Linguagem, Sofrimento e a Teoria dos Quadros Relacionais

A característica mais relevante da linguagem e cognição humana se refere a nossa capacidade de relacionar estímulos de forma arbitrária, independente das propriedades formais dos estímulos e relações de contingências.

Murray Sidman (1971) foi o pioneiro a descrever a emergência de comportamentos novos – que não são seguidos de reforçamento – sob controle de estímulos arbitrariamente relacionados, revolucionando o conceito de linguagem e comportamento simbólico dentro da perspectiva comportamental.

Através dos procedimentos desenvolvidos por Sidman, palavras escritas, sons, desenhos e outros símbolos podem ser arbitrariamente relacionados, tornando-se substituíveis no controle do comportamento na medida em que passam a partilhar algumas de suas funções (De Rose & Bortoloti, 2007; Barnes-Holmes, Barnes-Holmes, McHugh, Hayes, 2004; Hübner, 2006; Barnes-Holmes, Keane, Barnes-Holmes, & Smeets, 2000).

Partindo deste contexto, a Teoria dos Quadros Relacionais, (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), propõe que indivíduos verbalmente competentes são capazes de responder a relações arbitrárias entre estímulos, ou seja, somos capazes de responder a relações que não são baseadas somente em propriedades físicas (como “uma bola de gude é menor que uma bola de basquete”), mas em convenções estabelecidas socialmente pela comunidade verbal (“um Real vale menos que um Dólar”). Para a RFT, compreender essa habilidade é central para o entendimento do comportamento humano.

A Teoria dos Quadros Relacionais afirma que o responder relacional arbitrariamente aplicável (qualquer resposta controlada por uma relação arbitrária) é um comportamento operante. Portanto, 1) é aprendido, se desenvolve, e 2) está sob controle de estímulos, ou seja sob controle de dicas contextuais que determinam o modo como os estímulos devem ser relacionados (por comparação, oposição, igualdade, hierarquia, etc). Na medida em que somos expostos, a múltiplos exemplos de respostas relacionais (uva menor que a bola; lápis menor que o estojo; Maria menor que João) as dicas contextuais que controlam tais respostas (menor que) são abstraídas e podem ser aplicadas, de modo arbitrário, convencionado pela comunidade verbal, a novos estímulos (um Real é menor que um Dólar) (Hayes et al, 2001, Ruiz, 2010).

Quadros relacionais são diferentes classes de respostas relacionais (comparar, hierarquizar, opor, igualar etc.) que se diferem pelo tipo de relação arbitrariamente estabelecida entre os estímulos e pela dica contextual que controla tais respostas (maior que, pertencente à, oposto de, igual à etc.). São três os eventos que caracterizam os quadros relacionais: a Implicação Mútua, a Implicação Combinatória e a Transferência de Função.

A implicação mútua envolve a bidirecionalidade da relação entre dois estímulos, ou seja, se um indivíduo aprende a relacionar o estímulo A com o estímulo B, está implicado que B está relacionado com A de algum modo. Assim, se Maria é mais bonita que Joana, ele irá derivar que Joana é menos bonita que Maria.

A implicação combinatória é caracterizada quando dois estímulos estão mutuamente relacionados a um terceiro estímulo em comum e, por isso, passam a se relacionar indiretamente. Por exemplo, quando aprendemos que A é maior que B e que B é maior que C, pela combinação das duas relações aprendidas, podemos nos comportar em acordo com as relações A é maior que C e, por implicação mutua, C é menor que A. Assim, se for dito a um adolescente que Adriana é mais bonita que Joana, ela irá derivar que Maria também é mais bonita que Joana e então, Joana é menos bonita que Adriana.

O fenômeno psicológico mais interessante no estudo dos quadros relacionais é certamente a transformação de função. Estímulos arbitrariamente relacionados podem ter suas funções transformadas por conta do tipo de relação estabelecida entre eles. (Dougher, et. al. 2002; Hayes, Luoma, Bond, Masuda & Lillis , 2006). Supondo que um estímulo A tem função reforçadora, se A for arbitrariamente relacionado como maior que B e B maior que C, o estímulo C será mais reforçador que A (Whelan & Barnes-Holmes, 2004). Por outro lado, se A e C estiverem relacionados por oposição, C terá função punidora, aversiva, e não reforçadora (Whelan, Barnes-Holmes, & Dymond, 2006). Por exemplo, se a um adolescente é dito que com uma namorada mais bonita ele será mais respeitado pelos seus pares, ele provavelmente abordará Adriana.

Uma vez que o indivíduo tem um repertorio verbal mínimo, a transformação de função de estímulos de acordo com a rede relacional estabelecida (que pode envolver múltiplas relações diferentes) é incontrolável e, ao contrario do que sugerem algumas técnicas psicológicas,

mudar ou subtrair o conteúdo das redes relacionais não é possível pois as mesmas são produtos de uma extensa história de aprendizado e funcionam por adição (Törneke, Luciano, & Valdivia, 2008; Wilson, Hayes, Greeg, & Zettle, 2001; Wilson & Luciano, 2002; Hayes, Barnes-Holmes, Roche, 2001). De tal forma que tentativas de alteração direta focadas no conteúdo da rede relacionais acabam por ampliá-las, aumentando o controle pelo seus conteúdos (Hayes, et al, 2001).

Segundo a ACT, tentativas de alterar as redes relacionais aprendidas, tais como estratégias de racionalização e de supressão de pensamentos, podem levar à inflexibilidade do repertório e às chamadas psicopatologias. Isso se dá justamente porque os processos cognitivos e verbais não são adequados para eliminar ou solucionar os problemas criados pelos mesmos (Hayes et al, 2006).

Assim humanos verbalmente competentes são capazes de responder sob controle de relações arbitrárias entre estímulos. Isto significa que somos capazes de responder a palavras como se elas fossem os eventos aos quais estão relacionadas, emitindo respostas tais como planejar, comparar, ordenar e hierarquizar (Luciano, et al. 2006; Hayes, Pistorello & Biglan, 2008), assim como podemos responder emocionalmente à palavras como se fossem os eventos que elas descrevem. Tais redes relacionais podem relacionar-se com outras redes relacionais tornando as relações entre estímulos extremamente complexa (Stewart, Barnes-Holmes, Hayes, & Lipkens, 2001, Barnes-Holmes, et al, 2004a).

Esta habilidade de derivar relações torna os indivíduos hábeis para regular seu próprio comportamento, prever as consequência das suas ações e mesmo construir uma cultura (Conte, 2010). Entretanto quando há a transferência de funções aversivas em redes relacionais arbitrariamente estabelecidas sem o devido controle contextual, a mesma classe de respostas que permite a sofisticação e a flexibilidade do comportamento pode restringi-lo, torná-lo inflexível, regulado por respostas de fuga e esquiva que caracterizam o que chamamos de “sofrimento psicológico” e, muitas vezes, de psicopatologia (Barnes-Holmes, Barnes-Holmes, McHugh, Hayes, 2004b).

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Escrito por Desirée C. Cassado

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos, Especialização em Terapia Comportamental e mestrado em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo. Atualmente atende em consultório particular na cidade de Sorocaba/SP e realiza o Máster em Terapias Contextuales – Terapia de Aceptación y Compromiso (ACT) y Psicoterapia Analítico Funcional (FAP) em Madrid/Espanha.

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