Discussão sobre valores no campo científico: considerações iniciais

O professor Armando Machado, em palestra proferida em meados de 2016, em Londrina (Paraná), alertou a comunidade psicológica para uma obviedade que é, no mais das vezes, invisível aos nossos olhos: a prática psi, tradicionalmente considerada como benéfica ou, no máximo, como inócua (sem qualquer efeito), pode ser maléfica. Na oportunidade, Machado (2016) descreveu detalhadamente práticas desenvolvidas por psicólogos que redundaram em prejuízos sérios e alarmantes para as pessoas atendidas. Este ensaio não se trata, contudo, de um exame da prática psi. O que será defendido (e que não é, sob qualquer aspecto, inédito) é que o alerta de Machado (2016) deve ser estendido para a ciência, isto é, a ciência não pode ser considerada a priori como benéfica ou inócua – é preciso considerar a possibilidade real de que a ciência pode trazer danos irreparáveis à sociedade e à vida de modo geral.

Em palestra ministrada em 1966, em Los Angeles, Marcurse (a tradução desta palestra foi publicada em 2009, pela Scientia e Studia) atentava para o fato inegável de que a ciência estava produzindo, à época, armas de guerras com grande potencial de destruição. Marcuse (2009) dizia, então, que embora tivesse sido crucial para o desenvolvimento e progresso da ciência a cisão entre conhecimento científico e conhecimento religioso, esta cisão também significou o distanciamento da ciência da discussão sobre valores. E este distanciamento, destacava o autor, em nada aludia a uma pretensa neutralidade científica, representada pela crença de que o conhecimento produzido é neutro, e que o uso que se faz desse conhecimento – para o bem ou para o mal – não é da alçada do cientista.

Embora realizada há 50 anos, a discussão empreendida por Marcuse em 1966 ainda encontra ecos no cenário científico atual. Skinner (1971) assinala que, tradicionalmente, os julgamentos de valor não são concebidos como fatos, mas como fenômenos que se referem a como as pessoas se sentem acerca das coisas e ao que deveria ou não ser feito – e, desse modo, escapam à ciência. Nessa ótica, diz Skinner (1971, p. 84), “a física pode nos dizer como construir uma bomba nuclear, mas não se esta deveria ser feita”. Marcuse (1966/2009, p. 159) foi enfático ao defender que “a ciência (isto é, o cientista) é responsável pelo uso que a sociedade faz da ciência” – e nesse sentido, os usos que a sociedade faz da bomba atômica, por exemplo, são de responsabilidade dos cientistas.

A produção de conhecimento científico e de tecnologia não deveria ser apartada de discussões acerca de suas consequências sociais, políticas, econômicas e ambientais. E Skinner (1971) parece concordar com isso (pelo menos no que se refere à ciência comportamentalista): segundo o autor, se o cientista do comportamento concordar que os julgamentos de valores escapam à ciência, ele estará cometendo um erro. Afirma Skinner (1971, p. 84), que “sem dúvida, um fato é diferente daquilo que alguém sente em relação a ele, mas o caso é que isso também é um fato”. O que as pessoas sentem, e como sentem, são questões passíveis de serem respondidas cientificamente, e se a causa do problema está no apelo aos sentimentos, mudemos a pergunta: “se uma análise científica pode nos dizer como transformar o comportamento, pode nos apontar as modificações a serem feitas?” (Skinner, 1971, p. 84).

Para Skinner (1971), realizar um julgamento de valor implica em classificar algo “em termos de seus efeitos reforçadores” (p. 86) – se reforçador positivo, “bom” ou “correto”, se reforçador negativo, “mau” ou “errado”. Os estímulos e as ações não são intrinsecamente maus ou bons, mas derivam de contingências específicas, as quais podem ser identificadas. Noutras palavras, sob a perspectiva skinneriana, os julgamentos de valor são factíveis ao exame científico, de tal sorte que a justificativa de que uma discussão de valores deve ser alheia à ciência, por ser de natureza diversa aos fatos, não se sustenta. Skinner (1971), no entanto, localiza essa discussão no âmbito de uma ciência comportamental – mas e as demais ciências?

Marcuse (1966/2009) enfatiza que o cientista, ao se abster de uma discussão sobre valores, não produz uma ciência neutra, mas se alia “com os poderes que ameaçam a autonomia humana e frustram a tentativa de realizar uma existência livre e racional” (Marcuse, 1966/2009, p. 162). Ao não dizer se uma bomba nuclear deve ou não ser construída, o cientista está em acordo com sua construção. A história norte-americana traz um exemplo emblemático: Waters (2006) lembra que a universidade estadunidense passou por intensas modificações ao longo da Segunda Grande Guerra – isso porque até então, nunca a universidade tinha recebido tantos recursos estatais para o desenvolvimento de pesquisas. À época, diz Waters (2006), as universidades norte-americanas (isto é, os pesquisadores) foram convocadas para explorar “os mistérios do átomo, a fim de desenvolver armas de destruição em massa” (p. 16). E Sagan (1996, p. 26) alerta: “aproximadamente metade dos cientistas na Terra dedica parte do seu tempo de trabalho para fins militares”.

A questão referente a quem financia a pesquisa é de suma importância. Como assinala Marcuse (1966/2009), ao citar Harrison Brown, os programas de pesquisa respondem às demandas e interesses das agências de fomento. Ou seja, a agenda científica é também determinada pelos interesses daqueles que financiam o desenvolvimento da ciência (e que pagam o salário do cientista). (E, nesse contexto, parece não haver espaço para a neutralidade.) Lacey (2007, p. 31) assinala que a “biotecnologia tornou-se um fator decisivo para a trajetória da economia internacional” – o que assegura financiamento de pesquisas e emprego para os cientistas. Estudos em biotecnologia, por exemplo, possibilitaram o desenvolvimento dos transgênicos, os quais foram implantados em grande escala no país. Todavia, a implantação dessa cultura de plantio ocorreu na ausência de discussões acerca das suas possíveis consequências sociais, humanas e ecológicas (Lacey, 2007).

Outro estudo, publicado em 2016 por pesquisadores italianos, na Nutrition & Diabetes (Pounis et al., 2016), objetivou avaliar, entre outros aspectos, a relação entre o consumo de macarrão e o índice de massa corporal em populações de duas diferentes regiões da Itália. O estudo contou com o número expressivo de 23366 participantes, e apontou para uma associação negativa (e contra-intuitiva) entre o consumo de macarrão e a obesidade. Na sessão de agradecimentos do artigo, Pounis et al. (2016) agradecem a Barilla Spa e ao Ministério de Desenvolvimento Econômico da Itália pelo financiamento do estudo. Barilla Spa, convém esclarecer, é uma companhia de alimentos italiana que tem, entre seus produtos, o macarrão. A Revista Época resumiu esses dados na intrigante (e sensacionalista) manchete: “Estudo apontando que comer massa não engorda foi financiado por fabricante de macarrão” (Disponível em: <http://epocanegocios.globo.com/Vida/noticia/2016/07/estudo-apontando-que-comer-massa-nao-engorda-foi-financiado-por-fabricante-de-macarrao.html>, acesso em 17 jan 2017). Longe de colocar a credibilidade do estudo de Pounis et al. (2016) em questão, o que se discute é importância do exame ético da prática científica, principalmente quando o financiamento provém de uma parte interessada em determinados resultados. (Como lembram Pounis et al. (2016) o macarrão, alimento constitutivo da tradicional Dieta Mediterrânea, teve seu consumo em franca redução nas últimas décadas na Itália, principalmente por conta da adesão dos italianos a dietas hipocalóricas para controle da obesidade.)

Sagan (1996) coloca que a ciência “tem dois gumes” e que é cada vez mais premente atentar para as consequências a longo prazo da tecnologia e da ciência.  Diz Sagan (1996, p. 26) que “a nossa tecnologia produziu a talidomida, os CFCs, o agente laranja, os gases que atacam o sistema nervoso, a poluição do ar e da água, as extinções de espécies, e indústrias tão poderosas que podem arruinar o planeta”. Ao oferecer uma abordagem científica da discussão sobre valores, a alternativa skinneriana torna possível que o exame ético-científico seja incorporado às demais áreas da ciência. Assim, é possível derivar, da pergunta elaborada por Skinner (1971), uma afirmativa: se a análise científica pode nos dizer como transformar o comportamento, a natureza, o mundo, ela pode apontar quais modificações devem ser feitas e quais não.

Não se trata de impedir o progresso da ciência ou da tecnologia; não se trata de abandonar a ciência porque algumas de suas práticas redundaram em consequências danosas para planeta e para a sociedade (cf. Sagan, 1996). Trata-se de atrelar à prática científica uma discussão sobre valores, que permeie o fazer científico da escolha do tema de pesquisa à divulgação dos resultados.

E, vale dizer, a importância de se incorporar o exame ético à ciência também deriva da atual conjuntura científica mundial. Em texto publicado na versão brasileira do jornal espanhol El País lê-se a manchete: “Ciência vive uma epidemia de estudos inúteis” (artigo de Nuño Domínguez, de 19 de janeiro de 2017. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/10/internacional/1484073680_523691.html?id_externo_rsoc=Fb_BR_CM>, acesso em: 26 jan 2017).  O artigo de Munafò et al. (2017) – comentado por Domínguez na matéria – constitui um esforço dos autores em desenhar propostas que maximizem a credibilidade e eficiência da ciência. Esta preocupação, como lembram Munafò et al. (2017), é embasada em dados: estima que 85% das pesquisas biomédicas são desperdiçadas, e a replicabilidade no campo científico é menor que o desejável. Com efeito, estudo descrito por Baker (2016) aponta que cerca de 90%, dos 1576 pesquisadores entrevistados, reconhecem que há uma crise de replicabilidade na ciência. A questão da replicabilidade é importante. Ao replicar um estudo já publicado, e ao se chegar a resultados similares a ele, há uma confirmação de que aquele primeiro estudo é seguro, confiável – a replicabilidade submete o conhecimento já produzido a testes. O artigo de Munafò et al. (2017) aponta para as fragilidades metodológicas de muitos estudos e que redundam na publicação de dados/resultados falsos – e a crise na replicabilidade intensifica o problema.

Marques (2015), em matéria publicada na Revista Pesquisa FAPESP sobre o uso de dados oriundos da Plataforma Lattes em estudos científicos, cita a pesquisa de mestrado desenvolvida por Sobral (2015). Sobral (2015) visou investigar a contribuição dos estudos conduzidos no Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da UFPE às necessidades de saúde do estado pernambucano, considerando as produções de 2004 a 2012. A constatação do estudo foi que o foco direto das pesquisas conduzidas naquele programa, no período analisado, não foram as “doenças endêmicas no Brasil, como dengue, malária ou esquistossomose”, mas as “moléstias que despertam mais interesse de revistas científicas internacionais, como a Aids” (Marques, 2015, p. 37).

Há uma vasta literatura que discute as atuais exigências de produtividade acadêmica que envolvem, por exemplo, a máxima publish or perish e a internacionalização da ciência (artigos publicados em inglês, e em revistas internacionais, valem mais). A inserção da discussão ética na ciência pode contribuir para a construção de uma prática científica (e de políticas científicas) comprometida com as suas consequências. Porque, como lembra Marcuse (2009, p. 164), “a ciência como um esforço humano continua a ser a mais poderosa arma e o instrumento mais eficaz na luta por uma existência livre e racional”.

Referências

Baker, M. (2016). Is there a reproducibility crisis? Nature, 533, p. 452-454.

Lacey, H. (2007). Há alternativas ao uso dos transgênicos? Novos estudos, 78, 31-39.

Machado, A. (2016). O rei vai a nu: ceticismo e credulidade na formação do psicólogo. In IV Congresso de Psicologia e Análise do Comportamento: Temas emergentes das ciências do comportamento: da pesquisa à aplicação. Londrina, PR. Trabalho não publicado.

Marcuse, H. (2009). A responsabilidade da ciência. Scientiae Studia, 7(1), 159-164. Original publicado em 1966.

Marques, F. (2015). Registros valiosos. Revista Pesquisa FAPESP, (ed. 233), p. 34-37.

Munafò, M. R., Nosek, B. A., Bishop, D. V. M., Button, K. S., Chambers, C. D., Perci du Sert, N. … Ioannidis, J. P. A. (2017). A manifesto for reproducible science. Nature Human Behavior, 1, p. 1-9.

Pounis, G., Castelnuovo, A. Di., Costanzo, S., Persichillo,M., Bonaccio, M., Bonanni, A., Cerletti, C., Donati, M. B., Gaetano, G. de., Iacoviello, L. (2016). Association of pasta consumption with body mass index and waist-to-hip ratio: results from Moli-sani and INHES studies. Nutrition & Diabetes, 6(e218), 1-8.

Sagan, C. (1996). O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras.

Skinner, B. F. (1971). Beyond freedom and dignity. New York: Alfred A. Knopf.

Sobral, N. V. (2015). Alinhamento da produção científica do programa de pós-graduação em medicina tropical da UFPE às necessidades sociais de saúde tropical em Pernambuco: análise cientométrica. (Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernanbuco, Recife). Recuperado de: http://www.repositorio.ufpe.br/bitstream/handle/123456789/13842/Natanael%20Vitor%20Sobral%20v_BDTD.pdf

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Escrito por Taisa Scarpin Guazi

Taísa Scarpin Guazi é formada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, e atualmente é mestranda em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela UNESP-Bauru. Tem particular interesse em contingências institucionais acadêmicas.

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