RFT e ACT: O Exemplo da Tomada de Perspectiva

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(Álvaro de Campos, “Tabacaria”)

A Teoria das Molduras Relacionais (RFT) é um dos pilares da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Apesar disso, essa relação estreita muitas vezes não é tão evidente, mesmo para psicólogos clínicos analistas do comportamento que adotam essa abordagem. É possível que o exemplo da tomada de perspectiva sob a ótica da RFT ajude a tornar esse elo mais nítido.

Relações Verbais e Molduras Relacionais

Em uma visão analítico-comportamental, podemos dizer que pensamentos são um tipo de comportamento verbal no qual o falante e o ouvinte são a mesma pessoa. Por sua vez, os comportamentos verbais são estímulos que atuam sobre o comportamento dos ouvintes, inclusive da própria pessoa. Em termos clínicos, isso significa que eventos privados (pensamentos, emoções, sensações) não são considerados causas e, portanto, não são alvos a serem modificados pelas intervenções. Ao invés disso, o foco está no controle de estímulos exercido por tais eventos e, consequentemente, em alterar as condições contextuais que dão origem a esses eventos privados e suas funções, de modo que eles não sejam discriminativos para comportamentos não adaptativos ou de alguma maneira ao bem-estar global da pessoa.

A Teoria das Molduras Relacionais é um modelo analítico-comportamental que se propõe a explicar o comportamento verbal para além das contingências diretas. Tomando como pontos de partida o behaviorismo radical de Skinner e o fenômeno da equivalência de estímulos identificado por Murray Sidman, a RFT se coloca como uma teoria abrangente da linguagem e da cognição humanas, calcada nos pressupostos do contextualismo funcional. Para mais detalhes conceituais, sugerimos algumas leituras na bibliografia. Aqui, apenas se destaca que a RFT torna explícita uma diferença analítico-funcional fundamental entre o responder a estímulos com base em propriedades físicas, não arbitrárias, e o responder arbitrariamente aplicável, que independe de características físicas dos estímulos.

Na RFT, o termo moldura relacional é uma metáfora para determinadas classes de responder relacional que delimitam certos padrões funcionais e contextuais dos estímulos verbais. Esse responder fica sob o controle de dicas contextuais que podem ser modificadas com base nas relações verbais, uma característica que é de particular interesse para a psicologia clínica. Já se identificaram molduras relacionais de semelhança, oposição, distinção, comparação, hierarquia e dêiticas. 

RFT e Tomada de Perspectiva

Feito esse preâmbulo, vamos explorar um pouco a ideia de tomada de perspectiva sob um ponto de vista analítico-comportamental, a qual tem sido interpretada por meio das relações dêiticas. Isso porque as molduras relacionais dêiticas são capazes de explicar conceitos cognitivos, como a tomada de perspectiva, que envolvem um padrão de responder relacional de acordo com dicas contextuais verbais do tipo Eu-Você, Aqui-Ali e Agora-Antes-Depois. Genericamente, a ideia de tomada de perspectiva diz respeito à habilidade de um indivíduo de inferir desejos, crenças, intenções e emoções de outros indivíduos. Essa habilidade é muito importante, pois contribui positivamente nas interações sociais, facilita a atribuição de significado ao ambiente, propicia empatia, altruísmo e o estabelecimento de relacionamentos interpessoais.

Esse responder operante é aprendido ao longo da vida, desde a chamada primeira infância, à medida que uma pessoa responde incontáveis vezes a perguntas como: “o que estou fazendo agora?”, “o que você comeu lá?”, “onde ele falou isso daquela vez?”, e assim por diante. E a cada oportunidade em que essas perguntas são respondidas, o contexto pode ser, e provavelmente é, completamente diferente dos demais. Por exemplo, “o que estou fazendo agora?” poderia tranquilamente ser “descansando”, “comendo um bolo”, “filosofando”, “malhando” etc. etc. etc., uma lista praticamente infindável. Por outro lado, ao longo dessas múltiplas exposições, também chamados de múltiplos exemplares, o que se torna cada vez mais definido e invariável é a perspectiva do “eu, aqui, agora” assim aprendida. Essa perspectiva, não é demais enfatizar, é consistente e diferente da perspectiva de quaisquer outras pessoas. Além do mais, o comportamento de emoldurar dêitico envolve responder à própria relação entre si e os outros.

Tomada de Perspectiva e Self na RFT e na ACT

A ideia de que um “senso de si” pode ser pensado como um conjunto de classes operantes verbais, ou seja, de que o comportamento de selfing pode ser aprendido e alterado por contingências, é um dos pilares da Terapia de Aceitação e Compromisso. Nesse sentido, verbalizar sobre experiências privadas, autorreflexões, esperanças e objetivos, nossos e de outros, está no cerne de muitas questões clinicamente importantes, tais como a análise de funções comportamentais que impactam questionamentos sobre nossa identidade ou o sentido de nossas vidas. 

Do ponto de vista terapêutico, a ACT tem como objetivo amplo promover a flexibilidade psicológica. Em termos da RFT, a flexibilidade psicológica pode ser conceituada como o repertório generalizado de emoldurar o comportamento, à medida que ele ocorre, em hierarquia com o eu dêitico. Isso tipicamente reduz as funções discriminativas desse comportamento e, além disso, permite derivar regras que especificam funções aumentativas apetitivas e, a seguir, comportamento que está de acordo com elas. Essa definição corresponde aproximadamente aos processos ACT de desfusão e self como contexto, por um lado, e de valores e ação comprometida, por outro. 

Em seus manuais, a ACT define três selfs: como conteúdo, como processo e como contexto. Em termos da RFT, o self como conteúdo envolve uma moldura de coordenação entre “eu” e seu conteúdo, ambos localizados Aqui e Agora. Por essa razão, esse modelo terapêutico entende que há risco do que se chama fusão, um apego excessivo, entre o “eu” e o conteúdo. Já o self como processo pode ser descrito como aquele que envolve o “eu” e o conteúdo sendo localizados Aqui e Agora, mas nesse caso o conteúdo é visto como contínuo e experiencial. Por sua vez, em conceituação usual, o self como contexto difere dos demais no sentido de que o “eu” permanece no Aqui e Agora, mas o conteúdo está localizado Lá e Então, ou seja, Antes ou Depois. Além disso, como veremos mais adiante, a explicação da RFT para o self como contexto fica mais completa quando incorpora molduras hierárquicas, ou seja, o “eu” é o contexto dentro do qual o conteúdo existe.

À medida que nós, seres humanos, ficamos mais velhos e nos tornamos mais sofisticados verbalmente, algum conteúdo inevitavelmente entrará em relação de coordenação com o “eu” e as avaliações que a pessoa faz desse conteúdo serão, em alguns contextos, negativas. Por isso, a fim de enfraquecê-las, determinadas intervenções baseadas na ACT buscam alterar as relações de coordenação entre o “eu” e o conteúdo para relações de distinção (“é diferente de”, “não é o mesmo que”) ou de hierarquia (“está contido em”, “pertence a”, “faz parte de”).

Relações Dêiticas e de Hierarquia na ACT

Dando um passo adiante na construção desse conhecimento, diversos estudos experimentais têm buscado examinar relações dêiticas em técnicas específicas da ACT, como forma de testar o modelo e suas prescrições, produzindo alguns resultados encorajadores. Afinal, vários deles apontaram para a aplicabilidade dos conceitos teóricos da RFT relativos à tomada de perspectiva em intervenções clínicas. Mais do que isso, surgiram indicações de que, para além do emolduramento dêitico isoladamente, resultados terapêuticos mais eficazes no sentido de se aumentar a flexibilidade psicológica podem ser obtidos por meio de exercícios que conjuguem os emolduramentos dêitico e hierárquico.

É interessante observar que tais achados experimentais tendem a serem confirmados por estudos realizados em contexto aplicado. Algumas dessas pesquisas têm mostrado efeitos positivos de intervenções voltadas para o desenvolvimento de um self mais flexível, baseadas nas molduras dêiticas e de hierarquia, em termos de resultados associados a bem-estar psicológico, dor crônica e depressão, entre outros.

Para citar um exemplo, Moran e McHugh (2019) conduziram um estudo com jovens entre 18 e 25 anos de idade para examinar a contribuição relativa do self como distinção e do self como hierarquia na depressão, estresse e ansiedade, controlando a habilidade de emolduramento dêitico e o gênero. Nesse estudo, “self como distinção” significava alterar as relações dêiticas por meio de distinção para facilitar a percepção de que a pessoa está Aqui-Agora enquanto experiências psicológicas, como pensamentos e sentimentos, estão separadas, Lá-Então. Já “self como hierarquia” dizia respeito à alteração de relações dêiticas por meio de molduras de hierarquia, que ensinavam a perceber que o self está Aqui-Agora enquanto o conteúdo psicológico está contido no self. Nos resultados desse estudo, o self como hierarquia surgiu como um preditor significativo de níveis mais baixos de estresse e depressão e o self como distinção não emergiu como um preditor significativo de qualquer variável de resultado.

As pesquisas e as inovações no campo terapêutico continuam, mas já dá para concluir que o conceito analítico-comportamental de tomada de perspectiva da RFT, baseado nas molduras dêiticas, pode ter um papel importante em diversos aspectos da vida social e do self, assim como desdobramentos sobre o bem-estar psicológico e clínica. Mais especificamente, é possível ver na prática um elo mais nítido entre a RFT e a ACT, que pode ser uma dúvida recorrente, mas não apenas isso. Um outro possível desdobramento e utilidade ao se estabelecer esse elo é que a interpretação de conceitos clínicos da ACT em termos dos processos comportamentais da RFT abre caminhos para conceitualizações de casos e intervenções terapêuticas cada vez mais precisas.

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Escrito por Michelli Cameoka

Psicóloga comportamental. Mestranda em Psicologia Clínica na UnB. Graduada pelo UniCEUB. Formação em análise comportamental clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Especializada em Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), Teoria das Molduras Relacionais (RFT) aplicada à clínica e em sua integração às terapias de exposição voltadas ao TOC, ao TEPT e aos transtornos de ansiedade em geral. Concluiu o ACT BootCamp®️ na Filadélfia (EUA), com Steven Hayes, Kelly Wilson e Robyn Walser, bem como o treinamento intensivo de Exposição e Prevenção de Resposta (EPR) do Centro para o Tratamento e Estudo da Ansiedade, da Universidade da Pensilvânia, fundado por Edna Foa. É membro da Association for Contextual Behavior Science (ACBS). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1155921146785360. e-mail: micameoka@gmail.com

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