Psicanalista fala sobre transtorno do pânico

Nós somos seres desamparados. Não há garantia absoluta de nada na vida. Podemos morrer a qualquer momento, mas nem por isso deixamos de viver o cotidiano. “De uma perspectiva psicanalítica, o pânico corresponde a um afeto extremo de angústia despertado pelo confronto súbito do sujeito com seu desamparo”, explica a psicanalista Lucianne Sant’Anna de Menezes, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), autora de Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade, um estudo psicanalítico (Casa do Psicólogo 2006).

Confira abaixo a entrevista na íntegra:


Mente e Cérebro: Da perspectiva analítica, qual a origem do pânico? Por que a “síndrome do pânico” pode ser considerada uma psicopatologia contemporânea?

Lucianne Sant’Anna: São duas perguntas interessantes que englobam determinados aspectos ou problemas que exigem alguns esclarecimentos prévios. O primeiro deles, diz respeito a esta modalidade de sofrimento psíquico conhecida como “pânico”. Veja, você mesma disse “pânico” e “síndrome do pânico”.  “Síndrome do Pânico”, ou melhor, “Transtorno do Pânico” é uma categoria nosográfica descrita pela psiquiatria contemporânea no ‘Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais’, que está na sua quinta edição, o DSM-V, como também está referida no ‘Código Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde’, na sua décima edição, o CID-10, uma publicação da Organização Mundial de Saúde. Então, “Transtorno do Pânico” corresponde a  uma classificação fundada em bases operacionais e pragmáticas que norteiam uma perspectiva, digamos assim, objetiva da psicopatologia. Aqui, tocamos em outro problema: o que é psicopatologia? Refere-se ao estudo das doenças mentais? É um discurso a respeito do sofrimento psíquico?

Enfim, o que estou querendo mostrar é que o tema ‘psicopatologia’ é complexo, que não consiste, simplesmente, em descrever e classificar sintomas e quadros clínicos, mas é uma noção que deve ser problematizada, seja na medicina, seja na psicanálise. ‘Psicopatologia psiquiátrica’ e ‘psicopatologia psicanalítica’ se referem, portanto, a campos epistemológicos distintos, o que implica em abordagens teórico-metodológicas diferentes no tratamento do quadro psicopatológico do pânico, e que podem se articular. Nesse sentido, a opção pelo termo “pânico” tem o teor de suplência e não de oposição ao biológico e marca a pertinência a um campo clínico e discursivo próprios, além do rompimento com um discurso ideológico que desimplica o sujeito em relação a seu sofrimento. Quero deixar bem claro que não estou fazendo uma crítica a psiquiatria, mas a ‘uma vertente da psiquiatria contemporânea’ biologizante, que reduz o problema psicopatológico a um neurotransmissor que age no controle das emoções como a serotonina. É inegável o benefício dos medicamentos na vida destes pacientes, na medida em que aliviam os sintomas que são terríficos, desesperadores e por vezes incapacitantes, por exemplo, por conta de tanto medo a pessoa não consegue sair de casa para trabalhar; mas é fundamental que o paciente não deposite apenas no remédio a reorganização de sua vida e que se coloque em questão ao que acontece com ele.

Esclarecidos estes aspectos, desde uma perspectiva psicanalítica, o pânico corresponde a um afeto extremo de angústia despertado pelo confronto súbito do sujeito com seu desamparo. Nós somos seres desamparados. Não há garantias absolutas de nada na vida. Podemos morrer a qualquer momento, mas nem por isso deixamos de andar a vida, de viver o cotidiano, incorporando os riscos em jogo neste movimento do viver. Para certas pessoas esta condição de desamparo insuperável, fica enuviada pela ilusão de um ideal protetor onipotente, que garante a estabilidade do mundo, do mundo psíquico, organizado longe das incertezas, da falta de garantias e de indefinições, longe da angústia!

A condição de que, sem os cuidados de um outro, o bebê humano, imaturo e indefeso, não pode sobreviver, primeiramente, do ponto de vista biológico, faz Freud conceber a posição fundamental do desamparo na constituição psíquica. O bebê precisa de alguém para satisfazer suas necessidades, por exemplo, a fome, o que revela sua impotência na extinção da tensão interna e isto, para Freud, caracteriza o ser humano como dependente do amor do outro. Deste modo, o crescimento de uma tensão com a qual a criança não consegue lidar sozinha, corresponde a um acúmulo de excitação que ultrapassa o valor limite do seu aparelho psíquico, e é vivido então, como sensação de desprazer. Este é o traço comum entre a situação de perigo do nascimento e as situações de perigo posteriores a ela, sejam reais ou imaginárias. Para o adulto, o desamparo é o modelo da situação traumática que gera angústia. Ser tomado pelo pânico atesta que a pessoa não conseguiu subjetivar a condição de desamparo. Esta é a motivação básica do pânico, sob um ponto de vista psicanalítico: a perda do ideal protetor ou o medo da perda do amor. Freud falou do pânico em um texto que se chama “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921.

Quanto às psicopatologias contemporâneas, correspondem a certas formas de sofrimento psíquico que podem ser consideradas como expressões dos modos de subjetivação promovidos pela sociedade atual. Há um estilo de sociedade em pauta que gera condições e possibilidades para produção de determinadas psicopatologias como típicas de sua época. Isso não quer dizer, necessariamente, que são psicopatologias inéditas, mas são formas de padecimento que integram e expressam, na sua sintomatologia, redes de significações entrelaçadas ao redor dos ideais predominantes na contemporaneidade: a exaltação sem medida de si mesmo, do eu, e da existência como imagem estética. Há uma ênfase no “exterior” em detrimento do “interior”: o que interessa é o brilho, a cena, o espetáculo, o sucesso a qualquer preço, a imediatez, a captação narcísica do outro. Quando a alteridade vai cedendo lugar para o narcisismo, vão se configurando modos hegemônicos de produção de subjetividade. Não há lugar para diferenças. As subjetividades contemporâneas caracterizam-se pelo apagamento da alteridade, em que a tendência é uma redução do homem à dimensão da imagem. Nesse sentido, o pânico expressa o fracasso do sujeito em atender às exigências dos ideais e valores que a sociedade atual prega. Por isso, o pânico ganha espaço progressivo na cena social. Sob este ponto de vista, portanto, existiria um processo de produção social do pânico.

MeC: Como a psicanálise pode ajudar no tratamento de sintomas atribuídos ao transtorno do pânico?

LS: Levar o paciente a se implicar no seu sofrimento, a se questionar sobre o que acontece com ele, a falar, a procurar dar sentido, a partir da sua história, ao que parece não ter sentido: os ataques súbitos de pânico. No tratamento psicanalítico procura-se criar com o paciente condições para que ele possa subjetivar a condição de desamparo. Até a eclosão da primeira crise de pânico, a questão do desamparo não se colocara de fato para o paciente. Como disse anteriormente, a condição de desamparo estava enuviada pela ilusão de um ideal protetor onipotente, que garantia a estabilidade do mundo organizado longe das incertezas e da falta de garantias da vida.

Há muitos anos cuidei de uma paciente que teve sua primeira crise quando estudava fora de casa, época em que ficou noiva. Ao me contar esta história lembrou-se que um pouco antes da mudança descobrira que seu pai tivera uma amante quando ela era criança pequena e que ninguém na família sabia disso. Foi uma surpresa para todos que o pai não era aquela pessoa exemplar que pensavam, idealizada. Este fato do pai ter tido uma amante foi o início do desmoronamento de seu mundo protegido e que a dispensava de elaborar subjetivamente a ausência de um pai protetor absoluto. Tal fato vai culminar na sua primeira crise em relação a seu futuro marido e ao casamento. A descoberta de que o pai não era quem ela pensava, que ele não era o todo protetor que garantia a estabilidade da família, lugar onde ela sempre buscava proteção, representa o encontro terrífico com o desamparo, com a total falta de garantias de ser e existir no mundo, com as incertezas da vida. Ao ficar noiva ela também poderia ser traída ou abandonada pelo homem protetor que disse que a amava e que para ela era a garantia de sua estabilidade, assim como foi com o pai. Desse modo ela pôde começar a dar sentido aquilo que parecia não ter sentido e aos poucos se deparar com seu desamparo como uma condição humana e não unicamente como uma situação concreta e terrífica.

É comum em quem sofre de pânico, um apego dependente e concreto a alguém ou a alguma situação estável. Por exemplo, o paciente necessita de uma pessoa que o acompanhe aos lugares que precisa ir. Ele sabe, tem consciência de que não vai mudar nada, mas necessita desta presença concreta que cumpre o papel de um objeto fiador de sua existência (ideal protetor), garantindo a estabilidade de seu mundo. É uma compensação para a incapacidade de lidar com a falta e, ilusoriamente, o livra do confronto com o desamparo. O apego ao remédio tem significado semelhante.

MeC: Como podemos relacionar o que Freud denominou “mal-estar da civilização” às consideradas psicopatologias da atualidade, como a “síndrome do pânico”?

LS: O que Freud denominou de mal-estar na civilização relaciona-se ao mal-estar na modernidade. A civilização é o caminho necessário para o desenvolvimento que vai da família à humanidade como um todo. Retomo o que disse no início sobre o pânico como efeito de um processo de produção social. Foi esta ideia que defendi no estudo que realizei, ou seja, de que o pânico, na atualidade, seria expressão de um modo que o sujeito encontrou de se organizar na sociedade contemporânea, respondendo aos subsídios que a organização social atual oferece para que ele se sustente para além da cena familiar. Para Freud, o desamparo seria o que instaura o mal-estar, nas relações entre os seres humanos. É o motor na construção da civilização. O homem ergueu a civilização numa tentativa de diminuir seu desamparo diante das forças da natureza, dos enigmas da vida e sobretudo da própria morte. O desamparo no campo social diz respeito à falta de garantias do sujeito no mundo, que é obrigado a uma renúncia pulsional como condição de viver em sociedade e em consequência da satisfação pulsional frustrada, experimenta um desconforto que é sentido como um mal-estar. A condição de existência do sujeito no mundo, na civilização, é apoiada numa condição de desamparo do psiquismo. A mensagem freudiana é que para viver, as pessoas criam possibilidades afetivas no enfrentamento desta condição fundamental e o pânico seria uma dessas possibilidades, seria uma das expressões do mal-estar na atualidade que marca a relação do sujeito com a cultura. A modernidade não promoveu a superação do mal-estar, resultado do excesso de ordem e da escassez de liberdade; ao contrário, na sua máxima radicalização, o que fez foi “re-configurar” o mal-estar. O mal-estar contemporâneo é efeito da desregulamentação e do excesso de liberdade individual, é fruto do excesso pulsional e da fragilidade de simbolização. Nesse sentido, tem uma marca essencialmente traumática, o que aponta para a vulnerabilidade psíquica do homem contemporâneo, assim como destaca o pânico entre os modos atuais de sofrimento humano. 

MeC: Como o mundo atual (marcado, por exemplo, pela percepção de violência e falta de segurança nos grandes centros urbanos) contribui para a produção social do pânico?

LS: Pensemos a partir da ideia das psicopatologias contemporâneas, em que as formas de sofrimento psíquico manifestadas pelos sujeitos são indissociáveis das transformações que remodelam o campo social. As condições atuais do mal-estar na civilização dizem respeito ao vazio existencial produzido pela destruição da narrativa, ou seja, na atualidade predominam as modalidades de sociabilidade em que a subjetividade articulada à historicidade humana não é mais valorizada e, consequentemente, as mediações simbólicas e regulações narcísicas vão desaparecendo. O movimento da historicidade humana se constrói num eixo temporal a partir do presente, avaliando o passado e projetando-se no futuro. É essa “narrativa”, esse “enredo” dominante, por meio do qual somos inseridos na história, que parece estar em ruínas. O universo simbólico para onde o sujeito se remetia não lhe serve mais de suporte. Nesse sentido, o sujeito contemporâneo está à mercê da solidão e do vazio. No cume desse quadro, o desamparo do sujeito tornou-se agudo, assumindo formas radicais como o pânico, por exemplo, que irrompe quando o sujeito se depara com o abismo terrífico da experiência do vazio. O atual cenário em que nos inserimos é colorido, muitas vezes de choque e pavor, de cenas de brutalidade, destruição e violência que provocam indignação, desilusão e impotência em todos aqueles que se posicionam contra a injustiça, contra a degradação e a depredação do ser humano. O pânico nos traz a seguinte questão: como tornar tolerável a experiência do desamparo num mundo desamparado?

Fonte: Mente e Cérebro

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