O transtorno de personalidade múltipla – uma visão analítico-comportamental

Muitos transtornos psicológicos são objeto de fascínio da população em geral. Os assim denominados transtornos de personalidade são parte de uma das categorias que mais desperta a atenção. Psicopatas, borderlines e narcisistas, entre outros, são fonte de diversas estórias e há tempos dão pano pra manga para as mais diversas discussões, sendo tema de livros, filmes, etc. Um dos transtornos mais curiosos talvez seja o transtorno de personalidade múltipla (MPD – Multi-Personality Disorder na sigla em inglês). 

O transtorno de personalidade múltipla é o diagnóstico que se aplica a uma pessoa que age, sente e lembra como se fosse mais de uma pessoa (Kohlemberg e Tsai, 1991), ou seja, tem vários “eus” em apenas um corpo, que pode ser visto inclusive de formas diferentes, como alguém de um outro sexo, de uma outra idade (de um idoso até mesmo a um bebê) e com características por vezes bastante diferentes do “eu” original, com preferências, formas de agir, habilidades, opiniões e mesmo lembranças e experiências até opostas às deste. Há algum ceticismo na comunidade psicológica sobre a existência desse transtorno como realmente um distúrbio isolado, dada a raridade da condição e mesmo a teatralidade inerente à esta, que exerce fascínio por si só e pode contribuir para a sua manifestação como tal. No entanto, podemos explicar o fenômeno a partir de uma visão analítico-comportamental. 

Nessa perspectiva, a personalidade é um rótulo para uma gama de comportamentos que podem definir um padrão. Com isso, alguém com transtorno de personalidade pode ser considerado alguém com muitos padrões mais ou menos distintos (conhecidos como alters), já que nem todas as personalidades possuem características tão bem definidas, sendo chamadas de fragmentos de personalidade (por exemplo, uma personalidade que entra em cena apenas como acusadora da personalidade original, ou um bebê ou criança que tem repertório comportamental mais limitado).

A maioria dos indivíduos com MPD passou por traumas bastante significativos na infância – geralmente abusos sexuais e/ou físicos, negligência extrema, testemunhos de mortes violentas etc., mas nem todas as crianças que passam por tais experiências desenvolvem o MPD, tornando tal fator etiológico apenas uma parte da explicação (Kohlemberg e Tsai, 1991). O que explicaria, então, uma flexibilização tão grande do sentido de si, tão naturalizado nas pessoas que não teriam nenhum transtorno?

Kohlemberg e Tsai (1991) discutem a hipótese de que o nosso sentido de “eu” é desenvolvido de acordo com as experiências que vivemos na infância, em que a participação desse “eu” é destacada e reforçada por outras pessoas significativas, geralmente pais e outros cuidadores. O controle da resposta “eu” é inicialmente público (observável por outras pessoas). Um bebê que emite respostas públicas de orientação, por exemplo, a um sorvete (apontando para o sorvete, chorando quando não lhe dão o sorvete, sorrindo quando ganha o sorvete etc.) será incentivado a dizer algo como “nenê quer sorvete”, posteriormente a dizer “eu quero sorvete”; e frente a diversas experiências semelhantes com outros objetos (coisas e sensações), reforçadas adequadamente, a resposta “eu” vai ficando sob controle privado (acessível apenas pelo indivíduo em questão) das sensações ligadas ao “querer sorvete” (fome, respostas fisiológicas, etc.). A criança então vai se percebendo como uma pessoa com desejos próprios, caso passe por um desenvolvimento normal dessa etapa em que tenha passado por experiências suficientes para a emergência do “eu”. (Para uma explicação mais completa deste ponto, veja a referência do texto ao final do post).

Na infância, portanto, esse sentido de eu – chamado de self pelos autores – é ainda uma noção em construção. A criança ainda está aprendendo a tatear suas próprias respostas sob controle privado, tendo um self mais flexível. Ainda, as respostas de fantasiar que é uma outra pessoa são, de forma freqüente, positivamente reforçadas nessa época pela cultura em geral (brincadeiras onde a criança finge ser um adulto, professor, uma mamãe, um famoso, um super-herói etc.). Com isso, uma criança que passa por um trauma muito violento pode desenvolver o transtorno de personalidade múltipla, ao se utilizar de todo esse repertório já desenvolvido para encarar uma situação muito aversiva.

Tais hipóteses explicariam, segundo Kohlemberg e Tsai (1991), muitas das facetas do MPD. Entre elas, o fato de que muitas vezes uma personalidade não é conhecida pelas outras, e, mais ainda, quando uma entra em cena, posteriormente o “eu” verdadeiro pode não se lembrar do que ocorreu durante tal período. É uma esquiva funcional no momento, já que o lembrar associado ao trauma pode ser altamente doloroso, e, como outros repertórios não estão presentes nesse momento (enfrentar ativamente um abusador, por exemplo, pode ser praticamente impossível para a criança, ainda mais quando este é uma pessoa próxima da qual a criança depende de alguma forma), o indivíduo tende a se comportar de acordo com o repertório que já pôde desenvolver até ali. Caso tais experiências sejam sistemáticas na infância ou muito significativas, o transtorno então pode persistir na vida adulta, como repertório comportamental do indivíduo.

Curiosamente, pode haver ainda um componente iatrogênico que favoreça a manutenção do transtorno. Além de todas as conseqüências que mantém o repertório descrito (geralmente de esquiva de situações aversivas, como se pode ver até aí), um terapeuta pode reforçar e sugerir, mesmo sem tal intenção, as manifestações de tais personalidades. Tratar as personalidades como pessoas distintas ou não, por exemplo, pode contribuir para o aumento da freqüência do comportamento de experienciar estas personalidades no cliente, como demonstrou um estudo de Kohlemberg (1973, citado por Kohlemberg e Tsai, 1991). Um exemplo disso é mostrado no relato do caso Sybil, um dos mais famosos da história de personalidade múltipla. Se discute se a terapeuta não teria reforçado diferencialmente o exagero dos relatos e manifestações das várias personalidades da jovem, contribuindo para que o transtorno se mostrasse de forma mais clara e se mantivesse ativo. 

Pode ser, ainda, que as personalidades múltiplas sequer se revelem em terapia em muitos casos, já que estas costumam manter um “segredo” do eu e, como visto, podem não se conhecer entre si; isto talvez cause mesmo uma subnotificação dos casos de MPD (Kohlemberg e Tsai, 1991).

O tratamento do transtorno gera controvérsias. A princípio, as personalidades do cliente não poderiam ser tratadas como indivíduos separados, sob o risco de reforçar e manter o transtorno, como vimos anteriormente. No entanto, para acessar essas personalidades, o terapeuta deve conhecer mais ou menos cada uma e portanto dar espaço para que estas “falem de si”, o que pode ser bastante aversivo para o cliente já que os vários “eus” surgiram justamente para esconder algo. A terapia, segundo Kohlemberg e Tsai (1991), terá como objetivo tornar, gradualmente, as personalidades mais conscientes umas das outras, o que abrirá a possibilidade de que os repertórios do cliente fiquem mais homogêneos e o comportamento se aproxime da perspectiva de um “eu” único, o que não significará uma cura completa, mas uma possibilidade de o indivíduo em questão viver com um novo repertório comportamental, agora, se assim pudermos dizer, apenas seu.

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Referências

Kohlemberg, R. J. & Tsai, M. (1991). Cap. 6 – O self. In: _______ FAP: Psicoterapia analítica funcional. São Paulo, ESETec, pp. 137-185.

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Escrito por Aline Couto

Tem 22 anos e reside em Salvador, BA. Formada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Durante o curso, aproximou-se da Análise do Comportamento, da Psicologia Cognitivo-Comportamental e da Neuropsicologia. Participou de grupos de pesquisa sobre Neuropsicologia Clínica e Cognitiva e Análise do Comportamento e Cibercultura na sua faculdade, além de grupos de estudo sobre Behaviorismo Radical.

Fotos do I Workshop de Terapia Cognitivo-Comportamental do Triângulo Mineiro

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