Pesadelos de consumo

Gostaria de abrir este post com as seguintes perguntas:
– Você precisa de todos os bens materiais que possui?
– Você precisa de todos os serviços que solicita?
Se você estiver em sua casa, basta olhar ao redor para fazer uma breve análise de suas posses e classificá-las de acordo com a necessidade que você tem delas.
Normalmente, os itens de menor frequência de uso estão em prateleiras altas de difícil acesso e os itens de maior frequência de uso estão ao redor do local onde você permanece a maior parte do tempo.
Alguns destes itens mudam com uma certa frequência. Um exemplo deles é o celular: alguns meses após sua compra, há uma versão mais nova daquele aparelho. Isto é conhecido por obsolescência programada. A garantia de seu celular expira e seu conserto se torna mais custoso do que sua troca.
Para onde vão os celulares?
Acredito que não seja novidade que os celulares viram lixo e seus compostos eletrônicos são dificilmente reaproveitados ou reciclados. Isto faz com que compostos nocivos sejam liberados no ambiente causando complicações já conhecidas nossas (contaminação de solo, lençóis freáticos, acúmulo de substâncias na cadeia alimentar, entre outros).
Mas, como estamos falando de comportamento humano, vamos tentar entender como este processo de obsolescência programada pode afetar o comportamento de indivíduos e/ou práticas culturais.
Para começo de conversa, acredito que um aspecto que deve ser levado em conta são as propriedades discriminativas dos estímulos antecedentes que tem maior chance de controlar nosso comportamento.
Quais são elas?
Primeiro, vamos pensar em “porque” compramos um celular.
Compramos um celular por que há celulares à venda.
Por mais óbvio que isso possa parecer, há um motivo de estar na lista: a presença de determinados itens no mercado pode ou não fazer com que surja uma demanda para a obtenção destes itens. Estamos de acordo?
Os celulares criaram uma demanda. Os pagers, nem tanto.
O que mais pode sinalizar que “comprar um celular” é adequado?
  1. Uma solicitação de pessoas (pais, responsáveis, chefes, amigos, entre outros) para a obtenção de um celular; 
  2. Atividades (sociais, de estudo, de trabalho) que podem ser realizadas com o auxílio de ferramentas oferecidas pelo celular. 
Além disso, o que deve ser levado em consideração para “comprar um celular”?
  1. Recursos financeiros necessários e disponíveis para realizar a compra; 
  2. Outros meios de comunicação disponíveis bem como propriedades de seu alcance (quantas pessoas e que área são abrangidas por estes meios de comunicação, entre outros); 
  3. Recursos que os diferentes tipos de aparelho disponibilizam; 
Apenas listo aqui alguns exemplos de propriedades das condições antecedentes daquele comportamento.
Convido agora vocês leitores a refletirem sobre a seguinte questão: quando essa demanda surgiu? Celulares eram itens de luxo, hoje são aparelhos triviais que são utilizados, na maior parte do tempo, para cumprir diferentes funções que não apenas “realizar chamada de voz”.
sinalizadores de consequências reforçadoras cada vez mais evidentes para o comportamento de comprar um celular uma vez que há um número cada vez maior de pessoas com celular frequentemente evidenciando estas consequências. Além disso, as consequências do “comprar um celular” estão frequentemente na mídia.
mais pessoas apresentando mais modelos e evidenciando mais as consequências. A partir de um certo ponto, “não ter um celular” passou a ser prejudicial.
Podemos distinguir então duas classes de comportamentos descritas a partir da mesma resposta (“comprar um celular”).
  1. O comportamento mantido pelas consequências potencialmente reforçadoras (operação de reforço positivo). 
  2. O comportamento mantido como forma de evitação às consequências aversivas (operação de reforço negativo). 
Faço referência aos celulares, mas aponto que é possível atribuir a mesma análise (ou análises parecidas) a outros itens, principalmente tecnológicos.
Eu havia me proposto a analisar problemas que vão além da esfera ambiental, e vou começar a fazê-lo agora. Não vou terminar de fazê-lo neste post, então espero que os colegas me ajudem a enriquecer o debate.
Gostaria que este post se tornasse um fator de motivação por mostrar elementos aos quais normalmente não temos acesso para a análise de uma contingência muito complexa que é a do consumo de celulares. Convido-os a assistirem o trailer de 2’48” sobre a extração de minérios para a produção de celulares chamado “Blood in the Mobile” com legendas em espanhol (porém de fácil compreensão).

O documentário se propõe a apresentar elementos da cadeia de produção que não são discriminativos para os consumidores no momento da compra. Além de temporalmente e espacialmente distantes de onde o comportamento ocorre, não há alterações imediatas entre a apresentação da resposta de comprar o celular e o desenvolvimento do trabalho compulsório naquela região, o que dificulta o consumidor perceber que há uma relação entre os dois eventos. Nossa prática usual de consumo está sob controle de antecedentes e consequências mais próximos ao nosso comportamento. 
De acordo com Cortegoso (2008), para que esses elementos sejam percebidos como relacionados entre si, é necessário que haja uma explicitação dos elementos das contingências em vigor a curto e longo prazo. Isso pode ser o primeiro passo para tentativas de alterar a probabilidade de ocorrência de determinado comportamento.
Entretanto, um dos fatores que dificulta a ocorrência de comportamentos, também mencionado pela autora, é o custo de resposta. Por exemplo, consumir produtos orgânicos pode ser pouco viável se houver necessidade de ir até a casa do produtor para adquiri-los, mas pode ser mais provável se eles estiverem à exposição nas prateleiras do mesmo supermercado no qual você faz compras regularmente.
No caso do celular, há possibilidades, por exemplo, de manter contato por outros meios de comunicação, entretanto isto pode exigir a reestruturação de organizações inteiras sem a garantia de que os outros meios de comunicação não apresentem problemas similares. Ou seja, qualquer medida do tipo vai completamente contra o desenvolvimento econômico do país, e isso, convenhamos, é um belo custo de resposta.
A proposta de Serge Latouche de decrescimento, tendo em vista os problemas econômicos que podem ser ocasionados por medidas drásticas no consumo, faz uma distinção entre “decrescimento” e “crescimento negativo”. Ele afirma que a necessidade de agora não seria destruir o que já foi construído, mas sim perceber que o que já foi construído é suficiente para muito mais do que pensamos que é. Em entrevista dada ao jornal do MAUSS, ele afirma:
“Uma lógica de crescimento [econômico] e um projeto de decrescimento são incompatíveis, mas o projeto de decrescimento visa fazer crescer a alegria de viver, restaurando a qualidade de vida (um ar mais sadio, água potável, menos estresse, mais lazer, relações sociais mais ricas etc.).”
Para Mance (2002) consumir de forma responsável consiste em: 
“[…] consumir bens ou serviços que atendam às necessidades e desejos do consumidor, visando: a) realizar o seu livre bem-viver pessoal; b) promover o bem-viver dos trabalhadores que elaboraram, distribuíram e comercializaram aquele produto ou serviço; c) manter o equilíbrio dos ecossistemas; d) contribuir para a construção de sociedades justas e igualitárias. “
O consumir responsável é aquele que favorece a felicidade e a liberdade de uma comunidade, e não que os aprisiona em minas e nos torna escravos de algo que tem data marcada para ficar obsoleto.

Referências:

CORTEGOSO, A. L. Consumo ético e responsável na Economia Solidária: compreensão e mudança de práticas culturais. Em Cortegoso, A. L. e Lucas, M. G. (Organizadores) Psicologia e economia solidária: interfaces e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, pp. 165-180.

Jornal do Periodico del MAUSS, Entrevista com Serge Latouche. Disponível em <http://www.jornaldomauss.org/periodico/?p=1609>

MANCE, Euclides André. Consumo solidário. 2002b. Disponível em: <http://www.solidarius.com.br/mance>

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Escrito por Arthur Médici

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