Aristóteles e Skinner: autoconhecimento, ética e amizade

Há quem diga, sabiamente, que o silêncio vale mais do que mil palavras. Quem nunca refletiu sobre um fato de sua própria vida ou de um amigo próximo no qual esse provérbio se encaixaria com perfeição? Aqui, tentarei mostrar que uma imagem vale mais do que mil palavras, como um lembrete de que a importância da amizade é reconhecida desde tempos antigos. A imagem que vós vedes abaixo é parte de uma pintura renascentista de Raffaello Sanzio intitulada “Escola de Atenas” e representa dois importantes sábios da Antiguidade. 
Nela estão representados dois amigos, um mestre e seu discípulo, dialogando. O homem com o dedo indicador apontado para cima é Platão, salientando a importância das ideias virtuosas na formação do caráter e da ética humanos. A Ética, também chamada de Filosofia Moral, atualmente é tomada como um campo distinto, por exemplo, da filosofia política e da ontologia; para Platão, todavia, não há uma segregação entre esses campos, só há a Filosofia. Virtudes como a coragem, a justiça e a generosidade compõem o Bem a ser imitado pelas ações humanas. As ações virtuosas ou éticas são, nesse sentido, tentativas humanas de agir o mais próximo possível do Bem, que deve ser tomado como o mais sublime objeto do estudo filosófico. O Bem na visão platônica é geral e aplicável a qualquer objeto no universo (Kraut, 2006, p. 3).
Há, entretanto, quem problematize essa visão: o homem ao lado de Platão, Aristóteles, que, com a palma voltada para baixo, salienta a importância do mundo percebido como genitor das ações e da moralidade humanas. Para Aristóteles, ao se tomar o Bem como universal e não atentar àquilo que é distintivo ao humano, especulando a um nível mais abstrato, corre-se o risco de desconsiderar a particularidade do Bem em um objeto específico. Ele propõe, então, um estudo do Bem peculiar à humanidade.
É nessa perspectiva aristotélica que apresentarei uma relação entre ética, amizade e autoconhecimento, aproximando-a de uma perspectiva skinneriana. O desafio consiste em unir os mais de dois mil anos de história que separam as teorias de Skinner e Aristóteles, mas como? Como suas teorias podem ser aproximadas? Quais são as relações possíveis entre elas? Enquanto uma forma de iniciar o desenvolvimento dessas questões escolhi o tema da amizade para comentar uma relação entre autoconhecimento em Skinner e Aristóteles. Tema este que é belo ainda nos dias de hoje e cuja imagem, representativa da amizade de Platão e Aristóteles, a despeito de suas diferenças teóricas, parece-me representar muito mais do que aquilo que pretendo expor.
Para dar continuidade ao estudo gostaria de vos convidar a uma reflexão. Quem de vós já se percebeu julgando (bem ou mal) outra pessoa e, depois de um tempo, reparou que a ação que julgastes vós mesmos a cometestes? Pois bem, compare vossa resposta com uma enigmática afirmação de Aristóteles: “Podemos contemplar o nosso próximo melhor do que a nós mesmos e suas ações melhor do que as nossas” (Aristóteles, 1987, p. 170).
Apesar das várias interpretações e tentativas de explicação dessa afirmação pelos estudiosos da Filosofia Antiga uma conclusão parece consensual: ela reflete a importância da amizade para nos fazer reconhecer as atitudes que tomamos. O que foi que vós fizestes? Vós agis com justiça para com vosso semelhante? Vós ajudais uns aos outros? O que vossa ação gerou para vós, para vosso próximo, para vossa comunidade, para os seres-vivos, para o planeta?… Se de alguma forma eu estou vos incitando alguma reflexão, vós estais não apenas conhecendo a importância da amizade para Aristóteles, mas começando a vivenciá-la. O que isto quer dizer? Amigo é aquele que nos ajuda a reconhecer de nossas ações o que fizemos, seu resultado e os fins aos quais elas foram direcionadas; é aquele que nos proporciona o privilégio do conhecimento de nós mesmos: o autoconhecimento.
Para Aristóteles, um amigo é como “um outro você”, não em carne e osso, mas no compartilhamento dos mesmos princípios. Esse é um conceito importante, pois indica que a amizade não está fundada no utilitarismo ou na perversão: um amigo não é um instrumento para o outro, ao contrário, ele é a representação do vosso próprio Bem. Nesse sentido, o que vós quereis para si, vós quereis igualmente para ele e vice-versa. Vós podereis, portanto, confiar no julgamento que ele faz de vossas ações. (Com o perdão da digressão, vale ressaltar que uma postura ética semelhante é encontrada também no cristianismo, quem não lembra das máximas “diga-me com quem andas e lhe direi quem és” ou “faça aos outros aquilo que gostaria que fizessem a você mesmo”?)
Um amigo é aquele que divide convosco a mesma inclinação para agir virtuosamente. Inclinação não significa obrigação. Ao contrário, os amigos se ajudam pelo prazer da companhia um do outro, pelo prazer de poder enxergar nas ações do outro as virtudes que ambos compartilham. Quando nossas paixões nos cegam e nos direcionam para ações não-virtuosas o amigo, por dever, por reconhecer a necessidade da virtude nas ações, por querer ver o Bem realizado, é aquele que estará lá para nos salvaguardar e nos redirecionar no caminho da virtude, seja pela palavra, seja pelo exemplo. Amizade e prazer da companhia são, assim, intrínsecos ao pensamento aristotélico.
Mas como um amigo se mostra um agente capaz de ajudar, de guiar as ações éticas e morais e nos fazer conhecer a nossas próprias ações? Segundo Arreguin (2010) “alguém é capaz de reconhecer as virtudes morais pela interação e diálogos cotidianos nos quais as opiniões são expressadas” (p. 122). Assim, para Aristóteles, o autoconhecimento e as ações éticas são estimulados pelo amigo no contato, no diálogo, na troca, na comunicação, enfim, na vivência conjunta.
Tentei mostrar, então, que o amigo para Aristóteles exerce ao menos as seguintes características: a) uma pessoa que nos ajuda a reconhecer nossas ações no contexto em que ocorrem, os fins e resultados dela; b) ensina-nos e nos relembra acerca das atitudes éticas (direcionadas a um Bem); c) faz isso por meio da convivência, do diálogo e do exemplo. O amigo é um agente social que, no convívio, ensina e aprende valores.
E não é algo semelhante o que a literatura analítico-comportamental vem apontando? Ora, Brandenburg e Weber (2005) afirmam que no “behaviorismo radical o outro é necessário e imprescindível para o autoconhecimento” (p. 88) e, mesmo Skinner (1974/1999), afirma que o “conhecimento de si próprio tem origem social e é inicialmente útil para a comunidade que propõe perguntas” (p. 146). Nós vimos em Aristóteles que os rumos da ação ética têm uma dependência fundamental no amigo, que na teoria skinneriana se apresenta como o contexto de amizades ou como uma comunidade verbal. Para o analista do comportamento a comunidade verbal é a responsável pelo ensino do autoconhecimento, ao qual estão subsumidos o conhecimento de nossas ações éticas e morais.
Não tenho a intenção de igualar as filosofias de Skinner e de Aristóteles. Certamente existem diferenças teóricas fundamentais entre elas, mas isso não significa que não existam temas em comum. Ambos reconhecem a importância da amizade na gênese e manutenção de ações virtuosas. Meu foco é, assim, na importância da amizade, tendo como pano de fundo as teorias de Skinner e de Aristóteles.
Longe de encerrar o assunto, deixar-vos-ei em aberto algumas provocações para meditação. Se a amizade é um tema discutido pelo menos desde a Grécia Antiga, como vimos em Aristóteles, e se prolonga até a atualidade com Skinner, não será porque ela é relevante para vida do ser humano? Do contrário, por que discuti-la por tanto tempo? Será que temos alguma coisa a aprender com nossos amigos? Será que não podemos pensar as ações do nosso próximo, sejam elas virtuosas ou não, como exemplos a serem ou não seguidos? Enfim, cabe a cada um de nós o julgamento da importância da amizade e talvez as perguntas nunca se esgotem. Quanto a mim, não tenho palavras suficientes para elaborar todas as provocações que vós mereceis, portanto, deixo-vos como presente uma imagem, que vale mais que mil palavras.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. Coleção: Os Pensadores, vol. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
ARREGUÍN, H. Z. The role of self-knowledge in aristotelian friendship. Kriterion, Belo Horizonte, n. 121, p. 117-128, junho, 2010.
BRANDENBURG, O. J.; WEBER, L. N. D. Autoconhecimento e liberdade no behaviorismo radical. Psico-USF, v. 10, n. 1, p. 87-92, jan/jun, 2005.
KRAUT, R. Introduction. R. Kraut (Ed.) The Blackwell Guide to Aristotles’s Nicomachean Ethics. Malden (USA), Oxford (UK) and Victoria (Australia): Blackwell Publishing, 2006, p. 1-11.
SKINNER, B. F. Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix, 1999. Originalmente publicado em 1974.
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Escrito por Lucas Paulino

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