O anormal é normal?

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Dizem que de louco todo mundo tem um pouco. O que isso quer dizer? O que seria a loucura? Qual a diferença entre normal e anormal? Essas são perguntas que permeiam o campo da Psicologia e também merecem a discussão sob a ótica da Análise do Comportamento. O psicólogo, em especial o terapeuta, se depara frequentemente com diagnósticos psiquiátricos e comportamentos considerados “anormais” em sua prática. No dia a dia, é comum ouvirmos que certa pessoa está com depressão porque está triste, deva ser bipolar porque acorda bem e logo em seguida está de mau-humor ou é esquizofrênica por ser escandalosa. Os chamados transtornos psiquiátricos são reconhecidos pelo senso comum a partir de comportamentos estereotipados e, geralmente, confundidos com o termo loucura. Mas será que o que é tido como anormal é tão anormal assim?

A palavra “psicopatologia” deriva do grego e significa estudo das doenças da alma (psykhé: alma; pathos: doença; logos: estudo). Há nessa definição, assim como nos termos doenças ou transtornos mentais, a marca da tradição dualista mente-corpo, a partir da qual se atribui os comportamentos a eventos internos de natureza metafísica. Claramente essa proposta não é coerente com os princípios do Behaviorismo Radical, e pouco contribui para a compreensão e análise dos comportamentos ditos “desviantes”.

Existem, ainda, critérios que definem a diferença entre o que é considerado normal ou anormal, os quais, por sua vez, também não são compartilhados por uma perspectiva analítico-comportamental. Um deles é o estatístico, que é utilizado pelos manuais de classificação diagnóstica, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e o Classificação Internacional de Doenças (CID). A partir desse critério a normalidade é definida considerando a frequência com que determinados comportamentos aparecem na população, de modo que seja possível estabelecer uma “curva normal” (Boas, Banaco & Borges, 2012).

Outro critério é o de reversibilidade, nesse caso quando é possível reverter o comportamento, o mesmo é tido como normal, sendo a condição contrária anormal. Um delírio ou confusão cognitiva induzida por consumo de álcool, por exemplo, não seria considerado uma condição psicopatológica na medida em que o indivíduo é capaz de deixar de apresentar esse comportamento assim que o efeito da bebida passar. Há também um critério que estabelece que o comportamento anormal é identificado como aquele que não é passível de ordenação, é caótico e não obedece a leis. (Banaco, Zamignani, Martone, Vermes, & Kovac, 2012) Será que então o comportamento desviante não poderia ser compreendido pelos princípios de aprendizagem utilizados para a análise dos comportamentos “normais”? Será que esse tipo de comportamento não seria sensível às consequências?

De acordo com a perspectiva da Análise do Comportamento, os comportamentos nomeados como psicopatológicos também são produto das contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais, de modo a estarem relacionados às variáveis ambientais e seguirem os mesmos princípios da aprendizagem tanto para seu estabelecimento, quanto para sua manutenção. Nesse sentido, um comportamento “anormal” pode ser entendido como um comportamento típico que acontece em intensidade e frequência (excessos ou déficits comportamentais) que causam sofrimento para o indivíduo, o que, por conseguinte, indica a necessidade de acompanhamento psicológico e, em muitos casos, a inclusão do tratamento psiquiátrico (Banaco, Zamignani, Martone, Vermes, & Kovac,, 2012; Gongora, 2003).

A intervenção farmacológica tem seu papel, principalmente para a manipulação de variáveis orgânicas, no entanto, nem sempre é suficiente, na medida em que a manipulação de contingências ontogenéticas e culturais também são necessárias para a promoção de comportamentos de melhora (Corchs, 2010). O próprio Skinner (1991) apontou que comportamentos perturbados são causados por contingências perturbadoras e que é por meio da manipulação dessas contingências que se faz possível a alteração dos padrões comportamentais apresentados. Dessa forma, evidencia-se a importância da parceria entre psicólogos analistas do comportamento e psiquiatras em suas respectivas atuações clínicas.

No que diz respeito à prática do terapeuta, cabe ao mesmo construir uma análise funcional que permita o direcionamento do caso mostrando ao cliente que o diagnóstico não é uma justificativa a ser usada como muleta, bem como esclarecendo para a família e para as pessoas, de modo geral, que os comportamentos apresentados não são simplesmente fruto da vontade ou do acaso. O objetivo da intervenção não é “normalizar” o indivíduo no sentido de formata-lo às expectativas sociais, mas sim propiciar condições para que ele possa apresentar comportamentos que sejam saudáveis para si e para os outros.

Aqueles comportamentos chamados de “psicopatológicos” talvez sejam assim classificados por serem diferentes, de modo algum por serem inferiores. Oliver Sacks (1991) no prefácio de seu livro “Um Antropólogo em Marte” descreve que “deficiências, distúrbios e doenças podem ter um papel paradoxal, revelando poderes latentes, desenvolvimentos, evoluções, formas de vida que talvez nunca seriam conhecidas, ou mesmo imaginadas, na ausência desses males. Nesse sentido, é o paradoxo da doença, seu potencial criativo” (p. 13). Nenhum comportamento é psicopatológico em si mesmo, precisa ser analisado a partir de um olhar muito mais amplo, que seja suficientemente sensível para identificar que contingências o produziram, compreendendo que a partir das variáveis em vigor e da história de reforçamento, o comportamento aparentemente “anormal” apresentado, é na verdade, o mais normal que poderia ser.

Referências Bibliográficas:

Banaco, R. A.; Zamignani, D. R.; Martone, R. C.; Vermes, J. S.; Kovac, R. (2012) Psicopatologia In: Hubner, M. M. C. & Moreira, M. B. (Orgs.) Fundamentos de Psicologia: Temas clássicos da Psicologia sob a ótica da Análise do Comportamento (pp. 154-166). Rio de Janeiro, Guanabara Koogan.

Boas, D. L. O. V.; Banaco, R. A.; Borges, N. B. (2012) Discussões da Análise do Comportamento acerca dos transtornos psiquiátricos In: Borges, N. B. & Cassas, F. A. (Orgs.) Clínica analítico-comportamental: aspectos teóricos e práticos (pp. 95-101). Porto Alegre, Artmed.

Corchs, F. (2010). É possível ser um psiquiatra behaviorista radical? Primeiras reflexões. Revista Perspectivas em Análise do Comportamento, 10(1), 55-66.

Gongora, M. A. N. (2003). Noção de Psicopatologia na Análise do Comportamento. In: Costa, C. E.; Luzia, J. C & Sant’ana, H. H. N. (Orgs.) Primeiros Passos em Análise do Comportamento e Cognição. São Paulo: Esetec.

Sacks, O. (2006). Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. (Carvalho, B, Trad). Companhia de Bolso.

Skinner, B. F. (1991). Questões recentes na análise comportamental. (Nero, A. L, Trad.). Campinas: Papirus. (Trabalho original publicado em 1989).

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Escrito por Roberta Seles da Costa

Graduada em Psicologia na Universidade Estadual de Londrina e Mestra em Análise do Comportamento pela mesma instituição. Com formação em ACT e FAP pelo Instituto Continuum de Londrina. Atualmente atende como psicóloga na Clínica Primed e faz parte do grupo "Iluminar - Análise do Comportamento e Psicoterapia" em Ponta Grossa. Também atua como professora do ensino superior.

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