Uma alternativa ao internalismo

Em “Breve defesa ao mentalismo”, texto que escrevi no ano passado, procurei defender a perspectiva internalista (mentalista e neurocientificista) de explicação do comportamento. Nos últimos meses, contudo, venho reexplorando a proposta de que a atividade da mente, cujo conceito tentei desenvolver outrora, é inegável mas negligenciadamente modelada pelo e dependente do ambiente. Apoiado nos princípios do behaviorismo radical, filosofia arquitetada por B. F. Skinner, tentarei mostrar por que uma explicação legítima do comportamento deve ir além das posturas internalistas.
O internalismo
De forma genérica, as abordagens internalistas partem do pressuposto de que a mente (ou o encéfalo), em termos de seus componentes, de suas estruturas, é a entidade originária e causal do comportamento. Dizemos rotineiramente que, por exemplo, “Cantamos porque estamos alegres”, “Explicamos porque desejamos ser compreendidos”, “Passamos no vestibular porque somos inteligentes”, “Batemos porque somos impulsivos” e “Oramos porque acreditamos que Deus existe e que Ele tem o poder de intervir sobre o mundo”. Nessas ocasiões, nas quais lançamos mão da chamada psicologia popular (folk psychology), estamos atribuindo a variáveis internas — sentimentos, desejos, habilidades intelectuais, traços de personalidade e crenças — a origem e a causalidade daquilo que fazemos ou realizamos.
Além do discurso cotidiano, a maior parte das escolas da Psicologia parte dessa perspectiva. Pela Psicanálise, por exemplo, Id, Ego e Superego são os principais construtos mentais empregados para explicar o comportamento. Pela Psicologia Cognitiva, mais próxima da psicologia popular, as crenças e os desejos. Mesmo o amplo e fecundo campo da Neurociência encaixa-se nessa perspectiva, de vez que elenca o balanço bioquímico e os padrões de atividade neural como algumas das condições explicativas do comportamento.
Concepção freudiana da mente humana (a metáfora do iceberg). O comportamento seria produzido pelo conflito — em sua maior parte inconsciente — das estruturas Ego, Id e Superego.
Examinemos um exemplo da Neurociência, este agregado de especialidades que estuda o sistema nervoso em variados níveis. Sugeriu-se certa vez que a escassez de serotonina (um neurotransmissor) nas fendas sinápticas explicaria o estado rebaixado de humor em pacientes depressivos. Uma vez identificada essa variável independente, comumente tomada como causa, poderíamos sintetizar fármacos que configurassem o balanço molecular desejado. E foi o que tentaram fazer — mas sem muito sucesso. O problema é que os psicofármacos, além de serem imprecisos em seus efeitos, atuam mais de forma a alterar o que seriam produtos de certas circunstâncias do que de alterar certas circunstâncias que produzem certos problemas. Em outras palavras, os psicofármacos atuam sobre os sintomas em vez de fazê-lo sobre as variáveis que os geram.

Temos aí, antes de tudo, um problema de ordem ontológica: o deficit de serotonina não seria a causa do humor rabaixado, mas a característica ou a descrição molecular daquele problema. A pergunta deveria ser a seguinte: O que acontece para que as pessoas tenham menos ou mais serotonina em suas fendas sinápticas? Na verdade, pergunta similar deve ser lançada para tudo quanto é explicação internalista: O que acontece para que as pessoas sejam mais ou menos impulsivas, responsáveis, extrovertidas, abertas, tímidas, agressivas e empáticas e pensem, desejem, esperem e acreditem em umas ou outras coisas?

Embora as abordagens internalistas possam solucionar uma gama de interrogações, suas contribuições parecem ser bem mais descritivas do que explicativas. De acordo com B. F. Skinner (1974/2006), principal desenvolvedor do behaviorismo radical, o estruturalismo (ou o internalismo) nos diz como as pessoas agem, mas esclarece muito pouco sobre por que se comportam de uma ou de outra maneira.

 
Se o compromisso da ciência psicológica é explicar, prever e controlar (intervir sobre) o comportamento, cabe aos psicólogos a incumbência de compreender as condições que dão origem, que controlam e que mantém desejos, crenças, habilidades intelectuais, traços de personalidade e sentimentos. Em suma, esses componentes não explicam satisfatoriamente o comportamento justamente por serem parte daquilo que precisa ser explicado.
Behaviorismo radical: uma alternativa ao internalismo
António R. Damásio, um dos maiores neurocientistas da atualidade, reconhece patentemente o papel do ambiente na origem e na manutenção/adaptação de espécies, de culturas e de comportamentos de indivíduos. Embora seja mais internalista do que interacionista (o que é comum entre os neurocientistas), Damásio (1996) asseverou que “os fenômenos mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em interação com o ambiente que o rodeia” (p. 17).

Diferentemente do internalismo, as abordagens interacionistas, em especial o behaviorismo radical, objetivam explicar o comportamento à luz das relações organismo-ambiente. O comportamento, tomado como um processo — em vez de como uma coisa –, é ele próprio essa interação. Os sentimentos, as habilidades intelectuais e as condutas motoras, exemplos de respostas de um organismo, devem ser analisados contextualmente. Ao fazê-lo, tratamo-los como comportamentos, de vez que são respostas dependentes de eventos ambientais. O organismo vivo, qualquer que seja, não é indeterminado, isto é, não é livre conforme o sentido ingênuo do termo.

Habilidades intelectuais e traços de personalidade constituem padrões de respostas que devem ser analisados tanto histórica como contextualmente.

O foco na interação organismo-ambiente tira dos processos internos o papel originário e causativo do comportamento. Pode-se dizer que a origem das diferenças comportamentais de duas pessoas decorre da diferença de toda uma constelação de eventos dos quais elas fizeram parte. Afora as diferenças genéticas, somos diferentes porque nos desenvolvemos em ambientes diferentes. Nossos padrões de respostas públicas (p. ex., ir à igreja, conversar e escrever) e privadas (p. ex., pensar, sentir e desejar umas ou outras coisas) são modelados desde a tenra infância, cabendo às circunstâncias atuais modificá-los, extingui-los ou mantê-los. Tal como a origem das espécies não é adequadamente explicada pelo desejo e poder de um Deus, a origem daquilo que sentimos, pensamos e fazemos não é explicada pelo encéfalo e/ou por uma entidade denominada mente — tanto menos por um espírito.

Basicamente, os comportamentos são originados de acordo com seus efeitos sobre o mundo. Esses efeitos, também denominados consequências, modificam posterior e retroativamente a pessoa que os produziu. Mais especificamente, as consequências que se seguem a uma resposta determinam a probabilidade de que essa resposta (rigorosamente, de uma resposta similar) seja posteriormente emitida em contextos similares. Se essa probabilidade aumentar, diz-se que a consequência foi/é reforçadora; se diminuir, punitiva.
Como os sentimentos e os pensamentos (que são comportamentos privados) normalmente antecedem nossos comportamentos públicos (gritar ou conversar assertivamente, p. ex.), tendemos erroneamente a lhes atribuir um papel causal (Skinner, 1974/2006). Com isso, passamos a negligenciar os eventos antecedentes que lhes controlam (que lhes determinam) e, ainda, as consequências que lhes seguem. Mais uma vez, as consequências daquilo que fazemos são, elas mesmas, o que reforçam ou enfraquecem um comportamento. Para usar um exemplo, não gritamos porque sentimos raiva; sentimos raiva e gritamos porque, em ocasiões pregressas, essas respostas geraram consequências reforçadoras (p. ex., intimidamos a pessoa com quem discutíamos). Também podemos, em vez disso, sentir raiva e nos calar ou mesmo sentir raiva e nos retirar do local — tudo vai depender das consequências que se seguiram a um ou a outro tipo de comportamento. Em suma, sentir raiva e gritar compõem uma unidade comportamental que foi previamente selecionada e que é emitida em condições específicas; por se sucederem temporalmente, temos a equívoca mas atraente impressão de que a primeira resposta (raiva) desse conjunto é causadora da segunda (gritar).
O modelo de análise tradicional dos psicólogos comportamentalistas (ou melhor, dos analistas do comportamento) é o da tríplice contingência (ou contingência de três termos). Esse modelo é constituído de um contexto ou evento antecedente, a(s) resposta(s) de interesse e seu subsequente efeito ou consequência. Vejamos como ficaria sistematizado o exemplo supracitado (agora mais enriquecido):

Exemplo de uma análise funcional. A resposta, como um todo, é imediatamente determinada por um evento antecedente, o qual esteve e foi novamente emparelhado a consequências reforçadoras subsequentes.

O contexto atual, que controla (determina) imediatamente as respostas de um organismo, o faz de uma ou de outra maneira porque, no passado, aquele conjunto de respostas, emitido em circunstâncias similares, produziu consequências reforçadoras. Com efeito, esse conjunto de respostas continuará a ser emitido enquanto produzir consequências desse tipo. Por outro lado, e retomando a ilustração, se João passar a ouvir cuidadosamente as críticas de seus colegas e, através delas, aprimorar suas ideias e conseguir uma promoção, suas respostas coléricas poderão ser extintas ao mesmo tempo em que um novo conjunto de respostas — deveras mais adaptativo — é instalado, selecionado. Esse novo conjunto de respostas, aliás, pode ser também reforçado por elogios, reconhecimento e carinho por parte de seus colegas.

Da mesma forma como os sentimentos e as condutas públicas são selecionados, também o são os pensamentos, as habilidades intelectuais e as crenças. De forma similar à demonstrada acima, não agimos porque acreditamos em uma ou em outra coisa; em vez disso, acreditamos/pensamos e sentimos e fazemos umas ou outras coisas em contextos específicos. Explicando pela linguagem do modelo, pensamos em função do controle de estímulos, sejam estes antecedentes ou, quando tratamos da origem e manutenção de uma crença, consequentes. Em suma, componentes ou construtos internos, geralmente hipotéticos (p. ex., memória, energia libidinal e estruturas de personalidade), devem ser explicados para que possam ser satisfatoriamente compreendidos em uma sequência de eventos causais, ou melhor, funcionais. Como ouvi dizer de um dizer de uma professora, parece que “as abordagens internalistas pegam o bonde andando”.

Considerações finais
A perspectiva behaviorista, que é historicista, selecionista e contextualista, oferece uma análise do comportamento bastante dessemelhante das análises internalistas, mais tradicionais. Ao fazê-lo, restabelece a função dos componentes internos, a saber, inserindo-os em uma história evolutiva e em um ambiente com o qual interagem e se transformam. Compreender o paradigma behaviorista requer uma reconstrução da forma como tradicionalmente analisamos o comportamento, e fazê-lo pode ser tão difícil quanto deve ter sido para os nossos antepassados compreender e aceitar a evolução das espécies pela seleção natural — se é que podemos dizer que o criacionismo desvaneceu.
Referências bibliográficas:

Damásio, A. R. (1996). O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano. São Paulo: Companhia das Letras.

Skinner, B. F. (2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix. (Originalmente publicado em 1974.)
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Escrito por Daniel Gontijo

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