Análise funcional de alguns mitos conjugais

Hera - Jupiter e Juno - James Barry (detalhe)Para falar do que é proposto nesse texto, primeiramente, é importante definirmos o que vem a ser um mito. Mito, segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, significa: 1. Personagem, fato ou particularidade que, não tendo sido real, simboliza não obstante uma generalidade que devemos admitir; 2. Coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real; 3. Coisa só possível por hipótese; quimera.

Já de acordo com o conceito filosófico, mito, do grego antigo “mithós”, é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. Ainda segundo a filosofia, o mito procura explicar a realidade, os principais acontecimentos da vida, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem (Cabral, 2015). Acontece que, por vezes, o mito é utilizado de forma vulgar para se referir a crenças e comportamentos comuns de diversas comunidades nos mais diferentes contextos.

No contexto conjugal, isso não é diferente. Além das dificuldades reais que os casais enfrentam em seus relacionamentos, eles ainda se deparam com problemas que têm como causas, por vezes, o que o psicoterapeuta Arold Lazarus chama de mitos conjugais. As análises funcionais propostas nesse texto serão feitas com base nos mitos conjugais traçados por Lazarus no seu livro “Mitos conjugais”.

136601O livro “Mitos Conjugais” (Editorial Psy) trata de 24 crenças que podem arruinar uma relação amorosa e essa é uma importante obra para todos os interessados em atender casais. Lazarus se refere aos mitos como crenças errôneas que os casais desenvolvem e que influenciam inadequadamente as interações dos casais. Para escrever esse texto, usarei a palavra mito com o mesmo sentido, porém substituirei a palavra crença pela palavra regra, com o sentido que a Análise do Comportamento traz para esse termo.

De acordo com Skinner (1980), regras são estímulos especificadores de contingências que funcionam como estímulos discriminativos, fazendo parte de um conjunto de contingências de reforço. Por esta definição, instruções, avisos, orientações, conselhos, leis e até mesmo mitos seriam exemplos particulares de regras, uma vez que todos podem descrever contingências, isto é, podem descrever as relações entre os eventos que antecedem o comportamento, o próprio comportamento e suas prováveis consequências.

Assim, algumas regras abordadas por Lazarus são bastante polêmicas e fazem valer a pena análises funcionais mais acuradas dessas afirmativas. Esse é o primeiro critério que justifica os mitos que serão trabalhados nesse artigo. O segundo critério é o de relevância clínica, considerando, em termos de topografia, quais são as regras mais verbalizadas pelos casais que atendi durante esses dez anos de prática clínica com casais.

Por exemplo, os mitos “marido e esposa são os melhores amigos”, “quando se sentir culpado, confesse” e “o marido e a esposa devem fazer tudo juntos”, discutidos no livro do Lazarus, foram, vez ou outra, citados por vários casais que tive a oportunidade de acompanhar em terapia. Vocês acham que essas regras poderiam ter adquirido qual função em uma relação? E, para você, qual a pertinência desse raciocínio clínico? Considerando todas as linhas da terapia comportamental e a finalidade por que elas trabalham com o emprego de suas técnicas, em todas, as contingências operantes no comportamento do cliente são identificadas por meio da análise funcional e entender qual o função do cliente falar o que faz ou fazer o que diz é determinante para intervir no processo terapêutico.

Assim, a relevância desse raciocínio clínico é que, depois de realizar análises funcionais de alguns casais sob controle dessas regras, é possível levantar algumas hipóteses. Sendo o objetivo da terapia aumentar o contato com as contingências reforçadoras e minimizar o sofrimento do indivíduo (Vermes e cols, 2007), o autoconhecimento fruto das discussões dessas hipóteses na terapia pode ajudar no aumento da sensibilidade às contingências em vigor e da discriminação das variáveis que mantêm regras como essa.

Na regra “o marido e a esposa devem fazer tudo juntos”, um ou outro e até ambos podem acreditar que isso só traz ganhos. O mesmo vale para todos os mitos citados anteriormente. Na verdade, para essa regra vigorar, as consequências para sua emissão devem ser reforçadoras. Mas imaginem outros contextos onde estar só também tem valor, quais sentimentos eles experimentariam? Será que teriam receio de se expor já que estariam descumprindo o que foi estabelecido? Se imaginarmos uma história de vida em que, em relações anteriores, o outro sair sozinho foi ocasião para traições, fica claro o valor de controle que regras como essas adquirem, já que, ao segui-las, diminui-se a probabilidade da exposição a situações que no passado ocasionaram sofrimento (traições).

Em contingências assim, é possível discriminar funções muito próximas de controle, tendo em vista que, a partir desse arranjo de contingências, um pode controlar o outro ou ser controlado. Alguns maridos e esposas, por exemplo, podem perceber que, apesar de um alto custo, seguir essas regras é a única alternativa diante dos conflitos, e esse comportamento pode ser mantido por reforçamento negativo, já que ambos podem se comportar assim para evitar problemas. É fácil perceber também que essas regras podem descrever classes de repostas que o casal ou um dos membros da díade gostaria que estivessem presentes na relação e que se deixasse de emitir, promoveriam dúvidas e insatisfações.

Quando analisamos regras com esses formatos, temos que pensar em intervir de forma a investigar a história de vida de cada um desses membros durante o processo terapêutico e entender tanto de onde vieram suas regras para um relacionamento que eles possam tanto considerar satisfatório quanto o que possa estar sendo alvo das queixas e frustrações. Nesse contexto, é importante conhecer quais comportamentos compõem a classe de resposta desejada e esses mitos podem deixar claras quais topografias são valorizadas pelo par ou por um dos membros do casal.

Outros mitos tratados por Lazarus são “os bons maridos consertam tudo em casa e as boas esposas fazem a limpeza”, “o matrimônio pode realizar todos os nossos sonhos”, “os que amam de verdade, advinham os pensamentos e sentimentos do outro” e “um casamento infeliz é melhor do que um lar desfeito”. É válida a necessidade de destacar que algumas regras sobre relacionamentos podem aumentar a probabilidade ou não de emissão de comportamentos adequados e inadequados devido à sua coerência ou não com as contingências efetivamente em vigor. Novamente, caímos na análise de que tudo depende da função do seguimento dessas regras para cada díade em específico.

Dattilio e Padesky (1995) consideram que os desajustes conjugais podem estar relacionados às expectativas irreais e às exigências exageradas mantidas por cada cônjuge acerca do casamento, fazendo com que avaliem a interação de forma extremamente negativa quando as regras que descrevem comportamentos esperados não são seguidas. Se, em uma relação, um dos cônjuges é controlado por regras como as citadas no parágrafo anterior, mais uma vez cabe a pergunta, quais as possíveis funções? Será que “os bons maridos consertam tudo em casa e as boas esposas fazem a limpeza” pode ter função de mando disfarçado, por exemplo? São muitas as possibilidades de análises.

De qualquer modo, o mais importante é discriminar com o casal que um dos possíveis motivos que pode impedi-los de viver ou manter um relacionamento amoroso reforçador é o fato de estarem apoiados em regras construídas por conteúdos idealizados de modelos de interação que muitas vezes já caducaram. O mito já citado “um casamento infeliz é melhor do que um lar desfeito” pode ser um bom exemplo disso. É válido perguntar qual seria a operacionalização do termo “lar desfeito” para esse casal. Como o casal enxerga no contexto atual o fim de uma relação? Muitos casais, sob controle de regras desse tipo, podem ficar insensíveis às novas contingências que poderiam fazer parte da vida a dois, vivendo uma vida empobrecida em termos de possibilidades.

Em diversos atendimentos de casais observaremos que alguns dos mitos citados por Lazarus fazem parte do arcabouço de regras que conduzem a vida do casal e podem estabelecer padrões comportamentais conflituosos e divergentes na relação, restringindo a variabilidade comportamental e reduzindo a sensibilidade dos comportamentos às contingências em vigor. Fazer o casal questioná-las é um exercício terapêutico que pode promover a desconstrução de regras engessadas e a substituição por outras mais refinadas e ricas para uma vivência plena e genuína.

Referências Bibliográficas

Cabral, João Francisco Pereira. “O Mito e a Filosofia”; Brasil Escola. Disponível em <http://www.brasilescola.com/filosofia/mito-filosofia.htm>. Acesso em 04 de setembro de 2015.

Dattilio, F. M. & Padeski, C. A. (1995). Terapia Cognitiva com Casais. Porto Alegre: Artmed.

Lazarus, A (1992). Mitos Conjugais. Campinas: Editorial Psy.

Vermes, J. S., Zamignani, D. R., & Kovac, R. (2007). A relação terapêutica no        atendimento clínico em ambiente extraconsultório. Em D. R. Zamignani, R. Kovac, & J. S. Vermes (Orgs.), A Clínica de portas abertas (pp. 201-228). Santo André: ESETec.

Skinner, B. F. (1980). Contingências do reforço: Uma análise teórica. (R. Moreno, Trad.). Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1969)

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Escrito por Denise Lettieri

Denise Lettieri, graduada em Psicologia, graduada em Administração de Empresas, mestre em Psicologia, especialista em Análise Comportamental Clínica, formação em Terapia Comportamental Dialética (DBT) pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute e pós-graduanda em Terapias Comportamentais Contextuais (CEFI/CIPCO). Realiza atendimento psicológico de adultos, casais e família, supervisiona atendimentos de outros profissionais e coordena programas de psicoterapia de grupo. É diretora e responsável técnica da Atitude Clínica Psicológica com sede em Brasília e diretora e gestora da Atitude Cursos que promove eventos na área de Análise do Comportamento com plataforma online para todo o Brasil. Atua como docente do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento, onde leciona a disciplina de terapia de casal e a disciplina terapia de grupo. É colunista do Portal Comporte-se. Membro da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC) e da Associação de Ciências Comportamentais Contextuais (ACBS). Áreas de atuação: Análise Comportamental Clínica; Terapias Comportamentais Contextuais; Docência; Supervisão Clínica. E-mail para contato: delett@hotmail.com.

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