Desvendando a Neuropsicologia (Parte II): a herança da psicologia

Erica Vila Real Montefusco, Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará (2009), Pós-Graduada em Neuropsicologia pela Faculdade Christus (2011) – Fortaleza, CE 
Paulo Estêvão da Silva Jales, Psicólogo pela Universidade Federal do Ceará (2011) – Fortaleza, CE 
Em nosso post anterior (que você poderá acessar clicando aqui) discutimos como a compreensão sobre o encéfalo foi se desenvolvendo ao longo da história da ciência. Partimos dos estudos de filósofos gregos até chegarmos à tensão entre as teorias localizacionista e unitarista reunidas, por fim, no modelo de “sistema funcional”. Tais discussões germinaram, quase que exclusivamente, nos campos da anatomia, da fisiologia e da biologia 
Com relação à psicologia, esta ainda não havia estabelecido o seu lugar como disciplina científica, sendo as discussões sobre a “essência humana” travadas na área da filosofia. Todas as ciências tiveram sua origem na filosofia, separando-se dela em algum momento da história. A psicologia concretizou a sua separação em meados do século XIX e só foi firmar-se como área de pesquisa após 1940. No seu surgimento, era comum referir-se à psicologia como “ciência da mente” e o método de investigação adotado era a introspecção, tributo das influências que a Filosofia lhe legara (ver Baum, 2006, capítulos 1 e 2, para uma discussão mais completa). 
Faremos agora um rápido passeio pela história da psicologia. Veremos que o relacionamento atual entre a Análise do Comportamento (AC) e a Neuropsicologia (NP) se confunde, um pouco, com a própria história da psicologia. Apesar de ambas as áreas nutrirem-se de estudos de um mesmo tronco comum, seus ramos cresceram separadamente. 
Tensão na psicologia, round I: humanos x não-humanos
Comecemos um pouco mais longe, com Charles Robert Darwin (1809-1882): suas proposições sobre a seleção natural causaram verdadeiro ‘rebuliço’ (furor), pois abalaram os fundamentos do antropocentrismo vigente. Em conjunto com a teoria da herança genética (desenvolvida na primeira metade do século XX) foi que nasceu a teoria moderna da evolução, a qual sustenta o posto de paradigma dominante na ciência até hoje. 
Charles Robert Darwin (1809-1882)

Um pressuposto básico da teoria da evolução é a de que as espécies, mesmo possuindo características diferentes, possuem muitas semelhanças, já que compartilham a mesma história evolutiva. Tal pensamento abriu espaço na ciência para que o estudo com animais não-humanos pudesse, algum dia, elucidar certos aspectos do ser humano. 

Podemos citar como exemplo o fisiologista russo Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), que ficou conhecido por seus experimentos de condicionamento com cães, e donde derivou suas proposições teóricas sobre o comportamento humano. Paralelamente, Hermann Ebbinghaus (1850-1909) buscava medir e analisar os processos complexos em humanos, como a memória. 

Essas duas linhas de pesquisa criariam uma tensão acirrada ao se encontrarem na psicologia: surgiram separadamente e deixaram um legado forte de discordância. Apesar de que, desde Darwin, a continuidade evolucionária ser um fato pouco contestável, a relevância dos resultados de uma área para outra é assunto controverso. 

Tensão na psicologia, round II: introspeccionismo x objetivismo
A “ciência da mente”, como era conhecida a psicologia no século XIX, tinha como principal método o instropeccionismo. Podemos definir rapidamente este método como a capacidade de “olhar” os eventos internos (ou da mente) que ocorriam em uma pessoa. Wilhelm Maximilian Wundt (1832-1920) realizou vários estudos com este método em seu laboratório na universidade de Leipzig. 
No entanto, a introspecção passou a ser rejeitada como método de estudo válido em psicologia, e em seu lugar surgiam as proposições objetivistas, que buscavam um método mais confiável, verificável e replicável. Em 1913 , John Broadus Watson (1878-1958) publicou o artigo “Psicologia como o behaviorista à vê” rejeitando a introspecção como método e atacando a definição da psicologia como “ciência da consciência”. Watson argumentou que a psicologia poderia se tornar uma verdadeira ciência ao utilizar os métodos objetivos já existentes em outras disciplinas e advogou que os eventos “não observáveis” eram invenções desnecessárias. 
John Broadus Watson (1878-1958)
O Behaviorismo (Comportamentalismo) de Watson abriu uma larga fenda na psicologia, separando os estudos sobre o comportamento publicamente observável dos trabalhos sobre consciência e processos “mentais”. Extremismos à parte, Watson foi o primeiro a se insurgir com convicção contra uma psicologia imprecisamente definida e com métodos visivelmente questionáveis. Os estudos de Watson são hoje a base de toda a psicologia experimental como a conhecemos e influenciaram bastante os trabalhos de outros behavioristas que vieram depois dele. 
O behaviorismo de Watson foi vítima da força de se próprio nascimento: ao deixar de fora o estudo da consciência e dos processos que não podiam ser publicamente observáveis, suas proposições revolucionárias para a psicologia como um todo foram combatidas com um fervor de revolta. Watson foi obrigado a amenizar suas propostas e a reconhecer (1) a existência dos eventos mentais e (2) que sua ciência era limitada, não sendo capaz de estudar tais eventos (o que ficou conhecido como teoria da caixa-preta, ou seja, os eventos mentais existem, mas não podem ser estudados pela psicologia e, portanto, não são um objeto de estudo válido). 
Plantava-se, aqui, a semente da discórdia entre o emergente comportamentalismo e o embrionário cognitivismo. Ao florescer nos anos que se seguiram, esse gérmen solidificaria ainda mais a divisão entre essas duas áreas, delimitando o campo de trabalho e investigação de cada uma, tal como outrora fizera o muro de Berlim. 
Nos Estados Unidos, o behaviorismo ganhou força e os departamentos de psicologia das universidades foram tomados por pesquisas experimentais com essa orientação. Nesse contexto, Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) emergiu com novos paradigmas sobre o estudo do comportamento. De especial interesse para a presente discussão foi a inclusão dos “eventos mentais” no estudo da ciência do comportamento sob o rótulo de eventos privados.
Skinner argumentou que os “eventos mentais” poderiam (e deveriam) ser estudados pela ciência do comportamento e que a forma de acesso a tais eventos seria o relato daquele que os observa. Desta forma, apesar do fenômeno dos eventos privados só poder ser observado por uma pessoa, o relato sobre tal manifestação é público. Ao mudar o paradigma do behaviorismo de Watson, explicando os fenômenos anteriores e outros para além do escopo daquela teoria, Skinner fundou o Behaviorismo Radical, tornando-se a principal proposição de orientação comportamentalista até o momento. 
A proposta skinneriana, no entanto, não foi suficiente para conciliar os “estudos da mente” com o behaviorismo. Muitos psicólogos tinham dificuldade em aceitar a “simplicidade” dos eventos privados, enquanto outros simplesmente não conseguiam explicar o comportamento humano complexo através de encadeamentos de estímulos e respostas ou de contingências de reforço. Enquanto modelo explicativo da motivação e da emoção, o behaviorismo tinha bons resultados, mas para outros processos como memória e vocabulário a linguagem behaviorista era insuficiente. 
George Armitage Miller (1920-)
Concorrentemente, por volta de 1950, os trabalhos desenvolvidos nas ciências da computação apresentavam modelos explicativos bastante compatíveis com as teorias da psicologia da mente. Na linguística, Avram Noam Chomsky (1928-) lançou propostas inovadoras, além de fazer oposição à algumas das afirmações de Skinner. O psicólogo George Armitage Miller (1920-) elegeu a data de 11 de setembro de 1956 (data do II Simpósio sobre Teoria da Informação, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts) como o nascimento de uma nova ciência que reunia profissionais de várias áreas e que tinha como objeto de estudo os processos mentais: a ciência cognitiva
A neurociência também já dialogava com a ciência cognitiva, mas quando as técnicas de imageamento cerebral da neurologia passaram a ser mais conhecidas e divulgadas a ciência cognitiva deu um salto metodológico para evidenciar a cognição: era agora possível relacionar a atividade do córtex cerebral com estímulos simples e mapear tal atividade. Surgiu, por fim, a Neurociência Cognitiva ou Neuropsicologia (NP), uma área interdisciplinar em sua essência, cujos métodos e modelos explicativos têm alicerce na psicologia, nas ciências da computação, na linguística e na neurociência. 
O Behaviorismo e Cognitivismo permaneceram separados (assim como seus descendentes, a AC e NP) e, normalmente, “onde um trabalha o outro não se mete”. Durante os anos, a tensão entre as duas áreas transformou-se em verdadeira guerra nos campos de batalha da ciência, com acusações mútuas sobre a validade e alcance de cada ciência (Skinner e Chomsky, apenas para citar alguns, tiveram participação ativa nesse processo). 
Dado o presente quadro, seria de se sugerir que as áreas devem permanecer separadas e que cada um conduza os seus estudos sem interferência do outro. No entanto, nos arriscaremos aqui a conciliar os trabalhos desses dois campos do conhecimento. Para isso, argumentaremos, em parte, de acordo com os pensamentos expressos por Catania (1999) em seu livro Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição, capítulo 21. 
Tentando juntar as coisas
Catania (1999) defende que uma postura separatista em nada auxilia na produção de conhecimento científico. Muitas ciências possuem especializações dentro de seu corpus disciplinar, como a anatomia e a fisiologia na biologia, por exemplo, mas isto não significa uma primazia do conhecimento produzido por uma área sobre a outra. Pelo contrário, as explicações em um campo auxiliam, intensificam e renovam as descobertas no outro campo. Já falamos de um acontecimento semelhante no texto anterior, ao discutirmos as teorias localizacionista e unitarista, sintetizadas na teoria do sistema funcional. Também podemos dizer que o Behaviorismo Radical de Skinner fez a mesma coisa (em certo grau) com o behaviorismo de Watson. 
Seria incorrer em sério erro (e até mesmo irresponsabilidade) deixar que as descobertas científicas e seus métodos se tornem exclusividade de um grupo. Tomemos o caso das pesquisas com animais não-humanos. Advogar que os achados sobre o condicionamento animal são irrelevantes para a compreensão da aprendizagem humana (ou vice-e-versa) é obliterar a chance de descobrirmos aspectos elementares semelhantes entre as espécies, turvando, inclusive, nossa chance de delimitar melhor aquilo que é próprio do humano. 
A mesma lógica é aplicável à tensão behaviorismo e cognitivismo. O fato de ambos os campos pronunciarem objetos de estudo diferentes e gestarem conceitos diferentes não é suficiente para justificar uma “incongruência essencial”. Catania (1999) argumenta que as linguagens (forma de falar sobre) da mente e do comportamento acabam por se confundir com os próprios problemas investigados pela AC e pela NP. 
Esse equívoco ontológico dificulta o reconhecimento de que as duas áreas estudam fenômenos diferentes ou que estudam o mesmo fenômeno em níveis diferentes de observação. Os achados da NP sobre os processos básicos pelos quais a memória é estruturada e processada , por exemplo, não invalidam as relações funcionais descritas pela AC no ato comportamento de lembrar. Pelo contrário, as descobertas de ambas as áreas são complementares e não mutuamente excludentes. O intercâmbio de conhecimento científico (e com outras formas de conhecimento também) é bastante fértil para o surgimento de explicações melhores e mais completas. Esse o sentido da produção científica. 
Últimas considerações
Lembramos que a NP é um campo do saber com raízes em heterogêneos e diversificados pressupostos Epistemológicos e Metodológicos, mais do que nos seria possível delinear em um post de blog. O que trouxemos aqui foi uma rápida revisão histórica da AC e da NP, o que poderá ser ampliado em publicações posteriores através de uma revisão. 
Por ora, nos concentramos em buscar conciliar duas áreas com vocabulários bastante díspares (uma tarefa bastante desafiadora, diga-se de passagem). No entanto, a linguagem não deve ser tratada como barreira intransponível: aqueles interessados no intercâmbio com outros campos do saber devem erguer suas marretas do conhecimento e derrubar, na base do suor, os tijolos das incongruências e divergências. 
No entanto, não seremos aqui ingênuos de afirmar que a separação entre a AC e a NP é apenas uma falha de comunicação. Variáveis históricas não extensivamente definidas atuaram no distanciamento das duas áreas, mas devemos considerar que existem contingências que mantêm essa cisão. Seria interessante que a AC, enquanto ciência que analisa os problemas humanos e propões soluções para tais problemas, atuasse na elucidação das variáveis de controle e na proposição de métodos para unir estas e outras áreas do conhecimento científico. Fica a dica. 
Referências
BAUM, W. M.; Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 
CATANIA, A. C.; Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. 4.ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. 
GAZZANIGA, M. S.; MANGUN, G.R.; IVRY, R.B.; Neurociência Cognitiva: A Biologia Da Mente. Artmed, 2006.
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Escrito por Erica e Paulo

Erica: Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará. Professora do curso de Psicologia da Fanor - Fortaleza - CE. Atua na área clinica, onde atende adultos e idosos. Possui especialização em neuropsicologia pela Faculdade Christus e cursa mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.

Paulo: Psicólogo pela Universidade Federal do Ceará. Possui formação em análise do comportamento pelo Cemp - Fortaleza - Ceará. Possui experiência em psicologia clinica (adultos). Colaborador do LEAC (Laboratório de estudos em analise do comportamento) - UFC.

O Behaviorismo, a educação e a desinformação.

Quem tem medo da evolução?