Os desafios da prática clínica: favorecendo a auto-observação

 

A presente coluna acompanhará a trajetória de Telma, Terapeuta Analítico-Comportamental recém-formada. Sua experiência poderá gerar boas reflexões sobre a prática da Análise do Comportamento na clínica.

No primeiro texto da coluna, a partir da supervisão de Sara, Telma priorizou a escutar, o acolher e o perguntar à cliente Carla, favorecendo o fortalecimento do vínculo terapêutico como objetivo per si. No que se baseia afirmar que tal postura possa ser mais interessante do que “dar a solução”? Para responder essa e possíveis novas dúvidas, vamos continuar a caminhada.

Carla se apresentou como alguém que Telma desejava conquistar. Era jovem, bem vestida e educada. Seria fácil pra Telma ser abandonada por um cliente claramente problemático ou desleixado: “Ele não teve compromisso com a terapia”. A desistência de uma cliente tão aparentemente disponível para terapia incomodaria a jovem terapeuta. Isso acendia em Telma uma necessidade de “mostrar serviço”, demonstrar para a cliente que sua terapeuta irá resolver seu problema, seja ele qual for. A pergunta não saia de sua cabeça: “Ela vai gostar de mim?”

 

TELMA: [Olhando e balançando a cabeça] O que a levou a buscar terapia?
CARLA: [ri sem graça] Minha Amiga Juliana vive insistindo pra eu procurar. (…) [risinhos, olhando pra baixo]
Imediatamente Telma pensa em perguntar: mas e você, o que VOCÊ busca com a terapia? Parece que, no mínimo, Carla tem pouca percepção sobre suas dificuldades e os possíveis benefícios que poderia alcançar com a terapia. Qual seria a função da pergunta de Telma? Favorecer a discriminação de Carla ou “mostrar” que ela deve querer e não as outras pessoas? Como Telma poderia dispor de condições para maximizar a percepção de Carla sem “apontar”?
TELMA: Você imagina o que a leva a insistir pra você buscar terapia?
A pergunta de Telma parece ajudá-la a olhar (talvez pela primeira vez) para as “razões” (i.e. variáveis controladoras) que influenciam a insistência da Amiga. Com a supervisora Sara, Telma aprendeu que uma boa pergunta joga luz para condições que os clientes estão alheios, favorecendo o comportamento de observação e descrição.
CARLA: Não sei direito. Ela fala que preciso dizer não pras pessoas, que não devo deixar que se aproveitem de mim.
A resposta de Carla parece confirmar a percepção de que ela não discrimina quais são suas dificuldades (ou até mesmo se julga tê-las).
TELMA: Entendo. Me conte um exemplo de uma situação que ela costuma dizer isso para você.
O pedido por um exemplo de Telma parece favorecer mais uma vez a descrição por parte de Carla sobre os comportamentos que ela emite que ocasionam os “conselhos” da amiga Juliana.
CARLA: A Fernandinha do meu trabalho costuma me pedir ajuda pra revisar os memorandos, ela sempre me diz que sou muito boa formatando. A Juliana se irrita muito com isso. Ela diz que não é meu trabalho, que tenho que dizer não pra Fernandinha. Eu não tenho coragem. Não me custa nada.
Telma praticamente precisa se segurar na cadeira! Pensa: como assim? Carla, fazendo o trabalho que não é dela? Isso não parece justo. Como gostaria de dizer a Carla que ela deve se valorizar, valorizar seu trabalho e seu tempo, que não deve colocar o interesse de outros à frente dos seus. Telma quer ajudar Carla!

 

A terapeuta Telma tinha uma irmã caçula de 23 anos. Passou seus primeiros três anos sendo a única filha e única neta dos avós maternos, que viviam na mesma cidade. Normalmente possuíam bastante controle sobre as pessoas, que riam com seu jeitinho “temperamental”. Quando a irmã Tina nasceu, sentiu muito a perda da exclusividade da atenção familiar. Percebeu logo que a bebê tinha muitas necessidades e cuidados, e aprendeu a dizer quais os cuidados que a irmãzinha precisava e quem os faria: “Vovô, agoia Tina vai mimi, tchau vovô! Todos valorizaram muito seu jeito cuidadoso. Esse cuidado com tudo e todos continuou a crescer. O que começou como algo engraçadinho, passou a incomodar, por exemplo, na escola. Os pais de Telma foram chamados na época da primeira série. Telma queria que tudo fosse do seu jeito, a sua maneira e ao seu tempo. Muitos coleguinhas acabavam cedendo às suas direções e comandos, mas eventualmente, o desgaste de “cuidar” e comandar tudo gerava desentendimentos. Depois dessa grande confusão, Telma descobriu que as vezes as pessoas não percebiam que precisavam de sua ajuda, e que precisava falar com mais “jeitinho” suas ordens, ops, conselhos. Pessoas amam quem ajuda os outros: “As pessoas gostam de mim?”

 

Telma queria dizer que é bom aprender a dizer não para as pessoas, mas conseguiu se segurar e não “ajuda-la”.
TELMA: Como você se sentiria se algum dia precisasse dizer um não para Fernandinha?
CARLA: Hum Acho que muito mal. Culpada talvez.
Com a pergunta, Telma favorece que Carla observe e descreva possíveis sentimentos que ocorreriam. Sentimentos ocorrem concomitantemente às contingências. Telma pode imaginar que a classe de respostas “negar ajuda” possa ter produzido estimulação aversiva (i.e. processo de punição positiva) e\ou perda de reforçadores positivos (i.e. processo de punição negativa) no passado.
TELMA: Parece ser difícil para você nesse momento dizer não a um pedido de Fernandinha.
O comentário de Telma pode ter a função de validar o repertório atual de Carla, indicando que Telma compreendeu (diferentemente da amiga Juliana) que dizer não é algo difícil para a garota. Adicionalmente, o comentário sinaliza para a cliente que no contexto terapêutico, a descrição acurada (i.e. verdadeira) é favorecida, mesmo que no ambiente natural da cliente, tais descrições seriam alvo de críticas e\ou “conselhos”
CARLA: Verdade. Mas acho que tenho que mudar, não tenho?! Talvez Juliana esteja certa. O que você acha?
Telma precisou morder a língua duas vezes. Primeiro para não dizer: Claro! E depois para não voltar a pergunta para Carla: “Mas o que VOCÊ acha?”
TELMA: Que ótimo que você trouxe essa pergunta: parece importante saber se você deve ou não mudar. É uma pergunta que podemos buscar elementos para responder. Me diga uma coisa, existe alguma coisa que te incomoda quando você sempre diz sim?
Telma buscou acolher a dúvida de Carla, valorizando-a. Voltar a pergunta para Carla, não faria que com um passe de mágica ela discriminasse se precisa ou não mudar. No máximo repetiria o que Juliana ou outras pessoas vivem repetindo (i.e. intraverbalizaria).
CARLA: Hum Talvez… Às vezes eu me sinta um pouco cansada. Na primeira quinzena do mês, o volume do meu trabalho é grande. Acabo tendo que me desdobrar.
TELMA: Verdade. Maior volume de trabalho gera cansaço. 
Validação da descrição da cliente
CARLA: Estou me lembrando aqui. No último mês, a empresa teve uma auditoria, que deixou todos os gerentes malucos. Nosso trabalho quadriplicou. Mesmo eu não tendo nem tempo para minhas atividades, Fernandinha continuou a me pedir, mesmo quando ela sabia que eu estava sobrecarregada. Ainda bem que deu tudo certo. Mas eu me chateei.
TELMA: O que nessa situação gerou a chateação?
Telma está interessada que Carla possa discriminar condições aversivas e efeitos das contingências indesejados do padrão comportamental de “Dizer sim” (sempre).
CARLA: As pessoas não pensam muito em mim. (Segurou choro)
Carla entrou em contato com um “bom” motivo para mudar. Não por que Juliana ou Telma disseram ser bom mudar. E sim por que Carla está entrando em contato com um resultado de “dizer sim” sempre, que não é nada favorável para seu desenvolvimento como pessoa. Telma se calou. Telma ofereceu o lenço, balançou a cabeça, respeitou e acolheu aquele sofrimento.
CARLA: (Chorando, buscando segurar)

 

Se Telma não se segurasse e dissesse a Carla: “Claro, é muito bom que você diga não para pedidos em excesso das pessoas”, possivelmente diríamos que o conselho (i.e. regra ou descrição de contingência) apresentada é interessante para Carla, por poder maximizar reforçadores próprios (e.g. maior tempo livre), ou minimizar aversivos (e.g. excesso de trabalho e cansaço).

Saberia Carla sobre quais fatores históricos a levam a dizer sim? Perceberia o “bônus” e “ônus” de atender sempre às necessidades alheias? Estaria consciente do quanto busca consequências sociais (e.g. agradar pessoas ou evitar desagradar) mesmo quando acaba perdendo reforçadores pessoais importantes (e.g. mais tempo livre) ou entrando em contato com aversivos (e.g. sobrecarga de trabalho)? Poderia descrever possíveis ganhos de variar suas ações, em prol do seu desenvolvimento pessoal em detrimento ao benefício único do outro? Possivelmente não. Estaria apenas seguindo a descrição da terapeuta. Caso Carla seguisse o conselho de Telma e dissesse não para as pessoas, ela estaria fazendo o que a terapeuta deseja, dizendo “sim” para o controle da terapeuta, agradando-a (ou pelo menos evitando desagradá-la), repetindo na relação terapêutica o padrão comportamental que apresenta nas suas relações interpessoais extraconsultório.

As perguntas da terapeuta Telma permitem que a cliente possa se atentar para condições passadas e atuais que estabeleceram e mantém suas atitudes diante das pessoas, favorecendo assim o contato com variáveis controladoras críticas, propiciando a auto-observação e autoconhecimento. O trecho abaixo resume o desafio de Telma e Carla na caminhada da terapia:

“O terapeuta, eventualmente, pode ‘ver que está errado’ e ser capaz de sugerir um curso de ação corretiva; essa é a solução do problema [‘Mostrar para o cliente’]. Hoje, a experiência terapêutica tem mostrado que, quando essa solução é proposta a um indivíduo, pode não ser eficiente, mesmo que, até onde saibamos, seja correta. Mas, se o paciente chega sozinho à solução, é muito mais provável que adote um curso de ação eficiente. ‘Achar uma solução’ não é terapia, não importando quem faz a descoberta. Contar ao paciente que ele está errado pode não trazer nenhuma mudança substancial nas variáveis independentes relevantes e, por isso, pode representar pouco progresso em direção à cura. Quando o próprio paciente vê que está errado, não é o fato de que a solução partiu dele que é importante, mas o que importa é que, para descobrir sua própria solução, seu comportamento, com relação ao problema, deve ser alterado enormemente. Uma solução que parte do sujeito representa assim um considerável grau de progresso. A terapia consiste não em levar o paciente a descobrir a solução para o seu problema, mas em mudar o paciente, de tal modo que ele seja capaz de descobri-la.” (Skinner, 1953).

 

Perguntando, acolhendo e validando, Telma deu um contexto terapêutico que permitiu que Carla pudesse olhar pra si e para sua volta, pudesse observar e descrever algumas de suas relações com o mundo. Ela pode, pela primeira vez, falar, ser ouvida e se escutar. Ela teve oportunidade de refletir se tem um problema e se precisa mudar, não pelos outros, e sim, por si, a partir da discriminação das consequências de mudar ou não mudar.

Elas ainda não têm as respostas, mas estão com as perguntas certas.

Sugestões de leitura

Kohlenberg, R. J. & Tsai, M. (2001). Psicoterapia Analítica Funcional: Criando relações terapêuticas e curativas. Santo André: ESETec.

Verneque, L. (2013). Os desafios da prática clínica: reflexões sobre os objetivos dos primeiros atendimentos. Comporte-se. <https://comportese.com/2015/04/os-desafios-da-pratica-clinica-primeiros-atendimentos/>

5 2 votes
Article Rating

Escrito por Luciana Verneque

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2003, Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) em 2006 e 2011. Lecionou na UFMG, UNIP, IESB e IFB. É colunista do Portal www.comportese.com. Atualmente é professora e supervisora clínica do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Atua no Espaço Vivenciar na área de Psicologia Clínica como Supervisora e Psicoterapeuta individual, de casal e família. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6653774361016731

Conheça o livro: Psicologia e análise do comportamento : conceituações e aplicações à educação, organizações, saúde e clínica

Avaliação Psicológica em Saúde