Como aprendemos a relatar o que sentimos?

Paula Grandiwww.paulagrandi.com.br

Saber relatar como nos sentimos nas mais diversas situações é uma importante habilidade. Relatamos que sentimos tristeza, felicidade, saudade, ansiedade, borboletas na barriga, entre tantas outras palavras que atribuímos àquilo que apenas nós mesmos temos acesso. A dificuldade em expressar o que sentimos pode acompanhar diversas queixas clínicas de crianças, adolescentes e adultos. Por exemplo, crianças que apresentam déficits (retraimento, timidez) ou excessos comportamentais (agressividade, impulsividade), e até mesmo queixas somáticas, normalmente são inábeis em identificar seus sentimentos frente a situações e lidar adequadamente com eles (Moura e Azevedo, 2001). Por isso, o atendimento clínico muitas vezes envolve ensinar e treinar a habilidade de expressar aquilo que sentimos.

Mas porque será que algumas pessoas apresentam mais dificuldade em identificar e relatar o que sentem? Primeiramente é importante compreender que é a sociedade que nos ensina a discriminar e a expressar verbalmente o que sentimos. Para compreendermos porque alguns relatam o que sentem com mais facilidade do que outros e porque muitas vezes uma mesma palavra (por exemplo, ansiedade) pode ser usada por várias pessoas para descrever sensações diferentes, devemos entender como a sociedade ensina este tipo de relato, o qual está sob controle daquilo que apenas nós mesmos temos acesso, os eventos privados. Abordaremos, mais especificamente, como aprendemos a emitir tatos sob controle de eventos privados, e para isso precisamos retomar alguns conceitos importantes.

Skinner (1957) definiu o comportamento verbal como um comportamento operante no qual a consequência é mediada por um ouvinte que foi especialmente treinado pela comunidade verbal para reagir como mediador. Considerando as semelhanças e diferenças nas contingências do comportamento verbal, Skinner descreveu seis operantes verbais primários – mando, tato, ecóico, intraverbal, textual e transcrição. No caso do operante verbal tato, a resposta é emitida sob controle de um estímulo antecedente específico não verbal, que é constituído pelo conjunto do meio físico (o mundo de coisas e eventos a respeito dos quais um falante “fala sobre”). As consequências do tato envolvem um reforçador condicionado generalizado ou um conjunto de estímulos reforçadores distintos (não específicos).

Podemos emitir tatos sob controle de um estímulo público, o qual é acessível ao ouvinte e ao falante, ou sob controle de um estímulo privado, acessível apenas ao falante. No estabelecimento de um tato sob controle de um estímulo público, falante e ouvinte podem estar em contato com um objeto comum, ao qual se refere a resposta do falante. Neste caso, o estabelecimento do tato pela comunidade verbal ocorre da seguinte forma: em contato com uma bola, o ouvinte pode mediar o reforço generalizado (“Muito bem!”, “É isso mesmo!”) quando o falante emite a resposta verbal “bola”, e não mediar o reforço generalizado quando, frente à bola, ele emite a resposta verbal “boneca”. No entanto, estamos mais interessados em compreender o que acontece quando a comunidade verbal não tem acesso ao estímulo a que a resposta do falante se refere. Quando dizemos que estamos tristes, os estímulos que controlam a nossa resposta verbal são acessíveis apenas a nós mesmos e a mais ninguém.

Devemos nos atentar para o fato de que os eventos privados não possuem um status diferenciado em relação aos eventos públicos; pelo contrário, também se caracterizam como eventos físicos. Quando o comportamento verbal está sob controle de estímulos privados, apenas o falante pode reagir a eles, e a comunidade verbal não tem acesso ao que controla o comportamento do falante. Sem acesso ao estímulo privado, a comunidade encontra dificuldades em estabelecer as contingências de reforço que produzem as respostas verbais de tato sob controle de estímulos privados. É fato que estas respostas são estabelecidas, já que emitimos diversas respostas sob controle de estímulos privados, como: estou me sentindo triste, meu dente está doendo, estou com dor de cabeça, sinto o meu coração na boca. Mas afinal, como poderia então a comunidade verbal ensinar relatos de eventos privados?

Skinner (1957) descreve quatro maneiras pelas quais uma comunidade verbal poderia ter acesso a estímulos privados e então ensinar relatos em relação a eles. A seguir descrevo três delas:

(1) A comunidade verbal pode utilizar-se de um acompanhamento público comum dos estímulos privados que eventualmente controlam a resposta. Por exemplo, quando uma criança cai da bicicleta e rala o joelho no chão, ensina-se a ela dizer que sente dor. A comunidade torna o reforço generalizado contingente a certos acompanhamentos públicos de estímulos dolorosos, no caso, ralar o joelho no chão. A palavra dor é pareada com eventos privados eliciados pelo tombo (reforçamento diferencial) e, em ocasião futura, quando os mesmos eventos privados voltarem a ocorrer, ela indicará que sente dor. Ela aprende a dizer que sente dor de acordo com o uso da comunidade dessa palavra, e é por isso que a estimulação privada que é relatada como dor por uma pessoa, pode não ser relatada da mesma forma por outra. O mesmo pode se supor sobre uma criança que tem seu brinquedo quebrado por um colega. A comunidade, neste caso, torna o reforço generalizado contingente ao acompanhamento público de perda de um objeto reforçador, e a criança pode ser ensinada a dizer que está triste. Desta forma, é possível estabelecer tatos relativamente precisos.

(2) A comunidade verbal pode utilizar-se de respostas colaterais a um estímulo privado, ou seja, baseia-se em outras respostas que o falante emite ao estímulo privado. Por exemplo, uma criança com dor de barriga provavelmente levará a mão a barriga, poderá inclinar-se para frente ou até mesmo emitir expressões faciais específicas. Estas respostas colaterais possibilitam a comunidade verbal instalar como correta a emissão de tatos específicos, como “estou com dor de barriga”. Ocorre uma discriminação de eventos privados.

(3) A comunidade verbal pode não precisar recorrer diretamente a estímulos privados, ela pode reforçar uma resposta em conexão com um estímulo público (acessível a todos), apenas para ter a resposta transferida a um evento privado em virtude de suas propriedades comuns. Geralmente, o indivíduo aprende a reposta em conexão com um estímulo público e depois emite a resposta em conexão com estimulação privada, baseando-se em propriedades semelhantes (ocorre generalização). Por exemplo, podemos dizer que sentimos uma dor que se assemelha a pontadas, sendo um objeto pontiagudo e a forma como ele fere objetos um evento público acessível à comunidade verbal. Neste exemplo, um estímulo privado doloroso foi associado com o efeito de um objeto pontiagudo que possui propriedades geométricas similares. É possível que o relato “minha perna está formigando” tenha sido ensinado de forma similar, já que a estimulação privada se assemelha com o estímulo público de muitas formigas andando juntas (propriedades dos estímulos são partilhadas).

A precisão dos relatos acerca de eventos privados, no entanto, é uma questão a ser discutida. Os meios que a comunidade verbal tem para ensinar estes relatos basicamente buscam driblar a inacessibilidade dos estímulos privados. Apesar de todos os esforços para estabelecer um comportamento verbal sob controle de eventos privados, não é possível saber efetivamente o que controla a resposta. Por isso, o relato sob controle de eventos privados nem sempre é preciso, e um mesmo relato não necessariamente está sob controle dos mesmos eventos privados para diferentes pessoas. A precisão do controle no tato é possível de ser confirmada apenas para respostas a estímulos externos manipuláveis, e no caso de tatos de eventos privados o controle de estímulos é frequentemente deficiente. É comum encontrarmos pessoas que emitem o mesmo tato sob controle de estímulos privados diferentes. Por exemplo, duas pessoas podem dizer que estão ansiosas, mas os estímulos privados sob controle dos quais elas emitem esta resposta podem ser diferente. Esta é uma dificuldade frequentemente enfrentada no contexto clínico, fazendo-se necessário compreender sob controle do que o tato é emitido. Pessoas oriundas de diferentes comunidades verbais provavelmente emitirão tatos sob controle de diferentes estímulos privados.

Apesar de suas limitações, o ensino de tatos é realizado pela comunidade verbal, pois, por meio dos tatos emitidos pelo falante, ela passa a ter acesso a estímulos que apenas o falante tem acesso. Esta é a razão pela qual este operante verbal é ensinado pela comunidade verbal. A mãe ensina a seu filho a descrever quando está com dor de forma que ela possa facilmente tratá-lo. Se o ensino de relatos sobre eventos privados não fosse reforçador para a comunidade verbal e para o ouvinte, provavelmente não saberíamos descrever o que sentimos. É a própria comunidade que ensina ao indivíduo como relatar os eventos privados, bem como o que ele sabe sobre si mesmo, o que torna tão importante nos atentarmos para como relatamos o que sentimos e como naturalmente isso é ensinado e transmitido em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

Moura, Cynthia B. de; Azevedo, Maria R. Z. S. de. (2001) Estratégias lúdicas para uso em terapia comportamental infantil. Sobre comportamento e cognição: Vol. 6, capítulo 20. Santo Anfré: Esetec.

Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. Englewood Cliffs, NJ: Pretice Hall.

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Escrito por Paula Grandi

Psicóloga pela PUC-SP, mestranda bolsista CNPq no Programa de Psicologia Experimental: Análise do Comportamento da PUC-SP, especializanda em clínica Analítico-Comportamental pelo Núcleo Paradigma. Possui Formação avançada em acompanhamento terapêutico e atendimento extra-consultório pelo Núcleo Paradigma e atuou como psicóloga residente em oncologia no Hospital São Paulo. Foi bolsista PIBIC-CEPE de iniciação científica na PUC-SP e participou da organização do EAC PUC-SP (2010-2011). Atuou como organizadora e professora do Curso de Verão de Psicologia Experimental: Análise do Comportamento da PUC-SP (2015-2016). É membro sócio da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental e atualmente trabalha como psicóloga clínica, acompanhante terapêutica e pesquisadora.

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