A teoria da Equivalência de Estímulos na Pré-alfabetização de crianças com Transtornos do Espectro do Autismo

No último artigo apresentei alguns pré-requisitos que devem ser ensinados antes do início de um processo de alfabetização propriamente dito. Dando continuidade a este tema, apresentarei hoje procedimentos que têm sido utilizados na alfabetização de crianças com dificuldades de aprendizado, principalmente crianças autistas. 

Estudos desenvolvidos na Universidade Federal de São Carlos (dentre eles, Souza e De Rose, 2006) objetivaram alfabetizar pessoas com déficits de aprendizagem. Alguns aspectos dos procedimentos aqui apresentados são oriundos destes estudos, outros são frutos de nossa prática cotidiana na intervenção com estas crianças.

Os procedimentos aqui apresentados estão fundamentados na teoria da Equivalência de Estímulos, tema de muitos estudos na Análise do Comportamento, que teve como marco o experimento de Sidman (1971). Estes estudos apontaram que alguns estímulos passam a formar uma classe de estímulos quando evocam as mesmas respostas. A população leiga diz que estes estímulos têm o mesmo “significado”, nós, analistas do comportamento, entendemos que estímulos que têm o mesmo “significado” fazem parte da mesma classe de estímulos.

Os chamados “conceitos” de figuras, objetos, palavras, sons, enfim, qualquer tipo de estímulo, são formados então, através da equivalência de estímulos. Formam uma classe de estímulos os estímulos que estabelecem algumas relações entre si. Os estudos acerca da equivalência de estímulos têm mostrado que após o treino de algumas relações entre estímulos, outras relações não treinadas emergem sem treino direto. É este processo que ocorre na aprendizagem, ou seja, na compreensão de conceitos e, também, na alfabetização.

Antes de aprender a ler e escrever a criança já tem formada uma classe de estímulos equivalentes contendo figuras (estímulos bidimensionais), objetos reais (estímulos tridimensionais) e sons (palavras faladas pela própria criança e/ou por outras pessoas). Isto significa que a figura de um bolo, o bolo real e o som vocal “bolo” significam a mesma coisa para esta criança. Se alguém falar para ela “bolo” ela imediatamente se lembrará dos bolos que já viu ou já comeu; ou apontará a foto do bolo na revista; ou responderá “Sim, quero de chocolate!”. O mesmo acontecerá se alguém mostrar uma imagem de um bolo para esta criança ou mostrar o próprio bolo real. Ou seja, diferentes dimensões de estímulos evocam as mesmas respostas, porque no decorrer do seu desenvolvimento cognitivo esta criança conseguiu estabelecer relações equivalentes entre estes estímulos e, agora, eles fazem parte da mesa classe de estímulos. 

Porém, antes da alfabetização falta uma dimensão de estímulo nesta classe, falta a palavra escrita. Quando introduzimos a palavra escrita nesta classe de estímulos a criança passa a também responder ao símbolo BOLO (escrito à mão, impresso, em uma revista ou cardápio). As respostas que este estímulo evoca são as mesmas já citadas, ou seja, ao ler a palavra BOLO a criança se lembra dos bolos que conhece; diz que quer um bolo e de qual sabor; aponta uma imagem de bolo ou o bolo real; etc. Neste momento, dizemos que a criança está alfabetizada.

O procedimento básico para introduzir a palavra escrita na classe de estímulos já formada para cada conceito consiste em treinar algumas relações entre estímulos e testar se novas relações emergem sem treino. Os estímulos que deverão estabelecer relações equivalentes entre si são: palavras faladas (que chamaremos de estímulos A); figuras (que chamaremos de estímulos B); e palavras escritas (que chamaremos de estímulos C).

O procedimento prevê o treino direto, isto é, com uso de reforçamento para as respostas corretas e retirada gradual das dicas, das relações AB (palavra ditada X figura) e AC (palavra ditada X palavra escrita). Aprendidas estas relações, testamos a emergência sem treino (isto é, sem reforçamento e sem dicas) das relações de equivalência, das quais a mais importante é a relação BC (figura X palavra escrita). É uma simples questão de lógica matemática, ou seja, se ensinamos para alguém que A = B e que A = C, a verdade B = C não precisa ser ensinada, ela deve ser automaticamente inferida. É neste pressuposto que se sustenta a teoria da equivalência.

Os treinos e testes de relações emergentes são feitos em grupos de 3 palavras. Inicia-se um novo grupo quando a criança atinge o critério de aprendizagem com o grupo treinado. Nos primeiros grupos, as palavras são formadas por sílabas simples, sem as chamadas “dificuldades da língua”, ou seja, sem encontros vocálicos e consonantais, por exemplo, nos grupos iniciais aparecem palavras como BOLO, VELA, TATU, etc. As dificuldades da língua aparecem em grupos mais avançados de treino: NAVIO, MOEDA, etc. Em todos os treinos e testes descritos abaixo deve ser garantida a randomização de estímulos na mesa a cada nova tentativa, para evitar um possível controle pela posição do estímulo.

O treino da relação AB (palavra falada X figura) nada mais é do que uma identificação de figuras, ou seja, o aplicador apresenta as 3 figuras do grupo na mesa, mostra cada uma delas nomeando-as e garantindo que o aluno olhe para cada figura e, em seguida, pede que o aluno pegue ou aponte uma das figuras. Por ser um treino, o aplicador deve começar dando ajudas físicas e ir retirando esta ajuda gradualmente. A cada resposta com ou sem ajuda o aplicador deve elogiar e liberar o acesso a um item de interesse da criança (reforçadores). O treino da relação AC (palavra falada X palavra escrita) se dá exatamente da mesma forma que o treino da relação AB, porém, no lugar de figuras a criança identifica as palavras pedidas pelo aplicador.

Estes dois são os treinos básicos e fundamentais para a formação da classe de estímulos. Porém, na atuação com crianças autistas temos aplicado, também, outros dois treinos complementares: anagramas e escrita.

O treino de anagramas é uma cópia de palavras com sílabas soltas, ou seja, a criança faz um emparelhamento de identidade de sílabas. O aplicador apresenta diferentes sílabas, mostra cada uma delas nomeando-as e garantindo que o aluno olhe para cada sílaba. Em seguida o aplicador apresenta uma palavra do grupo e a nomeia. Então, o aplicador pede que o aluno pegue as sílabas soltas e monte a palavra igual ao modelo.

Finalmente, o treino da escrita pode ser feito de diversas formas, por exemplo, cobrir pontilhado das palavras do grupo ou copiar estas palavras (se a criança já tiver repertório de cópia); com escrita à mão ou no computador (digitação). Para a escrita à mão, num primeiro momento, usamos apenas a letra bastão, pois a coordenação motora fina necessária para a escrita em letra cursiva pode ser muito difícil para crianças autistas.

Feitos estes 4 treinos com um grupo de 3 palavras, deve-se testar as relações emergentes. O critério utilizado para considerar que o grupo de palavras foi aprendido é a independência na identificação de palavras (treino AC). Então, quando este critério é atingido, o aplicador inicia testes de outras relações entre os estímulos A, B e C que não foram treinadas. Nos testes as respostas do aluno não devem ser reforçadas, pois se houver reforço a contingência passa a ser de treino, ou seja, de ensino, e o objetivo agora é só testar se esta relação foi adquirida. Por isso, é importante reforçar outras respostas da criança, ou seja, a cada tentativa o aplicador pode pedir outra resposta para o aluno e disponibilizar o reforçador contingente a esta resposta e não às respostas ao teste. Além disso, nos testes não devem ser dadas dicas.

A primeira relação de equivalência que deve ser testada é a relação de reflexividade, ou seja, um estímulo é igual a ele mesmo. Então, testam-se as relações BB (figura X figura) e CC (palavra escrita X palavra escrita), ou seja, são tarefas de emparelhamento de identidade. O aplicador apresenta as 3 figuras ou palavras do grupo, mostra cada uma delas nomeando-as e garantindo que o aluno olhe para cada uma. Em seguida o aplicador entrega uma figura ou palavra para o aluno e pede que ele coloque-a na figura ou palavra idêntica, dizendo “Onde vai?”.

A outra relação de equivalência a ser testada é a relação de simetria, ou seja, o inverso das relações já aprendidas. Então, se treinamos a relação AB (palavra falada x figura), temos que testar a relação BA (figura X palavra falada); e se treinamos a relação AC (palavra falada x palavra escrita), testamos agora a relação CA (palavra escrita x palavra falada). Estes testes consistem no tacto (nomeação) de figuras (BA) e de palavras escritas (CA). O aplicador deve apresentar cada uma das figuras e palavras que foram treinadas para o aluno nomear ou ler.

Um dos testes de relações emergentes mais importantes de se fazer para verificar se a criança está adquirindo a chamada “leitura com compreensão” é o teste de transitividade. Se ensinamos que a palavra falada “Bolo” é igual à figura do bolo (Relação AB) e que esta mesma palavra falada “Bolo” é igual à junção das letras impressas BOLO (Relação AC), deve emergir a relação entre a figura e a palavra escrita (BC), relação esta que recebe o nome de transitividade na teoria da equivalência. Então, neste teste, conduzimos um emparelhamento arbitrário entre figuras e palavras escritas. O aplicador apresenta as 3 figuras do grupo, mostra cada uma delas nomeando-as e garantindo que o aluno olhe para cada figura. Então, o aplicador entrega uma palavra escrita do grupo para o aluno e pede que ele a coloque na figura correspondente, dizendo “Onde vai esta palavra?”.

Finalmente, concluímos os testes com a relação que comprova que houve a formação de uma classe de estímulos equivalentes: a relação de equivalência, que nada mais é do que a simetria da transitividade, ou seja, a relação CB (palavra escrita X figura). Este teste consiste no mesmo emparelhamento arbitrário descrito acima, só que com as palavras na mesa e cada figura dada na mão da criança para ela parear com a palavra correspondente.

Os treinos e testes descritos acima, são feitos com cada grupo de 3 palavras e o aluno não precisa ter demonstrado a emergência de cada relação não treinada para seguir para o próximo grupo, afinal estas relações tendem a começar a emergir no decorrer dos grupos.

Obviamente, o objetivo não é fazer tais treinos e testes com todas as palavras da língua portuguesa. Então, espera-se que a criança generalize o aprendizado para novas palavras não treinadas. Este procedimento visa ensinar a discriminação de sílabas para que a criança possa recombinar estas sílabas formando novas palavras não treinadas. Então, após os treinos e testes de relações emergentes com cada grupo de 3 palavras, são feitos testes de generalização com palavras formadas pela recombinação de sílabas das palavras já treinadas. Por exemplo, se no Grupo 1 são treinadas as palavras BOLO, VELA, TATU e no Grupo 2 as palavras BICO, MALA, VACA; após o Grupo 2 testa-se a leitura das palavras BOCA (formada pelo BO de BOLO e o CA de VACA) e COLA (formada pelo CO de BICO e o LA de VELA ou de MALA). Se a criança estiver aprendendo a discriminar e nomear as sílabas ela será capaz de ler estas novas palavras.

Para as crianças que já falam este teste é feito apenas com a leitura destas palavras recombinativas. Então, o aplicador deve apresentar cada uma das palavras recombinadas para o aluno ler. Com crianças não verbais, é conduzido um teste de identificação das palavras recombinadas. O aplicador apresenta 2 palavras recombinadas impressas e um cartão em branco (ocupando a 3ª posição na mesa), mostra cada palavra (sem nomeá-las) garantindo que o aluno olhe para cada palavra. Então, o aplicador pede que o aluno pegue ou aponte uma das palavras. Novamente, como a situação é de teste, o aplicador não deverá usar dicas e nem reforçar as respostas adequadas do aluno, por isso ele deve disponibilizar os reforçadores para outras respostas fora do teste.

Assim, o treino vai sendo conduzido com cada grupo de 3 palavras: treinos das relações principais; testes das relações emergentes; e testes de generalização com palavras recombinadas. O procedimento é feito até a criança demonstrar emergência de todas as relações treinadas e, também, até ela ser capaz de ler as palavras recombinadas, o que significa que ela ficou sob controle das sílabas e, então, lê qualquer palavra.

Algumas crianças autistas apresentam muitas dificuldades em aprender cada relação e podem não demonstrar as relações emergentes. Nestes casos, temos que desenvolver procedimentos de correção específicos para a dificuldade de cada criança. Por exemplo, em um treino que está muito difícil para a criança, podemos usar o fading in dos estímulos errados, isto é, nas primeiras tentativas apresentamos apenas o estímulo discriminativo (estímulo correto) e os estímulos incorretos (delta) vão aparecendo gradualmente (primeiro impressos em tons bem claros, escurecendo gradualmente), aumentando o grau de dificuldade. Outro procedimento que evita os erros e a conseqüente desmotivação na tarefa é o fading out da dica, ou seja, uma dica (física, gestual ou uma ênfase no estímulo correto) que guia a resposta para o estímulo correto vai sendo retirada gradualmente. Esta dica deve ser dada antes de a criança começar a responder, para evitar o erro e seus efeitos colaterais, como desmotivação, abandono da tarefa, sentimentos de fracasso, etc.

Como vocês podem constatar, os procedimentos aqui descritos são bastante densos e com alto nível de exigência, por isso, o aluno deve estar muito motivado em cada treino ou teste. O terapeuta deve, para isso, utilizar objetos, brinquedos, vídeos ou até alimentos que sejam de total interesse do aluno.

Os computadores e os tablets têm sido instrumentos importantes no ensino de crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem, afinal, são, em si, motivadores e interessantes, além de oferecerem muitas alternativas de estimulação visual e auditiva. Por isso, com algumas crianças temos optado por apresentar todos estes treinos e testes no computador ou em tablets. Para isso, podemos construir cada contingência no Power Point, bem como intercalar tentativas de treino com vídeos ou imagens reforçadoras. Também pode ser desenvolvido um programa mais elaborado com estas contingências.

O procedimento aqui descrito faz parte do início do processo de alfabetização que deve ser continuado e complementado na escola regular, com as adaptações necessárias para as necessidades especiais da criança. No próximo artigo veremos alguns procedimentos de ensino que visam instalar a função da leitura e da escrita no repertório comportamental de crianças autistas já alfabetizadas, bem como o ensino da compreensão e interpretação de textos.

Referências Bibliográficas: 
Sidman, M. (1971). Reading and auditory-visual equivalents. Journal of Speech and Hearing Research, 14, 5-13.
Souza, D. G. & De Rose, J. C. (2006). Desenvolvendo programas individualizados para o ensino de leitura. Acta Comportamentalia, 14, 77-98.

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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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