Utilização de Recurso Terapêutico na Prática Clínica

AUTOCONHECIMENTO1

Telma, Terapeuta Analítico-Comportamental recém-formada, sabe da importância de utilizar uma boa técnica ou recurso terapêutico na sua prática clínica. Isso não impede que surjam dúvidas como: Qual? Quando? O que buscar? No presente texto, descreveremos a utilização de um recurso, sugerindo caminhos e um raciocínio clínico na condução da atividade, que podem ser adaptados a outros recursos e\ou técnicas.

Nos dois primeiros textos da coluna, conhecemos um pouco sobre Telma e sobre uma de suas clientes, Carla. A Terapeuta Telma priorizou o vínculo terapêutico, a utilização de perguntas para favorecer a auto-observação, incluindo aspectos que contribuem para a compreensão da interação da cliente com o mundo. Na Análise do Comportamento, buscamos identificar relações entre ações (públicas ou privadas) e contextos antecedentes (e.g. pessoas, lugares, verbalizações, etc) e entre tais ações e consequências produzidas, levando a uma compreensão contextual de qualquer ação.

 O que podemos observar nos movimentos de Carla a partir dos dois primeiros encontros? Como podemos começar a apresentar as relações entre contexto, comportamentos e consequências, conhecidas como Análises Funcionais? Vamos observar a Tabela 1, organizando as informações dos dois encontros.

Tabela 1.

Hipóteses sobre relações funcionais (entre condições antecedentes e ações) a partir do relato dos dois primeiros encontros.

Contexto Ações Consequências Efeito da interação
Sugestão de Juliana: “Faça terapia” Fazer terapia
Pedido de ajuda de Fernandinha: “Me ajude a revisão memorandos” Ajudar com a revisão dos memorandos

 

Quais outros contextos influenciam como Carla se comporta? Quais outras ações são importantes para compreender a maneira como Carla interage com o mundo? Quais são possivelmente as consequências que seriam responsáveis por tais comportamentos? Quais as condições indesejáveis desses padrões?

No final do segundo encontro, Telma propôs uma atividade para Carla preencher durante o período antes do próximo encontro.

 

CARLA: Juliana vive me dizendo que sou boba. Na escola que frequentei durante o ensino médio, minha professora de português dizia que eu era na verdade alguém muito bondosa. [riso sem graça]
TELMA: [Aproveita um adjetivo referente à alguma característica da cliente] Carla, realmente falamos  sobre algumas características suas nesses encontros. A terapia acaba sendo um momento bem rico de autoconhecimento! Fiquei pensando que seria produtivo se você pudesse se observar durante a semana, identificando suas características, em termos de adjetivos, que você considera positivas, e os que você considera negativas. [Enquanto vai falando, pega um pequeno papel, escreve “Características” (adjetivos), com um+ e um -] (Figura 1).
Sempre que possível devemos buscar contextualizar um recurso terapêutico, bem como reduzir a “formalidade” excessiva da tarefa. Não ter uma folha com as informações digitadas pode ser algo que favoreça essa “informalidade”, favorecendo um clima de leveza e naturalidade para a atividade. Adicionalmente, é importante perceber que não tratamos em termos de “qualidades” e “defeitos”. Percebe-se também que não foi apresentado características positivas e negativas que você “tem” ou “é”, mas características que você considera positivas e negativas. Isso permite um tratamento das características como algo que pode ser considerado positivo ou negativo, dependendo do critério utilizado para avaliar, dependendo do contexto, dependendo de repertórios autoavaliativos mais ou menos exigentes, etc.
CARLA: Hã, acho que sim.

 

Características

(adjetivos)

+

 

 

 

 

 

Figura 1.

Características em termos de adjetivos (sempre que possível) que o cliente considera positivas e que considera negativas.

 

TELMA: Qual seria o grau de dificuldade da tarefa, sendo 0 (zero) bem fácil e 10 (dez) muito difícil?
Verificar o grau de dificuldade da tarefa com o cliente pode ser uma boa situação para decidir a manutenção ou não da atividade, favorecendo a participação do mesmo na decisão.
CARLA: Bem. Talvez uns 7 ou 8. Tenho dificuldade de falar sobre mim. Vou tentar.
Como veremos em momentos posteriores, Carla aceitar a realização dessa tarefa, que envolve corresponder uma expectativa da Terapeuta Telma, pode ser considerado um Comportamento Clinicamente Relevante do Tipo 1 (CRB1 –comportamento funcionalmente similar a comportamentos interpessoais problemáticos no ambiente natural do cliente ocorrendo na relação interpessoal Terapeuta-Cliente).

Semana seguinte.

TELMA: [Observa como a cliente se apresenta, se houve acontecimentos críticos\urgentes durante a semana, como a cliente está se apresentando, inclusive se a própria cliente comenta sobre a atividade]
CARLA: [Retira uma folha digitada da bolsa] Fiz a tarefa, acabei digitando, acho que fica mais fácil de você compreender do que minha letra.
TELMA: Como foi realizar essa tarefa?
A pergunta da terapeuta propicia uma descrição da relação da cliente com a própria realização da tarefa (i.e. tato). Note que Telma ainda não está “lendo” o produto da atividade em si.
CARLA: As características negativas eu preenchi bem rapidinho. Já as positivas, não conseguia pensar em nada. (risos)
TELMA: Lembrar mais fácil das características negativas do que as positivas estaria relacionada à alguma característica sua?
O próprio recurso terapêutico evoca o CRB, na medida em que a forma com que a cliente se envolve com o ambiente terapêutico é funcionalmente similar à maneira que ela se envolve com seu ambiente social original. A pergunta de Telma favorece que Carla descreva uma característica que potencialmente aparece em suas relações interpessoais.
CARLA: Bem, não sei bem…
TELMA: Quando você vê uma pessoa que vê mais suas próprias dificuldades do que suas qualidades, como você a nomearia?
Quando perguntamos algo que o cliente não consegue responder prontamente, talvez seja interessante mudar a forma de pergunta, procurando maximizar a propriedade que desejamos que ele discrimine, ao invés de simplesmente supor que ele não saiba, e\ou dar a resposta para ele.
CARLA: Acho que seria uma pessoa auto-exigente. Acho que sou um pouco assim mesmo….
TELMA: Você colocou essa característica quando fez o exercício?
CARLA: (risos) Na verdade não!
TELMA: Você teria exemplos de situações que você sente que essa característica de autoexigência aparece?
A terapeuta solicita assim a descrição de outras situações que a cliente se comporta de maneira “auto-exigente”, favorecendo a descrição de classes de comportamento.
TELMA: [Após descreverem várias comportamentos que Carla consideraria auto-exigentes]. Você considera a autoexigência uma característica positiva ou negativa?
É interessante que não seja o terapeuta que “determine” se uma característica seja considerada positiva ou negativa, nem que o terapeuta faça uma suposição sobre. Como veremos posteriormente, qualquer característica possui “bons motivos” para estar lá no repertório comportamental, e possui também “efeitos colaterais” normalmente indesejáveis.
CARLA: Acho que depois dessa conversa nossa de hoje, estou vendo que isso seria algo negativo para mim.
TELMA: Se você está pensando em ser algo negativo, que efeitos indesejáveis você teria sendo “auto-exigente”?
CARLA: Como não me permito errar, o custo é muito alto pra mim. (se emociona, chora). Trabalho duro, sinto que nunca é suficiente….
TELMA: Que bom que estamos falando sobre tudo isso. Sinto que tocamos num assunto muito importante.
Validação emocional. É importante descrever para o cliente que falar sobre aquilo, se emocionar, não é “gratuito”. Falar sobre isso tem sentido no processo terapêutico.
TELMA: (sem pressa, buscando respeitar o momento da cliente) O que você conseguiria evitar sendo auto-exigente?
CARLA: Acho que evito falhar, decepcionar as pessoas. Isso sempre foi muito importante para mim….
TELMA: (conversam sobre isso, pede exemplos de pessoas que se decepcionariam, etc). Muitas vezes, mesmo algo que nos parece negativo, produz algo importante para nós. O que você acha que essa autoexigência trouxe de positivo para você?
CARLA: Não sei bem. Bem…Durante a graduação e agora na vida profissional, sempre consegui bons resultados por buscar fazer tudo muito bem feito. Acho que isso. Mas nunca havia percebido o custo…  
Até o momento, Telma não havia lido a atividade de Carla. Apenas buscando tatear como foi realizada a atividade, conseguiram descrever esse conjunto de informações.
TELMA: Você colocou alguma característica que você relacionaria com o que nós conversamos até o momento?

 

Características

(adjetivos)

+

Bondosa

Dedicada

Prestativa

 

Desorganizada

Indecisa

Insegura

Tímida

Penso demais

Auto-exigente

Figura 2.

Atividade de características que o cliente considera positivas e que considera negativas preenchida por Carla durante a semana.

CARLA: Deixa eu ver. Acho que “Pensar demais”.
Telma repete o processo com a nova característica, aproveitando para solicitar à cliente sobre a similaridade entre os dois padrões descritos.
TELMA: Carla, se olharmos para suas características positivas: “bondosa, dedicada e prestativa”. Quem seria o principal beneficiário dessas características?
CARLA: Puxa… (pausa longa) Os outros.

 

Tabela 2.

Hipóteses sobre relações funcionais.

Contexto Ações Consequências Efeito da interação
Sugestões, pedidos, expectativas (Explícitas e implícitas) Atender, corresponder, fazer o que é esperado Bons resultados acadêmicos e profissionais (reforçamento Positivo)

Reconhecimento social sobre suas habilidades (Reforçamento Positivo)

Evita erros, falhas, decepção as pessoas (Reforçamento Negativo)

Sobrecarga

Cansaço

Sentimento de nunca ser suficiente

 

Recursos Terapêuticos e técnicas podem ser utilizados na atuação do Terapeuta Analítico-Comportamental. Para que a utilização não fique descontextualizada, ou a técnica seja inserida apenas pela própria técnica, é importante justificar o seu uso a partir da Análise Funcional e/ou os Objetivos Psicoterapêuticos.

Quando escolhemos um recurso, precisamos verificar se o tipo de informação ou resultado que a atividade gera é compatível com as informações ou resultados desejáveis para o caso atendido.

Por exemplo, a atividade de Características pode produzir: a) descrições sobre como o cliente se comporta (i.e. classes de respostas), b) descrição sobre contextos que ocasionam tais ações (i.e. Sds), c) descrição sobre consequências\efeitos que fortaleceriam tais padrões (i.e. Reforçamentos positivos e\ou negativos), d) descrição sobre consequências\efeitos que enfraqueceriam ou tornariam tais padrões “indesejáveis/desadaptativos” (i.e. punições positivas, negativas, custos de respostas, efeitos emocionais ou físicos, etc), e) relações e interações entre diferentes classes de respostas (i.e. similaridades funcionais). A utilização da atividade de características propicia assim dados preciosos para a Análise Funcional, e a sensibilização do cliente sobre variáveis controladoras críticas do seu comportamento (que não significa necessariamente uma descrição verbal).

A partir da hipótese de Análise Funcional apresentada na Tabela 2, Carla age produzindo reforçadores positivos importantes (i.e. resultados, reconhecimento), e evitando aversivos (i.e. errar, decepcionar os outros, etc), demonstrando ser funcional e efetivo. A discriminação/sensibilidade dos efeitos indesejáveis dos padrões comportamentais pode ser considerada uma variável motivacional para a mudança. Quando falamos em mudança, precisamos ter clareza em relação à direção da mudança. O estabelecimento de Objetivos Psicoterapêuticos se torna uma tarefa imprescindível.  Adicionalmente, os padrões comportamentais descritos até o momentos ocorrem nas relações interpessoais no seu ambiente de origem (e.g. trabalho, família, amizades, etc). Como a relação terapêutica é considerada relação interpessoal, podemos supor que Carla apresente comportamentos de “Atender, corresponder e fazer o que é esperado” durante a terapia (e.g. aceitar fazer a tarefa que envolvia um grau de dificuldade, trazer digitada para não mostrar sua letra, etc). Como atuar durante a interação com Carla? Que objetivos buscar na relação interpessoal que ocorre na terapia?

No próximo texto da coluna, discutiremos sobre o estabelecimento de objetivos clínicos nas relações interpessoais, tanto do ambiente natural do cliente, quando no ambiente psicoterapêutico.

 

Sugestões de leitura

Kohlenberg, R. J. & Tsai, M. (2001). Psicoterapia Analítica Funcional: Criando relações terapêuticas e curativas. Santo André: ESETec.

Verneque, L. (2015a). Os desafios da prática clínica: reflexões sobre os objetivos dos primeiros atendimentos. Comporte-se.

<https://comportese.com/2015/04/os-desafios-da-pratica-clinica-primeiros-atendimentos/>

Verneque, L. (2015b). Os desafios da prática clínica: favorecendo a auto-observação. Comporte-se.

< https://comportese.com/2015/06/favorecendo-a-auto-observacao/>

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Escrito por Luciana Verneque

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2003, Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) em 2006 e 2011. Lecionou na UFMG, UNIP, IESB e IFB. É colunista do Portal www.comportese.com. Atualmente é professora e supervisora clínica do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Atua no Espaço Vivenciar na área de Psicologia Clínica como Supervisora e Psicoterapeuta individual, de casal e família. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6653774361016731

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