O que o filme “O discurso do Rei” e a FAP tem em comum?

O discurso do rei (The King’s Speech – Hooper, 2010) é um filme que conta uma história de superação. O enredo, baseado em uma história real, mostra o Príncipe Albert, Duque de York (ou Bertie para os íntimos) sendo colocado em situações nas quais tem que fazer discursos, transmitidos via rádio para todo seu país em situações importantes. Isso talvez não fosse um problema, se não fosse Bertie, gago desde criança, o que é observado juntamente com uma grande fobia de falar em público. Na tentativa de resolver seu problema, Bertie e sua esposa procuravam por diversos médicos especialistas em fala, mas infelizmente nenhum deles obtinha sucesso… Apesar do cansaço e desesperança do Duque de York em continuar com tentativas frustradas de conseguir falar em público, sua esposa vai parar, seguindo uma indicação, no consultório de Lionel Logue, um australiano, que vive em Londres e mostra grande confiança em resolver o problema do duque, desde que suas regras fossem seguidas. Lionel não era médico, psicólogo, ou tinha qualquer formação como profissional da saúde. Era, na verdade, um ator frustrado que, após a Primeira Guerra começou a ajudar ex-soldados com problemas de fala, obtendo sucesso com a experiência. Ou seja, teve seu comportamento, como especialista em curar problemas da fala, modelado pelo sucesso que foi obtendo ao ajudar seus compatriotas. 

Pois bem, se a ajuda que Bertie procurou para a resolução de seu problema de fala foi dada por um homem que sequer era psicólogo, por que estou eu a procurar uma relação entre essa situação e a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), conhecida abordagem de terapia comportamental que mantém seu foco de trabalho nas relações terapêuticas? O fato é que toda vez que assisto a esse filme vibro em ver e sentir como a FAP funciona, pois mesmo Lionel nada sabendo sobre essa abordagem (que só foi criada décadas depois de sua existência) seus métodos, muito me lembram a atuação de um terapeuta FAP.
Primeiramente, vale a pena refletirmos um pouco mais sobre as questões que envolvem a fala de Bertie. Segundo o filme, ele era o segundo dos três filhos do Rei Jorge V. Bertie conta que seu problema de gagueira começou entre os 4 e 5 anos, quando era cuidado por uma babá que adorava seu irmão mais velho e o detestava. Segundo ele a babá frequentemente o beliscava na frente do pai para que ele chorasse e fosse repreendido, além de não alimentá-lo direito. Quando seu problema com a fala começou a aparecer, seu irmão mais velho David, Prícipe de Gales e o primeiro na linhagem de sucessão ao trono, o provocava, caçoando de Bertie e chamando-o de B-B-Bertie, entre outras coisas. A pressão por falar corretamente só aumentava, tornando-se mais um motivo para ser repreendido pelo seu pai. Além disso, seu irmão mais novo, John, faleceu ainda na infância, isolado do restante da família em função da epilepsia que apresentava, o que causou grande sofrimento a Bertie. Podemos observar, portanto, o quanto o ambiente que o cercava ao longo da infância era aversivo, cheio de cobranças que ele não conseguia atingir e consequentes punições.
Apesar dessas dificuldades ele cresceu, sendo bem sucedido em suas atividades, mas sempre evitando falar em público. Nos momentos do filme em que são mostradas cenas nas quais isso era exigido dele, era com enorme sofrimento que ele o tentava e acabava por desistir perante toda a sociedade, sendo reforçado negativamente por fugir daquela situação, apesar da vergonha que sentia e passando por enorme tensão quando um novo discurso era exigido dele. A situação piorou quando começou a ficar evidente que seu irmão David, que deveria subir ao trono, fugia constantemente de seus deveres, aumentando a exigência de que Bertie compensasse a falta do irmão de alguma forma. Além disso, mostram-se em alguns momentos do filme, episódios de explosões verbais por parte de Bertie, indicando sua dificuldade em lidar com situações nas quais ficava frustrado. 
Segundo o filme, Bertie não tinha amigos e, de forma geral, as únicas pessoas com quem se relacionava eram os membros da família real. Ele e sua esposa, quando buscavam por algum especialista na tentativa de ajudá-lo com seu problema de fala, recebiam o especialista em casa, pedindo discrição total e dividindo com ele o mínimo possível sobre questões pessoais. Sendo assim, qual não foi o espanto do casal quando se depararam com a exigência de Lionel Logue de que as sessões fossem feitas em seu consultório e não na residência do príncipe. Uma primeira tentativa foi feita e Bertie foi embora do consultório de Lionel, dizendo que aquele tipo de ajuda não era pra ele. Tais fatos indicam as dificuldades que Bertie tinha em se relacionar de forma mais íntimas com pessoas, bem como em suportar situações que pudessem sair de seu controle. Se começarmos a utilizar a nomenclatura da FAP para analisar as atitudes de Bertie, podemos possivelmente dizer que tais comportamentos são dois importantes CCR1s (Comportamento Clinicamente Relevante do tipo problema) de Bertie.
Um tempo depois, Bertie volta atrás e aceita os serviços de Lionel com a exigência de que apenas exercícios mecânicos sejam realizados, sem nenhum tipo de envolvimento mais pessoal ou “outros disparates” com os quais Lionel estava acostumado. O especialista os alertou de que isso resolveria o problema apenas superficialmente, mas aceitou ajudá-lo ainda que de forma limitada. Começa aqui a primeira grande “intervenção FAP” em minha opinião. Visivelmente os métodos de Lionel vão além da ajuda mecânica exigida pelo príncipe, mas parece-me que ele reconhece que aceitar alguma forma de ajuda já é um progresso em relação à negação anterior. Ao menos assim poderia fazer um terapeuta FAP que considerasse tal negação como um CCR1, por ser apresentado desde o início que tal ajuda poderia significar um envolvimento mais pessoal, em função das perguntas feitas por Lionel sobre suas dificuldades. Ou seja, ao ir embora do consultório no primeiro momento, Bertie estaria emitindo um CCR1 e ao retornar e aceitar a ajuda, ainda que apenas mecânica, Bertie estaria emitindo um CCR2 (Comportamento Clinicamente Relevante de melhora). É certo que tal CCR2 está ainda longe de ser o ideal, mas se pensarmos em modelagem de CCR2s por aproximações sucessivas, tal como a FAP prevê, Bertie está “no caminho certo”. É nesse momento em que Lionel, apesar de alertar sobre as limitações, aceita fazer os tais exercícios mecânicos, reforçando, portanto o CCR2 de Bertie (Regra 3 do terapeuta FAP – consequenciar adequadamento CCRs), talvez por já reconhecer as dificuldades (Regra 1 – estar atento aos CCRs) dele em aceitar ajudas que saiam de seu controle. 
Aos poucos, Lionel vai se aproximando de Bertie, conseguindo “derrubar” algumas de suas defesas. Consegue que Bertie se engage em atividades estranhas, mas úteis em seu problema de fala (como cantar na hora em que sentia que iria gaguejar), reforçando tais esforcos com atividades não relacionadas diretamente com seu problema de fala, mas que interessavam a Bertie, como montar um aviãozinho. Tais atividades, além de reforçarem o engajamento de Bertie, promoviam relaxamento auxiliando na investigação de Lionel sobre o passado do Príncipe (Regra 2 – evocar CCR2) através da produção de conversas mais íntimas. É quando podemos dizer que as consultas estão se aproximando de sessões de terapia, por envolver conversas mais pessoais, de conteúdos dolorosos. 
A relação entre eles se estreita e Lionel passa a fazer tentativas mais ousadas de evocar e reforçar CCR2s no repertório de Bertie. Em certa cena, após uma discussão com seu irmão David, da qual saiu frustrado por não conseguir responder ao irmão, Bertie está no consultório de Lionel, se lamentando pelo ocorrido. Lionel faz perguntas que irritam Bertie e este revida xingando-o. Oras… se xingar e se defender de seu irmão David foi uma atitude que ele não conseguiu tomar (comportamento problema fora de sessão), xingar Lionel ao ter se irritado, parece ser um progresso (CCR2). De fato, nesse momento, Lionel elogia-o por sua fluência durante as ofensas proferidas, reforçando seu CCR2 (Regra 3). Além disso, sugere que os dois continuem a conversa ao darem um passeio, logo após de Bertie expressar sua impossibilidade de xingar em público. Posivelmente, nesse momento, Lionel estava preocupado com a generalização do CCR2 de Bertie, ajudando-o a xingá-lo em público (Regra 5 – promover estratégias de generalização). Porém nesse momento, as tentativas de evocar diferentes comportamentos de Bertie foram possivelmente exageradas, ao insuar que o príncipe seria um rei melhor do que David, se não se deixasse dominar pelo medo. Bertie acusa-o de traição ao país e afasta-se dele, interrompendo as sessões. 
Mais tarde, David de fato abdica ao trono e Bertie tem que assumí-lo, mesmo contra sua vontade. Ele sempre sentiu alívio por não estar na posição de rei e é com grande aflição que a assume, como Jorge VI, voltando a procurar por Lionel ao ter que se preprar para a cerimônia de coroação. Nesse momento, passa a tratá-lo como a um membro da família, reconhecendo grandemente a ajuda que Lionel tem lhe dado. Possivelmente pela relação entre eles estar muito mais fortalecida, Lionel obtém sucesso em outra tentativa bastante ousada de evocar CCR2s no repertório de Bertie. A cena bastante interessante se inicia com Bertie questionando as qualificações de Lionel, que admite não ter nenhuma formação específica. 
Nas palavras do especialista: “Quando a Grande Guerra veio e nossos soldados retornaram à Austrália da frente de batalha, muitos deles traumatizados, incapazes de falar, alguém me disse: ‘Lionel, você é bom nessas coisas de discurso. Acha possível ajudar estes pobres miseráveis?’. Fiz fisioterapia, exercícios, relaxamento, mas sabia que precisava ir mais fundo. Esses pobres jovens gritavam de medo, e ninguém os escutava. Meu trabalho foi restabelecer sua confiança nas próprias vozes, e fazê-los saber que um amigo os escutava.” Nesse trecho fica evidenciada a preocupação de Lionel com o desenvolvimento de uma relação pessoal satisfatória como forma de progresso, aproximando sua forma de atuação da FAP. Ao ouvir a confissão de Lionel de não ter uma formação específica, Bertie perde a fé em seu tratamento e começa a dizer que ele será motivo de piada, que será conhecido como Jorge, o Rei gago e começa a emitir falas auto-depreciativas (CCR1). Ao se virar novamente em direção a Lionel, vê que ele está sentado no trono real e ordena-o que saia. Lionel o provoca dizendo que é apenas uma cadeira. Após alguma discussão, Bertie ordena que Lionel o ouça, pois ele é o Rei. Lionel ainda o provoca, dizendo, “não é não, você mesmo disse que não queria. Por que perderia meu tempo ouvindo-o?” É nesse momento que Bertie responde: “Tenho o direto de ser ouvido! Eu tenho uma voz!” e Lionel calmamente responde “sim, você tem”, retira-se do trono e elogia a coragem de Bertie e lhe diz que ele será um grande Rei. 
Na minha visão essa é uma interação FAP, apesar de muito mais ousada do que o costume. Quando Lionel senta no trono e questiona o porquê de ouvir Bertie, ele está emitindo a Regra 2 (evocar CCR) do terapeuta, e quando Bertie responde dizendo que é o Rei e que tem o direito de ser ouvido, está emitindo um grande CCR2. Por fim, os elogios de Lionel, servem como Regra 3, reforçando a atitude de Bertie. 
Apesar de Lionel utilizar muito mais ousadia que costumo ver terapeutas FAP utilizando, reconheço em seus métodos a procura por intimidade e modelagem de repertório típica de terapeutas FAP, levando ao desenvolvimento de repertórios que Bertie não acreditava ser capaz de ter. No final do filme, é dito que os dois permaneceram amigos durante toda a vida, indicando a grau de proximidade desenvolvido entre os dois, além de ser comentado o grande Rei que Bertie se tornou. 
Enfim, nada do que Lionel fez, pode ser considerado, de fato, como FAP. Afinal, tal abordagem sequer existia naquela época, porém, acho impressionante ver como seus métodos condizem com o que a FAP prevê, trazendo exatamente o tipo de resultado esperado pela abordagem. É nesse sentido que acredito que relações de intimidade, nas quais há uma preocupação genuína com o outro e uma consequente vontade de observar melhoras (ser reforçado pela melhora do outro), podem ser extremamente benéficas e transformadoras, levando a melhoras muito vezes além das esperadas em um primeiro momento. 

Filme: 

Hooper, T. (Diretor). (2010). O discurso do Rei. [DVD]. See Saw Films – Bedlam Productions.

Indicações de leituras:

Braga, G. L. B, & Vandenberghe, L. (2006). Abrangência e função da relação terapêutica na terapia comportamental. Estudos de Psicologia, 23(3), 307-314.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a Psicoterapia Analítica Functional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. Conte, & M. Z. Brandão, trads.). Santo André, SP: ESETEc (Obra publicada originalmente em 2009). 
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Holman, G. I., & Loudon, M. P. (2012). Functional Analytic Psychotherapy. Cornwall: TJ International Ltd.
Weeks, C.E., Kanter, J.W., Bonow, J.T., Landes, S.J., Busch, A.M. (2012). Translating the Theoretical Into Practical: A Logical Framework of Functional Analytic Psychotherapy Interactions for Research, Training and Clinical Purposes. Behavior Modification, 36(1), 87-119. DOI: 10.1177/0145445511422830
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Escrito por Alessandra Villas-Boas

Possui graduação em Psicologia (2003) e mestrado em Psicologia Experimental, ambos pela Universidade de São Paulo (2006), tendo o último recebido menções de distinção e Louvor pela banca examinadora. Tem experiência na área clínica, tendo trabalhado com atendimento infantil, de adulto, de casal, orientação profissional e como supervisora; experiência em docência universitária, tendo ministrado disciplinas de Análise do Comportamento; e experiência como acompanhante terapêutico. É Coordenadora Editorial do Boletim Contexto, uma publicação da ABPMC. Atualmente, é doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, investigando experimentalmente os mecanismos de ação da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), além de investigar suas formas de ensino e formação.

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