de comunicação e mostrar o item de interesse da criança. Quando a criança tentar pegar este item o aplicador deve bloquear esta resposta e já direcionar a mão da criança para a foto, dando a ajuda necessária para ela descolar a foto da pasta e entregar para o aplicador. Então, o aplicador dá o modelo vocal do nome deste item e dá oportunidade para a criança repetir este som. Mesmo que a criança não repita o som ela deve ter acesso ao item pedido, para reforçarmos o pedido pela troca da foto. 
Em alguns casos, após algum tempo usando a comunicação por imagens, a fala se desenvolve e substitui este instrumento, que pode ser então abandonado. Porém, quando a criança apresenta um atraso significativo ou ausência total de desenvolvimento da comunicação vocal, ela pode ficar usando a comunicação por pistas visuais por muito tempo. Quanto mais velha a criança maior o seu campo de conhecimento e interesses e, naturalmente, maior deve ser o seu vocabulário para ela se expressar plenamente. Nestes casos, a pasta de fotos acaba ficando um instrumento inviável na prática, já que fica grande e pesada e a família não consegue produzir imagens rápido o suficiente para o crescente vocabulário da criança. Quando isso acontece devemos transferir a comunicação para um instrumento tecnológico, como os tablets que, além de resolver a questão da quantidade crescente de fotos, é um instrumento naturalmente motivador e que atrai as crianças, o que facilita muito o treino e o uso.
A comunicação por pistas visuais em tablets é vantajosa pela facilidade de inserir novas fotos sem que o material fique pesado ou difícil de transportar. O treino de comunicação por pistas visuais pode ser feito em tablets de duas formas: 1) com fotos categorizadas na pasta de imagens do tablet; 2) com aplicativos desenvolvidos exclusivamente para a comunicação por pistas visuais.
No primeiro caso, as fotos devem ser inseridas no tablet e organizadas em pastas por categorias (Ex: Alimentos, Bebidas, Atividades, Lugares, Pessoas, Brinquedos, etc.). Cada pasta deve ter o nome da categoria escrito com letra bastão e uma foto significativa que simbolize a categoria como capa da pasta. O treino envolve uma cadeia comportamental, ou seja, uma resposta é ocasião para a próxima resposta. A cadeia comportamental completa consiste em: ligar o tablet à tocar na pasta de fotos à tocar na categoria onde está a foto do que se deseja pedir, comentar, responder, etc. à tocar na foto do que se deseja pedir, comentar, responder, etc. à mostrar a foto ampliada na tela para o ouvinte à verbalizar o nome ou som próximo ao nome do item representado na foto após o modelo vocal do adulto. Esta cadeia comportamental deve ser ensinada de trás para frente. Por isso, começamos com a última resposta da cadeia: mostrar a foto ampliada na tela para o ouvinte (já que a verbalização não é exigência para o reforçamento). Este treino é feito da mesma forma que os demais treinos apresentados nesta coluna, ou seja, com hierarquia de dicas (da dica mais intrusiva para a mais leve, até o responder ficar independente) e com reforçamento diferencial de respostas corretas. Concluído o ensino desta resposta, o terapeuta deve iniciar o treino da penúltima resposta da cadeia comportamental, e assim por diante.
A segunda forma de usar tablets para a comunicação funcional, seria por meio de aplicativos criados para este fim. Seguem alguns exemplos: iComm; Proloquo2Go; iCommunicate; Grace; iConverse. Todos estes são na língua inglesa, porém permitem a inserção de fotos pessoais e gravação de áudio. Em português já existem algumas opções, como o Livox (http://www.agoraeuconsigo.org/) e o Que Fala! (http://www.quefala.com.br/).
Referências Bibliográficas:
Bondy, A. S. & Frost, L. A. (1994). The picture exchange communication system. Focus on autistic behavior, 9, 1-19.
Charlop-Christy, M. H., Carpenter, M., Le, L., Leblanc, L. A. & Kellet, K. (2002). Using the picture exchange communication system (PECS) with children with autism: Assessment of PECS acquisition, speech, social-communicative behavior, and problem behavior. Journal of Applied Behavior Analysis, 35, 213-231.
Finkel, A. S. & Williams, R. L. (2001). Comparison of textual and echoic prompts on the acquisition of intraverbal behavior in a six-year-old boy with autism. The Analysis of Verbal Behavior, 18, 61-70.
Krantz, P. J. & Mcclannahan, L. E. (1998). Social interaction skills for children with autism: A script-fading procedure for beginning readers. Journal of Applied Behavior Analysis, 31, 191-202.
Shabani, D. B., Katz, R. C., Wilder, D. A., Beauchamp, K., Taylor, C. R. & Fischer, K. J. (2002). Increasing social initiations in children with autism: Effects of a tactile prompt. Journal of Applied Behavior Analysis, 35, 79-83.
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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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