FAP x discutir a relação terapêutica

Joana havia iniciado terapia há cinco meses e ainda não estava satisfeita com seus progressos, se é que conseguia descrever algum. Antes de iniciar a terapia, vinha se sentindo incomodada com suas amizades, ou mais especificamente, com a falta delas. Ela era considerada uma pessoa expansiva, de bom astral, sempre com uma piada na ponta da língua para entreter os amigos. Com seu humor irônico, conseguia ficar horas conversando com um grupo de colegas de trabalho. Porém nos finais de semana estava sempre sozinha, esperando que alguém a ligasse para saírem para dançar ou apenas tomar uma cerveja. Não entendia porque ninguém a procurava fora do seu horário de trabalho e se ressentia quando ouvia as pessoas comentando sobre o que haviam feito no final de semana. Nessas horas, tentava esconder seu ressentimento, afinal não queria afastar ainda mais as pessoas e voltava a fazer piadas com seus colegas. Vez ou outra, quando ficava realmente magoada com alguém em uma dessas situações, acabava por ironizar a pessoa ou a história que estava sendo contada, novamente arrancando risos dos demais. Ela entendia que isso poderia magoar a pessoa que estava sendo ironizada, mas não se importava muito, pois justificava sempre que “a pessoa mereceu… ”.
Pois bem, ao iniciar a terapia Joana chegou com esse relato para o terapeuta Tiago, sobre seus problemas e deixou claro que seu foco era conseguir se tornar amiga de seus colegas. As sessões com ela seguiam de forma muito agradável. Sempre bem humorada desde a sala de espera, Joana arrancava gargalhadas de seu terapeuta durante as sessões, que se divertia com seu humor aguçado e esperto.
Conforme as sessões avançavam, a semelhança ficava óbvia e cada vez mais seu terapeuta reconhecia o humor de Joana acontecendo nas sessões de terapia, assim como nas situações que ela descrevia sobre seus colegas de trabalho. Tiago rapidamente começou a reconhecer e apontar para Joana aquele mesmo humor, presente no ambiente de trabalho ocorrendo durante as sessões e, por vezes, ambos conversaram sobre isso em sessão, comentando sobre como era divertido estar na presença de Joana, o que a deixava mais intrigada sobre a distância dos demais.
Porém, Joana foi se incomodando com a falta de melhora em sua vida, começando a sentir certa frustração com a terapia. Frente a isso passou a fazer certos comentários em sessão, mostrando sua frustração, mas sempre de forma lúdica e aparentemente leve. Parecia que Joana estava muito incomodada com a falta de resultados, mas o tempo todo lidava como se isso não tivesse importância. Seu terapeuta reconheceu novamente os padrões de Joana em sessão e mostrou a ela a semelhança entre a forma como estava agindo com ele e a forma como agia com seus amigos quando estava magoada. Joana também via as semelhanças e por vezes os dois concordaram estar passando novamente pela mesma situação. Concordavam também que Joana usava o humor e a ironia como forma de não entrar em contato com suas verdadeiras emoções e não correr o risco de magoar demais o outro, mas infelizmente acaba produzindo o contrário, quando agia com ironia. Porém Joana não estava conseguindo mudar a forma de agir, nem em sessão, nem com seus colegas… 
Certa vez, Joana ficou muito irritada por mais uma vez o terapeuta estar lhe apontando tais semelhanças e acabou deixando seu humor de lado, mostrando para o terapeuta o tamanho de sua frustração e atacando-o dizendo que ele não estava conseguindo ajudá-la. Tiago, pego de surpresa, respondeu a ela como eles haviam reconhecido os padrões dela presentes em seu dia-a-dia e em sua terapia, mas que era ela quem precisava começar a agir diferente, pois ele não poderia fazer essas mudanças por ela. 

Pensando então na forma como Tiago vem lidando com a terapia de Joana, discutindo a relação entre os dois ao apontar as semelhanças/paralelos existentes entre seu dia-a-dia e as sessões, podemos dizer que a terapia que está sendo conduzida é uma terapia FAP? A resposta a que se chega é que não. Há uma parte da FAP sendo feita, ao serem reconhecidos os paralelos do comportamento de Joana dentro e fora de sessão. Essa seria a aplicação da Regra 1 do terapeuta FAP – estar atento aos CCRs. Porém as demais regras não estão sendo seguidas…

Primeiramente, parece não ter havido esforços de Tiago para evocar os CCRs de Joana (Regra 2), em especial, os CCR2. Em outras palavras, Tiago não a estava ajudando a encontrar novas formas de expressar sua tristeza e outras emoções que não fosse pelo humor ou ironia.
Além disso, quando Joana se irritou a acabou atacando seu terapeuta, podemos dizer que ela estava expressando sua frustração de uma forma mais clara, mais honesta. Não estava fingindo achar graça ou mesmo ironizando a situação, ela finalmente estava “encarando de frente” seu aborrecimento e expressando-o inteiramente a Tiago, falando até mesmo de sua vontade de que ele conseguisse ajudá-la mais do que vinha acontecendo. Em outras palavras, Joana estava emitindo um CCR2. Talvez poderia ainda não ser o CCR2 ideal, mas se pensarmos em modelagem, certamente era um bom início de mudança. No entanto, nesse momento, Tiago foi pego de surpresa e acabou por se defender do ataque de Joana, apontando a responsabilidade que ela tinha sobre a falta de mudança, sem se dar conta que tal ataque era em si uma mudança! Ou seja, à luz da FAP, possivelmente ele acabou por punir o progresso feito por ela em sessão.
Um terapeuta que estivesse trabalhando com esse caso inteiramente na perspectiva da FAP poderia agir de forma muito diferente à de Tiago. Inicialmente, poderia/deveria tentar evocar os CCRs de Joana e para isso possivelmente teria que parar de reforçar seus CCR1s, ao rir de suas piadas quando essas eram usadas como forma de se esquivar de sentimentos ruins, por exemplo. Além disso, ao estar atento para o aqui e agora da sessão de forma mais aguçada, poderia reconhecer os progressos no comportamento de Joana, mesmo que essas viessem inicialmente com certas explosões e deveria reforçar tais melhoras.
Na situação acima descrita, por exemplo, o seguinte diálogo poderia ter ocorrido:
Joana: Sabe, Tiago… estou ficando realmente cansada de você me dizer que a forma como tenho agido com você é a mesma forma que acabo agindo com meus colegas! Fico repetindo esse jeito de agir o tempo todo e não consigo mudar! O fato é que, se estou fazendo isso aqui também na nossa sessão, é porque você é quem não está conseguindo me ajudar, não? (CCR2 – expressar de forma mais sincera sua irritação)
Tiago: É Joana, eu entendo sua frustração e cansaço de ver a mesma situação se repetindo o tempo todo e está ficando claro pra mim o quanto você está se sentindo “no mesmo lugar” e irritada por eu não ter meios mais fáceis de lhe ajudar… (Regra 3 – reforçar o CCR2 de Joana ao mostrar compreensão do que está sendo dito e mostrando como está mais claro quais seus incômodos com a terapia por estar sendo franca. Porém o terapeuta só deve falar isso se, de fato, estiver sendo sincero com ela – essa é uma parte essencial da FAP)
Na interação acima vemos uma forma de reforçar o CCR2 de Joana que pode ser utilizada na FAP. Se com essa atitude o terapeuta estiver sendo de fato reforçador, a tendência é que a frequência desse tipo de comportamento aumente no repertório de Joana.
Há ainda outras duas regras que o terapeuta FAP deve seguir na sequencia, verificar se seu comportamento realmente é reforçador pro cliente (Regra 4 – descrita no parágrafo acima de forma indireta, mas pode ser feita também diretamente, perguntando-se ao cliente) e fazer análise funcional da interação ocorrida, principalmente sobre o CCR2 e suas consequências, e dos paralelos possíveis na vida diária do cliente (Regra 5).
O que vale destacar nesse contexto é o quanto a utilização das Regras 2 e 3 são essenciais na condução da FAP. Falar apenas sobre a relação terapêutica, fazendo-se os devidos paralelos entre o comportamento dentro e fora de sessão não é fazer FAP, apesar disso ser essencial para sua condução. O que quero dizer é que FAP é muito mais do que isso. Além de serem feitos os paralelos, deve-se ter o aval do cliente para que seus CCRs sejam trabalhados. Com essa autorização deve-se partir para a modelagem direta do repertório do mesmo, através da evocação (Regra 2) e principalmente reforço (Regra 3) dado às mudanças emitidas pelo cliente em sessão. Esse processo de evocação e modelagem por reforço diferencial dos CCRs do cliente é, na verdade, o centro da FAP. Afinal, as próprias Regras 4 e 5 acabam por fazer sentido apenas depois da modelagem em sessão já ter sido feita.
Quando a FAP é descrita, geralmente é dito que ela é uma terapia que trabalha a relação terapêutica e é nesse sentido que é importante diferenciar esse trabalho de falar sobre a relação terapêutica. Descrever semelhanças dentro e fora da sessão é importante, mas não necessariamente levará a mudanças de repertório. Por sua vez, tais mudanças são atingidas com um trabalho mais focado e mesmo mais longo, que diz respeito à construção de novas respostas no repertório do cliente.
Bibliografia recomendada
Callaghan, G. M., Naugle, A. E., & Follette, W. C. (1996) Useful constructions of the clienttherapist Relationship. Psychotherapy, 33(3), 381-390.
Kanter, J. W., Schildcrout, J. S., & Kohlenberg, R. J. (2005). In vivo processes in cognitive therapy for depression: Frequency and benefits. Psychotherapy Research, 15(4), 366-373.
Weeks, C.E., Kanter, J.W., Bonow, J.T., Landes, S.J., Busch, A.M. (2012). Translating the Theoretical Into Practical: A Logical Framework of Functional Analytic Psychotherapy Interactions for Research, Training and Clinical Purposes. Behavior Modification, 36(1), 87-119. DOI: 10.1177/0145445511422830
0 0 votes
Article Rating

Escrito por Alessandra Villas-Boas

Possui graduação em Psicologia (2003) e mestrado em Psicologia Experimental, ambos pela Universidade de São Paulo (2006), tendo o último recebido menções de distinção e Louvor pela banca examinadora. Tem experiência na área clínica, tendo trabalhado com atendimento infantil, de adulto, de casal, orientação profissional e como supervisora; experiência em docência universitária, tendo ministrado disciplinas de Análise do Comportamento; e experiência como acompanhante terapêutico. É Coordenadora Editorial do Boletim Contexto, uma publicação da ABPMC. Atualmente, é doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, investigando experimentalmente os mecanismos de ação da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), além de investigar suas formas de ensino e formação.

Anotações sobre Evolução por Seleção Natural: Como e Por quê?