Para além de uma toalha! – A flexibilidade na Análise do Comportamento

Ainda lembro, era 25 de Maio quando ouvi falar sobre a coleção O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams. Comemorava-se o Dia da Toalha, no qual seus fãs relembravam seu legado por ser este o dia que completava outro ano de sua morte. Não demorou para que logo descobrisse ser a toalha um objeto abordado no Guia do Mochileiro como instrumento básico de sobrevivência pela sua versátil utilidade. Mas, quais outras utilidades a toalha teria além de secar o corpo? Eis a resposta de Douglas Adams adaptada por Gil Vieira em um criativo infográfico:

 
Vemos, então, que a natureza da toalha não se altera, mas a função atribuída a ela é que muda. Aqui, alcançamos um momento importante: qual seria, afinal, a relação entre estas informações e a Análise do Comportamento? Vamos refletir!

Douglas Adams utiliza a toalha em uma brilhante metáfora. A toalha representa quão limitada pode se tornar a nossa leitura de mundo a cada vez que, diante dela, nos “permitimos reforçar” somente pela sua função de “secar o corpo”. Podendo variar em seu tamanho, tecido, qualidade ou cores, a toalha para a maioria das pessoas adquiriu valor reforçador por tal óbvia função, de modo a se tornar por vezes um estímulo discriminativo que sinaliza o comportamento de se banhar.

O autor pode não ter analisado desta maneira, mas ao tomá-lo como base para este texto também o fiz com certa inclinação metafórica. Vivemos em tão constante contato com novas produções intelectuais, arquitetônicas, tecnológicas… que por vezes deixamos de atribuir diferentes funções para uma criação visto que previamente já oferece determinada função.

Cito como exemplo os brinquedos infantis. “Na minha época” – chavão já não utilizado somente por idosos, mas pelas gerações que se comparam às outras – alguns brinquedos não eram encontrados “prontos” e demandavam construí-los, fazendo uso de um repertório comportamental que, devido a tais contingências, estava em franco desenvolvimento. Atualmente, no entanto, vemos uma grande variedade de brinquedos que as crianças pouco ou nada precisam fazer para que adquiram a função desejada. Usemos como referência à nossa reflexão o estilingue. “Na minha época”, o estilingue era criado e por vezes precisávamos procurar os galhos de árvore que melhor sustentassem a pressão do elástico – o que já constituía uma experiência divertida. Agora, com o fenômeno do jogo Angry Birds (aplicativo para celulares e outros recursos mobile), que faz uso do estilingue, em uma loja de brinquedos infantis é possível encontrar este brinquedo pronto.

Com tais apontamentos não intenciono levantar críticas lineares ou comparações entre os repertórios comportamentais das diferentes gerações, pois foram selecionados pelas contingências – especialmente as culturais – que sofreram mudanças ao longo do tempo. Sinalizo apenas a importância de flexibilizar as funções que atribuímos aos objetos com as quais temos contato. É preciso sustentar o pensamento criativo! E tal prática só é possível quando não nos permitimos cair na armadilha de que a função é intrínseca ao objeto criado, seja material (brinquedos, lugares, recursos…) ou imaterial (ideias, conceitos, teorias…).

A toalha apresentada por Douglas Adams como item de versátil utilidade representa, metaforicamente, todos os objetos (materiais ou imateriais) para os quais não atribuímos funções diferentes daquelas originalmente propostas. Talvez esta seja uma das variáveis envolvidas na dificuldade que nosso sistema de ensino encontra em formar pesquisadores. Em certa medida, ser capaz de atribuir diferentes funções a um objeto implica em relacionar-se com o mundo exercitando a habilidade de ampliar os estímulos aos quais nossa percepção está sob controle. Ao nos depararmos com um objeto, devemos ser capazes de vê-lo além de suas funções originais, de modo a vermos também as funções para as quais podemos adaptá-lo, usá-lo, apropriá-lo.

Skinner compreendia que a relação da pessoa com o ambiente era capaz de modificar tanto a pessoa quanto o ambiente. Nesse sentido, quanto maior a flexibilidade de nossos comportamentos, provavelmente mais diversificadas serão as mudanças provocadas no ambiente. Contudo, como podemos flexibilizar nossos comportamentos? Tratando-se de percepção, Skinner explica: “Há muitas maneiras de levar uma pessoa a ver quando não há nada para ser visto, e todas elas podem ser analisadas como um arranjo de contingências para fortalecer o comportamento perceptivo” (1974/2006, p. 75).

Em outras palavras, ampliar sua percepção de mundo, favorecendo a flexibilidade de seus comportamentos – sendo a própria percepção um deles – é resultado de experiências que nos permitimos deliberadamente viver. O arranjo de contingências pode incluir, por exemplo, dispor-se a ler um livro diferente, acompanhar os noticiários, assistir a filmes e programas populares. Quando tais experiências são diferentes do que geralmente compõe seu ambiente, podemos dizer que há possibilidade de reforçarem outros comportamentos em seu repertório, de modo a enriquecê-lo e possivelmente flexibilizá-lo para responder de maneira alternativa às contingências. Sobre isso, Skinner propõe:

Não é apenas na resolução de problemas que se tem ‘repentinamente uma ideia’, no sentido de emitir uma resposta. Em uma metáfora, por exemplo, vimos que uma resposta é evocada por um estímulo que compartilha apenas algumas das tênues propriedades do estímulo orginalmente controlador. (…) A metáfora pode ‘vir a nós’ quando estamos falando ou escrevendo, ou apenas percebê-la quando alguém emite a resposta transferida. Em uma escala maior ‘tiramos novas ideias de um livro’, no sentido de que adquirimos muitas respostas a uma situação, as quais não possuíamos antes de lê-lo. Neste sentido, o livro pode ‘esclarecer nosso pensamento’ a respeito de uma dada situação. (1979/2003, p. 277-278)

Entrar em contato com contingências diferentes, portanto, amplia nosso repertório de comportamentos para flexibilizar a maneira como nos relacionamos com o mundo. Como analistas do comportamento, é preciso permitir a nós mesmos o contato com diferentes objetos (materiais e imateriais), independentemente do quão absurdamente distantes estejam dos nossos interesses. Afinal, até mesmo os nossos interesses foram selecionados pelas contingências e, quanto mais limitadas estas forem, maior o risco de tornar inflexíveis nossos comportamentos.

O melhor é não esquecer: para um hábil analista do comportamento, uma toalha deve ser sempre além de uma toalha.

Referências

ADAMS, D. (1979/2010). O Guia do Mochileiro das Galáxias. São Paulo: Arqueiro.
SKINNER, B. F. (1974/2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.
SKINNER, B. F. (1979/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.
VIEIRA, G. Infográfico do Dia da Toalha. Disponível em: <http://www.designontherocks.xpg.com.br/wp-content/uploads/2012/05/545813_10150834769727966_880824008_n.jpg> Acesso em: 04/03/2013.

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Escrito por Portal Comporte-se

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