Determinismo neurobiológico, liberdade e responsabilidade

“O que é ser livre em um corpo formado por relações imutáveis, previsíveis e determinadas?”(1) Fábio Trad, jurista e deputado federal, levantou em um artigo a questão  de se o determinismo neurobiológico ameaça as bases do Direito Penal. Mais especificamente, Trad refletiu — bem preocupado, devo dizer — sobre se as explicações neurocientíficas para o comportamento humano são compatíveis com as noções de liberdade e culpabilidade (ou responsabilidade).


Trad, como a maioria de nós, trata o conceito de livre-arbítrio como o poder do indivíduo de escolher suas próprias ações. Nesse sentido, toda ação do indivíduo seria explicada por sua vontade, a qual não seria completamente determinada por eventos antecedentes. A vontade, tal como alguns dizem do espírito, não partilharia das relações de causa e efeito do mundo físico, material.
Ora, a noção de que a vontade é indeterminada – ou apenas parcialmente determinada — contraria o fundamento de uma doutrina filosófica assaz polêmica, qual seja, o determinismo. Conforme preconiza esta última doutrina, toda ação humana seria determinada ou causada por eventos antecedentes, quer sejam imediatos, como o contexto que circunda o indivíduo no momento de sua ação, quer sejam distantes, como os eventos que compõem sua história de vida. O cientista cognitivista Steven Pinker (2004) descreve o problema nos seguintes termos: “Se alguém tenta explicar um ato como efeito de alguma causa, está dizendo que o ato não foi escolhido livremente, e que o agente não pode ser responsabilizado” (p. 249).

Vejamos a seguinte e cômica ilustração do que seria uma explicação determinística de natureza histórica. Em uma charge publicada na revista New Yorker, uma mulher no banco de testemunhas declara: “É verdade, meu marido me espancava por causa de sua infância… Mas eu o matei por causa da minha” (adaptado de Pinker, 2004). Essa trama retrata a tentativa da mulher de tirar sua responsabilidade pelo assassinato do marido. A culpa, na verdade, não seria dela, mas de tudo o que lhe ocorreu enquanto ainda era criança.

De forma análoga à supracitada, o deputado Trad pareceu-me sugerir que a Neurociência, com base em suas explicações neurobiológicas, pode tirar do indivíduo sua responsabilidade por aquilo que faz. Tomando mais uma de suas indagações: “De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da Neurociência no conceito de livre-arbítrio?”

Compreender é desculpar?
Poderia a Neurociência justificar ou desculpar a criminalidade? Pinker (2004) comenta que um criminoso poderia ser defendido por via da alegação de que suas amígdalas (estruturas envolvidas no processamento emocional) são hipotrofiadas, que seu córtex pré-frontal (camada de corpos neurais associada, entre outras coisas, ao comportamento moral) é metabolicamente deficiente ou que seus genes são ineficientes em codificar a monoamina oxidase A (molécula que ajuda na reciclagem de neurotransmissores). Vejamos, por outro lado, o que ele pensa a respeito dessa postura:

Estão confundindo explicação com absolvição. Ao contrário do que insinuam os críticos das teorias das causas biológicas e ambientais, explicar um comportamento não é desculpar quem o executou (p. 250, destaque meu).

Pinker (2004) assevera que a responsabilização tem a função prática de dissuadir o comportamento prejudicial. Em outras palavras, responsabilizar – através da punição – produz o desencorajamento, ou melhor, a diminuição da probabilidade de o infrator voltar a se comportar de uma forma específica. Nesses termos, da mesma forma que, digamos, certos genes podem tornar os indivíduos mais propensos ao comportamento criminoso, podemos, enquanto reguladores sociais, atuar de forma a diminuir a frequência desse tipo de comportamento – o que é socialmente interessante. Seria, por assim dizer, um cabo-de-guerra entre diferentes vetores ou eventos determinísticos, podendo o encéfalo – ou melhor, o comportamento — ser modelado tanto para o “bem” como para o “mal”.

Diante disso, eis que temos uma resposta àquela pergunta do deputado Trad, a saber: “De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da Neurociência no conceito de livre-arbítrio?”. A resposta seria a seguinte: Independentemente do determinismo, punir é correto e aconselhável na medida em que não fazê-lo equivale a permitir que o infrator prossiga agindo de forma socialmente indesejável. Em termos técnicos, a punição (ou a responsabilização) tem o efeito de alterar as relações de causa e efeito nas quais está inserido o comportamento criminoso.(2)

A Neurociência explica as nossas escolhas?

Venho estudando a influência da velocidade de processamento de informação (VP) de idosos saudáveis. Em termos cognitivistas, VP refere-se à velocidade com que a cognição recebe, organiza e interpreta informações. Em termos do senso comum, VP denota a velocidade com que pensamos. Pelo nível neurofisiológico, VP diz respeito à velocidade com que os potenciais de ação são conduzidos ao longo das vias neurais. Minha pergunta é a seguinte: A descrição neurofisiológica da VP explica as descrições do senso comum e da Psicologia Cognitiva? A resposta, “não”, possibilita falarmos do que alguns filósofos denominam pluralismo descritivo: a possibilidade de descrevermos um mesmo fenômeno sob diferentes níveis de análise (Pinto, 2007).

Por essa perspectiva, a linguagem neurocientífica não é muito mais do que uma outra forma de se olhar para certos fenômenos. Vejamos, para clarificar o conceito, como Pinker aborda a escolha sob os níveis descritivos da Neurociência e da Psicologia Intuitiva:
A experiência de escolher não é uma ficção, independentemente de como o cérebro funciona. É um processo neural, com a óbvia função de selecionar o comportamento segundo suas consequências previsíveis. […] Você não pode sair dele [do funcionamento do cérebro] nem deixar que ele prossiga sem você, pois ele é você (Pinker, 2004, p. 243, destaque meu).

Esse é um ponto crítico e sobre o qual eu tenho debatido em outros espaços (aqui, p. ex.). Diferentemente do que às vezes ouvimos por aí, o cérebro não toma as decisões pelas pessoas. Se concebermos uma pessoa como um tipo de organismo vivo, logo o cérebro é parte dessa pessoa (ou “ele é você”, de acordo com Pinker). Dizer do funcionamento do cérebro é dizer do — ou descrever o — nível neurobiológico de comportamentos privados, entre eles o planejar e o escolher. Se fôssemos escravos do nosso cérebro, seríamos escravos de nós mesmos.

Os eventos neurobiológicos, uma vez sendo identificados aos eventos psicológicos (ou caso sejam vistos como eventos que co-variam com o que chamamos subjetividade), não podem ser tomados como a causa destes últimos. Exemplo disso é o caso dos potenciais de ação, cuja velocidade não causa/determina a velocidade do pensamento — ambas as descrições são, em vez disso, recortes diferentes de um mesmo fenômeno. O que, afinal, determina se o cérebro escolhe (não negligencie o destaque nas aspas) um comportamento ou outro? A propósito, uma escolha específica determina um comportamento público específico?

Permitam-me ser breve (já abordei questões parecidas em outro lugar). Mesmo que eventos neurais precedam comportamentos motores (como quando um assassino planeja uma execução e, depois disso, a concretiza), a relação entre esses dois eventos só pode ser apropriadamente entendida à medida que trazemos ao palco a história de relações de uma pessoa (que possui genes específicos) com o seu ambiente. Em outros termos, devemos recorrer à filogênese e à ontogênese (história de vida) se quisermos explicar por que uma pessoa faz umas ou outras escolhas e se comporta publicamente de formas específicas. Essas parecem ser as fontes, as origens legítimas de quaisquer comportamentos. Se o deputado Trad tiver que se preocupar com alguma coisa, esta coisa não é o sistema nervoso central — tanto menos um homúnculo imaterial. Colocar a culpa no cérebro não é muito diferente de colocar a culpa na pessoa.

E a liberdade, como é que fica?

Para se dimensionar o tamanho do estrago, basta entender que toda a justificação da imposição de uma pena criminal está fundamentada no livre-arbítrio, elemento central da culpabilidade. Se o que está se insinuando com a tecnologia da Neurociência, de fato, se confirmar, todo o edifício teórico das ciências penais estará sustentada em areia movediça (Trad, 2011).

É verdade: não faz sentido falarmos de escolhas indeterminadas diante da afirmação do determinismo. Por outro lado, não vejo razão para muito desespero. Admitir o determinismo não implica em desconstruir todo um sistema penal. O que talvez possa ser feito é reformular certos conceitos e premissas básicos, podendo contudo, e se convier, manter boa parte daquilo que já é posto em prática. Como não queremos descartar toda a moralidade como sendo uma superstição não científica, podemos tentar “descobrir um jeito de conciliar causação (genética ou não) com responsabilidade e liberdade” (Pinker, 1998, p. 66).

Para B. F. Skinner (2006/1974), fundador do behaviorismo radical, agir livremente não implica em agir indeterminadamente. Em uma entrevista concedida à revista Veja (1974), Skinner situa a liberdade na “soma dos esforços do homem para escapar das condições adversas do meio ambiente”. Ser livre, pois, equivale a “poder controlar os elementos que nos controlam”, e fazê-lo geralmente é acompanhado por uma classe de respostas a que chamamos “prazerosas”. Vale alertar que o mundo nos controla na mesma medida em que o controlamos; a direção da causação é, por assim dizer, retroativa, bidirecional – e isso exclui a ideia de que seríamos fantoches, vítimas de uma fatalidade.

Deve ser o seguinte: somos livres e responsáveis na medida em que, na ausência de coerção, podemos fazer escolhas e agir — o que costuma ser acompanhado por sensações deveras aprazíveis. Mesmo que essas escolhas e ações sejam — conforme o nível descritivo fisicalista — efeitos de um conjunto de causas, a responsabilização é legítima por se tratar de um recurso capaz de alterar o comportamento do indivíduo. Daí que indivíduos total ou parcialmente insensíveis ao efeito da punição não são formalmente responsabilizados por aquilo que fazem. Esse é o caso dos loucos, das crianças, dos animais e dos objetos inanimados (Pinker, 2004).

No mais, e embora Pinker seja internalista, fecharei este texto com mais um de seus exemplos de pluralismo descritivo:

Um ser humano é simultaneamente uma máquina e um agente livre senciente, dependendo do objetivo da discussão, assim como ele também é um contribuinte do fisco, um corretor de seguros, um paciente do dentista e noventa quilos de lastro num avião da ponte aérea […]. A postura mecanicista [que é determinista] permite-nos entender o que nos faz funcionar e como nos encaixamos no universo físico. Quando essas discussões se esgotam no fim do dia, voltamos a falar uns dos outros como seres livres e dignos (Pinker, 1998, p. 68).

Notas e referências bibliográficas:

(1) Boa parte das conclusões que expus ao longo deste texto foi fruto de excitantes discussões com meus colegas analistas do comportamento belorizontinos, a quem devo consideração e gratidão por todo o ensinamento e carinho. Gostaria também de agradecer ao Cláudio Drews, por quem tive acesso ao artigo, e, em termos de revisão, aos meus amigos Ramon Cardinali e Júnio Rezende.

(2) Provavelmente a punição não é a medida mais efetiva em termos de modelar o comportamento moral. Valorizar/recompensar comportamentos socialmente desejáveis deve ser uma estratégia muito mais efetiva. Falei um pouco a respeito disso por aqui, ainda no ano passado.

Pinker, S. (1998). Como a Mente Funciona. São Paulo: Companhia das Letras.

Pinker, S. (2004). Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das letras.

Pinto, P. R. M. (2007). O reducionismo impiedoso de John Bickle e seus problemas. In: Broens, M. C., Coelho, J. G., & Gonzales, M. E. Q. Encontro com as Ciências Cognitivas. São Paulo: Cultura Acadêmica.

Revista Veja, no. 316, 25/09/74, pp. 3-6.

Trad, F. (2011). Direito Penal em apuros — a Neurociência bate em sua porta! Em: http://www.msnoticias.com.br/?p=ler&id=62919

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Escrito por Daniel Gontijo

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