Pré-requisitos para a Alfabetização de crianças com Transtornos do Espectro do Autismo

No último artigo publicado apresentei algumas estratégias específicas utilizadas no ensino de habilidades pré-acadêmicas e acadêmicas a crianças diagnosticadas com Transtornos do Espectro do Autismo. Ainda neste assunto, vou iniciar hoje uma sequência de três artigos sobre o processo de alfabetização destas crianças. Hoje, descrevo alguns pré-requisitos que devem ser garantidos antes de iniciarmos um processo de alfabetização propriamente dito. 
De Rose (2005) apontou alguns destes pré-requisitos básicos que compõem a aprendizagem da leitura e da escrita. Vou descrever aqui alguns procedimentos que temos aplicado com crianças autistas visando ensinar estas habilidades. 
O primeiro ponto descrito por De Rose (2005) consiste em tornar letras e palavras estímulos discriminativos para o responder da criança, ou seja, estes estímulos, até então neutros para a criança não alfabetizada, devem passar a controlar o seu responder, chamar sua atenção e evocar suas respostas. Alguns autistas com o diagnóstico específico de Síndrome de Asperger desenvolvem um interesse precoce por letras e palavras, em alguns casos até um interesse exagerado. Mas na maior parte dos casos de autismo as crianças não se atentam para estes estímulos. 
Um procedimento que contribui para tornar letras e palavras estímulos discriminativos é o pareamento de palavras com imagens significativas, que pode ser feito através da leitura de rótulos. O terapeuta apresenta rótulos de produtos conhecidos da criança e que sejam de seu interesse (por exemplo, um chocolate, um suco, um salgadinho, etc) para a criança nomear. Frente a este estímulo, que contém imagens (cores e formas) e palavras escritas, a criança não alfabetizada vai tatear as imagens que lhes são conhecidas. Porém, durante o procedimento é importante que o terapeuta estimule a criança a apontar a palavra escrita, passando o dedo sob ela ao nomear o produto, mesmo que a criança ainda não esteja sob controle da palavra. Com isso, aumentamos as chances de a criança se atentar para a palavra e começar a notá-la. 
Certa vez, em uma apostila de pré-escola, encontrei uma atividade que tinha este mesmo objetivo. A atividade pedia que o aluno olhasse a foto de uma rua comum e identificasse nela “coisas escritas”. Na foto podia-se ver pessoas andando na calçada, lojas, bancas de jornais, carros, letreiros de lojas, placas, etc. O objetivo nesta atividade também era verificar se letras e palavras já tinham a função de estímulo discriminativo para os alunos, se eles iriam notar e reconhecer estes estímulos. 
Outro pré-requisito apontado por De Rose (2005) é ampliar o contato e o interesse do aluno por letras, palavras, textos e livros. Para isso, o terapeuta comportamental pode reforçar diferencialmente comportamentos relacionados com leitura e escrita. Por exemplo, damos um livro infantil na mão da criança e reforçamos as respostas de folhear o livro, apontar e nomear imagens, acompanhar a leitura do adulto com o dedo nas palavras, etc. O terapeuta deve dar as ajudas necessárias para a criança emitir estas respostas e disponibilizar o reforço imediatamente após a resposta pedida com ou sem ajuda. 
Em um contexto de ensino incidental pode-se apresentar brinquedos e jogos que incluam letras e palavras, por exemplo: dominós, jogos da memória, quebra-cabeças, etc. Os livros infantis com ênfase no lúdico também contribuem muito para o aumento do interesse por estes materiais. Livros com imagens em alto relevo, sons, texturas, imagens com movimento, enfim, o exagero do lúdico nesta etapa é fundamental para garantir a motivação. 
O terceiro pré-requisito descrito por De Rose (2005) consiste na discriminação espacial ou discriminação de posição. No ambiente extra-escolar a orientação espacial é um aspecto irrelevante dos estímulos, isto é, um objeto permanece sendo o mesmo quando está em diferentes posições. Um copo não deixa de ser copo quando o viramos de cabeça para baixo ou o deixamos deitado na mesa. O copo será sempre copo, em qualquer posição que ele esteja. Então, a criança que ainda não se atenta para letras e palavras não discrimina mudanças de posições, isso ainda não é relevante para ela, pois não interfere no reconhecimento que ela faz dos objetos. 
É preciso ensinar que o mesmo não acontece com as letras. Formatos idênticos em posições diferentes significam letras diferentes. As letras p, b e q (de imprensa e minúsculas) têm o mesmo formato, mas estão em posições diferentes. O mesmo ocorre com as letras n e u. Então, a criança precisa aprender a considerar a posição como uma característica relevante dos estímulos, pois isso será fundamental na discriminação de letras e, portanto, de palavras. Para isso, é preciso fazer com que a criança discrimine diferentes posições dos estímulos e fique sob controle destas posições. 
Em um contexto de tentativas discretas podemos fazer discriminações auditivo-visuais e visuais-visuais de diferentes posições espaciais. Uma discriminação auditivo-visual seria, por exemplo, apresentar uma imagem de um objeto em cima da mesa e uma imagem de um objeto embaixo da mesa e pedir para a criança pegar ou apontar o objeto que está em cima e, na próxima tentativa, apontar ou pegar o objeto que está embaixo. Esta discriminação também pode ser feita com outros pares de posições opostas como dentro x fora; na frente x atrás; etc. Isto também pode ser feito em forma de atividades grafomotoras, por exemplo, solicitando que a criança recorte e cole imagens em diferentes posições de acordo com as instruções dadas pelo terapeuta. 
A discriminação visual-visual seria, por exemplo, uma categorização de imagens de acordo com a posição. Para isso, o terapeuta apresenta 2 caixas e coloca em cada uma delas uma imagem que mostre um objeto em uma determinada posição. Então, o terapeuta vai dando outras imagens para a criança colocar na caixa da mesma posição. Por exemplo, a criança separa em uma caixa tudo que está em cima e na outra tudo que está embaixo. Vale notar que estes treinos ocorrem com imagens e objetos, ainda não se tem o objetivo de treinar a discriminação de letras propriamente dita. Esses são apenas treinos de discriminações que são pré-requisitos para então se treinar o reconhecimento de letras e palavras. 
Em um contexto de ensino incidental, sugere-se apresentar jogos educativos para discriminação de posições espaciais, ou seja, jogos de opostos. Os jogos de memória de letras ou dominó de letras também contribuem para este aprendizado, já que para reconhecer letras iguais a criança deverá discriminar sua posição. Os quebra-cabeças de letras e os jogos de encaixe de letras também são muito úteis, pois na tentativa de encaixar a letra no local correto a criança vai mudando sua posição até chegar à posição correta. 
Se por um lado a posição ou direção das letras no espaço é uma característica importante para discriminar entre uma letra e outra, por outro lado a posição das letras em uma palavra, ou seja, se ela está no começo, no meio ou no final da palavra, não é uma característica que deva ser considerada para discriminar que letra é. Portanto, é importante que a criança compreenda que, por exemplo, um b, permanece sendo um b se ele ocupar diferentes posições na palavra. Esse exercício de reconhecimento das letras, independentemente da posição que elas ocupam nas palavras (começo, meio ou fim) é feito de forma sistemática na escola já nos primeiros anos do processo de ensino formalizado. As professoras planejam uma diversidade de atividades com o objetivo de que as crianças identifiquem as letras em posições diferentes nas palavras. Por exemplo, pode-se pedir para as crianças selecionarem, dentro de uma lista de palavras, aquelas que começam com a letra B; ou circular as letras B que aparecem no meio das palavras; ou ainda, grifar palavras que possuem a letra B, não importando a sua posição; etc. 
Outra característica apontada por De Rose (2005) como fundamental para a discriminação de letras e palavras é a quantidade, afinal existem palavras com mais e menos letras e esta percepção vai compor a alfabetização que virá em seguida. Então, o terapeuta também deve propor atividades de discriminação auditivo-visual dos conceitos mais e menos, mostrando uma imagem com muitos estímulos (de preferência estímulos do interesse da criança) e uma imagem com poucos estímulos. Em seguida, o terapeuta pede para a criança apontar ou pegar o estímulo que tem mais desenhos e reforça a resposta com ou sem ajuda. O mesmo pode ser feito no formato de atividade grafomotora, pedindo que a criança recorte e cole mais adesivos de algum personagem de seu interesse no espaço do “mais” e menos adesivos no espaço do “menos”. 
O quinto e último grupo de habilidades apontado por De Rose (2005) como fundamental nos treinos que antecedem a alfabetização é a discriminação das dimensões críticas dos estímulos textuais, ou seja, os aspectos gráficos e sonoros. 
Para a discriminação de aspectos gráficos podemos trabalhar com emparelhamento (matching to sample) de identidade de letras e palavras, que tornará a grafia desses estímulos uma característica relevante. O terapeuta deve apresentar três letras ou palavras diferentes na mesa (estímulos comparação), e mostrar cada uma para a criança garantindo que ela olhe. Para isso, o terapeuta deve levar o dedo da criança até cada estímulo. Em seguida, o terapeuta dá na mão da criança uma letra ou palavra (estímulo modelo ou condicional) que é idêntica a um dos três estímulos comparação. A criança deve colocar a letra ou palavra que está em sua mão sobre a idêntica que está na mesa, com ou sem ajuda do terapeuta, a depender da fase de treino em que está. Em contexto de ensino incidental podemos, novamente, lançar mão dos jogos de memória e dominó de letras e palavras. Afinal, para encontrar os estímulos iguais a criança deverá se atentar para a grafia. 
A discriminação dos aspectos sonoros fazemos com jogos de discriminação auditiva como bater palmas, bater no tambor ou bater na mesa com ritmos diferentes ou com a mesma quantidade de batidas feitas pelo terapeuta. Por exemplo, o terapeuta bate palmas (ou bate no tambor ou na mesa) três vezes e ajuda a criança a imitar estas batidas. Com isso, vamos treinar a atenção para sons, quantidade de sons e ritmo. O mesmo pode ser feito com separação de sílabas, ou seja, o terapeuta fala uma palavra separando-a em sílabas e batendo palmas em cada sílaba e a criança deve imitar (a criança pode ou não verbalizar as sílabas enquanto bate palmas). As brincadeiras do tipo Adoletá também trabalham esta marcação de sons, afinal, batemos uma mão na outra cantando a música e marcando cada sílaba (A-do-le-tá-le-peti-peti-polá…). Esta brincadeira pode ser adaptada para usar palavras ao invés da música comumente usada. 
Um grupo de fonoaudiólogas e pedagogas criou jogos para computador que estimulam estas discriminações auditivas. Os CDs “Pedro na Casa Mal Assombrada” e “Pedro no Parque de Diversões” são excelentes para este trabalho, pois possuem jogos de discriminação auditiva extremamente lúdicos e divertidos. Um jogo do CD “Pedro na Casa Mal Assombrada” consiste em uma discriminação do som diferente dentre diversos sons ouvidos. O personagem na tela emite um som repetidas vezes e, em um determinado momento, o personagem emite um som diferente. Quando ouvir o som diferente a criança deve clicar para ganhar pontos. O jogo começa com sons eletrônicos e vai evoluindo para sílabas muito distintas entre si (Ex: PA e TU), sílabas muito semelhantes (Ex: PA e SA), palavras muito distintas (Ex: BALA e TATU) e palavras muito semelhantes (Ex: BALA e SALA). Ou seja, o nível de dificuldade vai aumentando gradualmente. 
Outros jogos oferecem tentativas de discriminação de um som igual dentre diversos sons. Por exemplo, aparece a imagem de um CORAÇÃO (estímulo modelo) e três personagens verbalizam diferentes palavras: SAPO, LEÃO, BALA (estímulos comparação). Então, a criança deve clicar no personagem que falou a palavra cujo som se parece (rima) com o nome da imagem dada como estímulo modelo. No exemplo dado a criança deveria clicar no personagem que falou LEÃO, cujo som final se parece com CORAÇÃO. Essa discriminação também pode ser feita em jogos de dominó ou memória de imagens, sendo que a regra é parear ou encontrar pares de imagens cujos nomes rimam. Esse material pode ser produzido com imagens impressas e plastificadas. 
Também temos aplicado um programa de ensino denominado Quadro Fonético que também visa instalar a discriminação auditiva. Nesse treino, a criança deve separar objetos ou imagens em caixas ou saquinhos de acordo com a letra inicial. Em cada caixa vai uma letra. Para que a criança fique sob controle do som o estímulo não deve ter a palavra escrita. Então, a terapeuta dá um avião de brinquedo na mão da criança e o nomeia, enfatizando o som inicial: “AAAAAVIÃO”. Então a criança deve colocar o avião na letra A e assim por diante com as demais letras, começando apenas com vogais e, depois, seguindo para consoantes. 
Com estes pré-requisitos instalados, inicia-se o processo de alfabetização propriamente dito. Este será o tema do próximo artigo a ser publicado nesta coluna no dia 02 de janeiro de 2013. 
Referências Bibliográficas: 

De Rose, J. C. (2005). Análise Comportamental da Aprendizagem da Leitura e Escrita. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 1, 29-50. 
Sites: 

Pedro na Casa Mal Assombrada: 

Pedro no Parque de Diversões: 
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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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