Autismo: A avaliação de repertório inicial

A família chega ao consultório ou clínica, encaminhada pelo psiquiatra ou neurologista com a sábia recomendação de iniciar um tratamento comportamental “para ontem”; ou chega com a indicação de outra família conhecida que já faz o tratamento e que a encheu de esperanças; ou, ainda, chega após os sinais de alarme desesperados que a professora vem dando nos últimos meses ao comparar a criança com os demais alunos da turma. 
É um alívio poder afirmar que todos estes casos estão ficando cada vez mais frequentes, o que significa que médicos e escolas estão sendo cada vez mais capazes de detectar os primeiros sinais de autismo e cada vez mais cedo. É um alívio assistir às famílias que já estão em tratamento conseguindo vencer as barreiras do preconceito e ajudar outras famílias iniciantes. 
É um alívio que eu não tenha casos recentes para contar de famílias que chegam amedrontadas e extremamente culpadas, porque acabaram de ouvir que o atraso no desenvolvimento de seu filho é culpa da falta de afetividade disponibilizada pelo cuidador. É um alívio poder constatar que as pesquisas já avançaram suficientemente na busca das causas genéticas e neurológicas do autismo a ponto de eliminar esta covarde culpa depositada nas “mães-geladeira” que, na verdade, como pude ver até agora nos meus oito anos de experiência, são mães extremamente carinhosas e afetuosas. 
Enfim, seja como for esta chegada, esta criança e seus pais estão lá, alguns com um diagnóstico médico em mãos, outros apenas com relatórios escolares cheios de dúvidas e preocupações. E agora? Como começa o trabalho do analista do comportamento? 
A noção de comportamento apresentada no primeiro artigo desta série (publicado no dia 27 de março de 2012) não cabe em uma avaliação normativa, baseada na comparação com grupos de pessoas semelhantes. Por isso, esta avaliação é diferente do diagnóstico médico e das avaliações feitas tendo como referência o desenvolvimento típico. A análise do comportamento considera, na avaliação inicial, fenômenos diferentes daqueles considerados no diagnóstico médico, enquanto este é focado na topografia (forma) da resposta, o processo de avaliação comportamental busca identificar repertórios que precisam ser desenvolvidos, mantidos, minimizados ou extintos. A análise do comportamento não utiliza rótulos definidores de um conjunto de sintomas, que é o que torna o diagnóstico médico normativo e padronizado para cada faixa etária e para cada doença ou transtorno. A noção de comportamento aqui apresentada exige uma avaliação inicial totalmente individualizada e que busque identificar como a pessoa se comporta em cada contexto de sua rotina. 
Atribuições de personalidade do senso comum, como “a criança é agitada” ou “ela é agressiva”, também não fariam sentido na avaliação inicial proposta pela análise do comportamento. Sob esta visão, estas conclusões poderiam, provavelmente, ser do tipo “em situação de ociosidade, ou seja, sem estimulação ambiental que guie o comportamento da criança, ela apresenta comportamento agitado e, com isso, provavelmente obtém sensações físicas prazerosas que mantêm este comportamento” ou, então, “frente a uma demanda acadêmica, a criança emite respostas agressivas e, com isso, consegue fugir desta demanda”. Isto é, na avaliação inicial, a análise do comportamento não busca características de personalidade ou caráter que, no senso comum, são vistas como imutáveis. Pelo contrário, busca relações entre variáveis ambientais e orgânicas que estão evocando (variáveis antecedentes) e mantendo (variáveis consequentes) alguns padrões de respostas. A análise destas relações esclarece ao analista do comportamento a função da resposta avaliada e, principalmente, possibilita a modificação desta resposta a partir da manipulação de variáveis antecedentes e consequentes. 
Neste momento, o objetivo do analista do comportamento é planejar a intervenção comportamental a partir do conhecimento do repertório inicial de cada criança. Assim, o profissional cria uma linha de base de cada repertório para, após o início da intervenção, comparar a criança apenas com ela mesma, seu desempenho antes e depois de cada procedimento de ensino ou de controle comportamental aplicado. 
Uma parte da avaliação comportamental é feita por meio da observação direta dos comportamentos da criança ocorrendo sem intervenção nos ambientes naturais (casa, escola, etc.). A outra parte envolve a manipulação de variáveis ambientais em contingências artificiais para comprovar a função dos comportamentos que são alvo da intervenção e, também, para detectar estímulos antecedentes e consequentes que facilitem o aprendizado. Ambos os contextos possibilitam a Análise Funcional dos comportamentos, ou seja, a identificação da relação entre seus eventos antecedentes e consequentes. Esta análise é feita tanto para os comportamentos inadequados que devem ser minimizados e extintos, quanto para os comportamentos adequados que devem ser instalados ou maximizados. 
O processo de avaliação comportamental ocorre em, pelo menos, três contextos: no setting terapêutico (clínica); no contexto domiciliar; e no contexto escolar. A clínica é o único dos três contextos que permite o controle e a manipulação de variáveis ambientais da forma que o analista do comportamento precisar, para que as hipóteses acerca das funções dos comportamentos sejam testadas e comprovadas ou não. Esta análise é que guiará, durante a intervenção comportamental, a manipulação de estímulos ambientais para a modificação de comportamentos. 
É na clínica também que temos as condições ideais para fazer uma linha de base das habilidades acadêmicas, sociais, verbais e de autonomia nas atividades cotidianas. Afinal, neste contexto podemos apresentar tentativas discretas para cada habilidade avaliada e verificar que resposta a criança dá, sem a interferência de variáveis que fogem do controle do profissional. Esta linha de base será fundamental para que o analista do comportamento decida que habilidades ensinar primeiro e como ensiná-las, além de ser imprescindível para que se possa verificar se as habilidades aprendidas foram mesmo ensinadas pelos procedimentos aplicados. 
No setting terapêutico aplicamos alguns testes padronizados pela literatura comportamental. Um exemplo são os Testes de Preferência de Estímulos, que visam identificar variáveis motivacionais que afetam o desempenho da criança e que poderão, durante a intervenção, ser utilizadas como reforçadores no processo de ensino de novas habilidades. 
DeLeon e Iwata (1996) desenvolveram um dos mais utilizados testes de preferência de estímulos, no qual o avaliador seleciona sete itens (dentre brinquedos, objetos ou comestíveis) do interesse da criança com base em entrevistas com familiares ou cuidadores. Estes itens são apresentados para a criança e pede-se que ela escolha um. A cada tentativa o avaliador troca a posição dos itens restantes sem repor os que já foram escolhidos, até que a criança deixe de escolher algum item em até 15 segundos ou até que acabem os itens. A ordem de escolha é considerada como a ordem de “preferência” e, então, o analista do comportamento pode testar se os itens preferidos funcionam como reforçadores para as respostas da criança. Vale lembrar que estes estímulos são considerados, a princípio, apenas potenciais reforçadores, e só serão realmente considerados reforçadores se ao serem disponibilizados após uma resposta provocarem o aumento na probabilidade de ocorrência e na frequência desta resposta. 
Outros testes e protocolos de avaliação já validados na literatura são utilizados com o objetivo de mapear as habilidades cognitivas básicas que a criança já adquiriu e aquelas que ainda estão deficitárias. O ABLA (Assessment of Basic Learning Abilities – Avaliação de Habilidades Básicas de Aprendizagem) é um importante protocolo com este objetivo. Criado por Kerr, Meyerson e Flora (1977), o ABLA tem como objetivos avaliar habilidades de discriminação simples e condicional (controle de estímulos) e prever o desempenho da criança em procedimentos de ensino que ainda serão aplicados. São seis tarefas específicas, organizadas hierarquicamente, partindo de habilidades mais simples como imitação (Nível 1) e discriminações simples (Níveis 2 e 3) para outras mais complexas como as discriminações condicionais (Níveis 4, 5 e 6). Os resultados em termos de identificação de repertório inicial e previsão de desempenho obtidos com este protocolo têm sido positivos na maioria dos estudos (para mais detalhes ver o estudo de Guilhardi, 2003). A desvantagem deste instrumento de avaliação é que sua aplicação exige que a criança já tenha alguns dos chamados “comportamentos de sessão”, como manter contato visual com o adulto, ficar sentada e olhar para os estímulos na mesa. Por isso, nem sempre é possível aplicar esta avaliação logo no início da intervenção, mas ela é igualmente válida se aplicada em qualquer etapa, já que a intervenção comportamental se baseia em avaliações contínuas. 
Além da aplicação de testes e protocolos padronizados, na clínica ou no consultório também são avaliadas habilidades pré-acadêmicas, acadêmicas, verbais e o repertório de brincar. Os repertórios pré-acadêmicos (contato visual; imitações; seguir instruções; discriminações auditivo-visuais – identificação de números, letras, cores, etc.; pareamento de estímulos iguais ou correspondentes; dentre outros) e acadêmicos (habilidades grafomotoras; alfabetização; conceitos matemáticos; etc.) são avaliados com tentativas discretas. Isto é, apresenta-se o modelo, estímulo ou instrução e espera-se a resposta da criança. Estas respostas são registradas para que esta linha de base seja comparada com os dados coletados após o ensino destas habilidades, verificando a eficiência do procedimento de ensino utilizado e as necessidades de modificação deste procedimento. 
Desta mesma forma são avaliados os operantes verbais, como o mando (pedidos); tato (descrições de objetos ou eventos); intraverbal (respostas a perguntas, completar frases ou músicas, manter diálogos, cantar, etc.); ecóico (repetir sons, palavras ou frases); e textual (leitura e escrita). Também avalia-se a capacidade de iniciar diálogos e de compreender as falas dos outros (repertório de ouvinte – seguimento de instruções verbais). Se a criança não apresenta linguagem vocal, o analista do comportamento deve verificar se ela utiliza alguma forma de comunicação alternativa, por sinais ou troca de pistas visuais. 
As habilidades envolvidas no brincar, por sua vez, são avaliadas em uma situação mais livre e de forma mais incidental (diferente da situação controlada de tentativas discretas). O avaliador apresenta brinquedos conhecidos da criança e, também, brinquedos novos para ela e observa como ela os manipula (se corretamente ou de forma repetitiva e sem o uso da função correta do objeto). Além disso, o analista do comportamento avalia se a criança consegue respeitar as regras do jogo e esperar a sua vez em jogos compartilhados. Habilidades sociais também podem ser avaliadas neste contexto, como o contato visual com o parceiro de brincadeira; a atenção compartilhada (intercalar o olhar entre o brinquedo e a pessoa que brinca junto); e a reciprocidade sócio emocional, isto é, expressar as emoções envolvidas na brincadeira e ser afetado pelas emoções expressas pelo outro (por exemplo, sorrir quando a brincadeira é engraçada e fazer expressões de expectativas nos momentos de suspense ou susto de algumas brincadeiras). Também se observa, neste momento, se a criança é capaz de, espontaneamente, variar as brincadeiras que escolhe. 
Nos ambientes naturais, como casa e escola, também são feitas observações, registros e análise funcional de comportamentos alvo da intervenção. Um dos focos da avaliação nestes contextos é a independência da criança nas atividades de vida diária (lavar as mãos, escovar os dentes, usar o banheiro, alimentar-se, vestir-se, utilizar eletrodomésticos, tomar banho, etc.). O avaliador observa estas atividades no momento em que normalmente ocorrem na rotina normal da criança, registrando as respostas da criança e as ajudas dadas pelo adulto. 
Na casa e na escola é possível avaliar, ainda, os comportamentos inadequados (birras, agressões, autolesões, etc.); a comunicação e a interação social com adultos e com outras crianças; além do quanto a criança se mistura com os pares e o quanto ela tende a se isolar. Para isso, são feitas observações diretas destes comportamentos e um registro de Análise Funcional Descritiva, ou seja, descrição de eventos antecedentes e consequentes de cada comportamento observado. 
Segundo Bagaiolo e Guilhardi (2002, p. 68), “(…) a intervenção comportamental com crianças autistas pode ser sequenciada em passos pré-definidos, que norteiam o trabalho do terapeuta engajado com um fazer científico, sem perder de vista as possibilidades de cada criança e os ganhos últimos que se deseja alcançar. Isso significa viabilizar os progressos comportamentais em um ritmo compatível com o repertório de entrada de cada criança, até os estágios mais avançados de seu desenvolvimento”. A avaliação de repertório inicial é, portanto, o primeiro e mais importante passo da intervenção comportamental com estas crianças, afinal, só o conhecimento da história de vida única de cada um pode garantir uma intervenção coerente e que realmente resulte em modificação de comportamentos e ensino de novas habilidades. 
No dia 22 de maio seguiremos no planejamento da intervenção comportamental que, após a avaliação, é feito também de forma individualizada. 
Referências 
Bagaiolo, L. & Guilhardi, C. (2002). Autismo e preocupações educacionais: Um estudo de caso a partir de uma perspectiva comportamental compromissada com a Análise Experimental do Comportamento. In: Guilhardi, H. J., Madi, M.B. P., Queiroz, P. P., Scoz, M. C. (Org.) Sobre Comportamento e Cognição. 1ª Ed. Santo André: ESETEC, v. 10, p. 67-82. 
DeLeon, I. G. & Iwata, B. (1996). Evaluation of multiple-stimulus presentation format for assessing reinforcer preferences. Journal of Applied Behavior Analysis, 29, 519-533. 
Guilhardi, C. (2003). Potencial preditivo do teste ABLA na aquisição de treinos de discriminações condicionais auditivo-visuais e teste de outras discriminações condicionais. Dissertação de Mestrado em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 
Kerr, N., Meyerson, L. & Flora, J. (1977). The measurement of motor, visual, and auditory discrimination skills. Rehabilitation Psychology (Monograph Issue), 24, 95-112.
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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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